Imaginem que dois cozinheiros preparam um tema simples, um molho para temperar uma salada. Imaginem que os dois (ou três ou quatro ou cinco ou dez cozinheiros) contam com ingredientes iguais, o mesmo açúcar, o mesmo vinagre balsâmico dos que passam anos dormindo em barris de carvalho, castanheiro e cerejeira, o mesmo azeite extra-virgem, dentes de alho de tamanho equivalente. Tudo exatamente igual e ainda assim, com certeza absoluta o molho feito por cada um dos cozinheiros terá gosto diferente.
Uma receita não é lei talhada em pedra, mas uma sugestão, um guia, um elenco de passos para chegar a um resultado. Alguns cozinheiros vão seguir ao pé da letra, milimetricamente, sem tirar nem pôr – no caso dos doces é mais seguro. Outros vão rearranjar, pegar atalhos, improvisar. Alguns vão remixar e acrescentar boas doses de estilo pessoal. Outros vão alterar só um pouquinho, talvez substituir um ingrediente. Os gulosos vão exagerar. Os experientes nem precisam de receita, são capazes de provar um prato e remontar o gosto, de ouvido. O mesmo cozinheiro pode servir uma mesma receita com gosto diferente em dias diferentes, tudo depende do estado de espírito e atenção. Vamos improvisar:
Partitura para molho de salada:
Para cada medida de vinagre balsâmico, 3 de azeite extra virgem, um dente de alho inteiro descascado e amassado a ponto de quebrar e soltar um pouco de seu óleo, uma colher de chá rasa, de açúcar. Colocar tudo em um recipiente bem tampado e chacoalhar vigorosamente até que a mistura fique cremosa.
Espalhe o molho sobre a salada, de preferência folhas de rúcula pequenas, e misture bem. Quem quiser pode esmigalhar nozes descascadas e lascas de parmesão sobre as folhas temperadas. Quem preferir alternar texturas, pode manter as nozes e substituir as lascas de parmesão por pedaços de queijo de cabra ou mozzarella.
Este molho é um campo propício para abordar questões quase filosóficas: quão rasa é a colher rasa de açúcar para cada um, qual o tamanho da medida padrão que determinará o equilíbrio entre o aceto e o azeite, além da quantidade de molho em relação à quantidade de folhas (uma colher de sopa ou um 1/4 de copo e tudo muda de figura). Para alguns, salada boa é a que flutua em molho e permite 'fare la scarpetta', ou seja, limpar o prato com pedaços de pão depois que a salada acabou. Para outros, boa é a salada que do molho tem apenas o brilho.
A Cozinha Transcendental incentiva com entusiasmo o scat singing de receitas. Aqui um exemplo de mão cheia, de talento e alegria:
Fundos musicais para meditar sobre a questão da interpretação de pratos: