Pesquisar este blog

sábado, 10 de dezembro de 2011

Alceu Valença - canta e dá o recado...







Doce Presença - Rosa Passos

Clarice Lispector

"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."



Amor
Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
Clarice Lispector: tudo sobre a autora e sua obra em "Biografias".

All Star - Cassia Eller

De laços, de seios, sábados e tormentas

Caio Fernando Abreu


Paris – Era uma vez um sábado de abril. Sábado é sempre sábado, igual em Paris, Porto Alegre ou Cingapura. Sempre no ar aquela expectativa – pizza, cinema ou beijo, não importa – de uma gota de mel para o domingo. Comprei o Le Monde e o Libération, sentei no café da esquina para praticar meu mórbido e pátrio esporte diário: procurar notícias do Brasil, que não desato esse laço. Nunca tem. Mas desta vez – explosão! Como diria Clarice Lispector – ah, desta vez sim, bem grande no alto da última página: BRÉSIL. Adiei a voracidade, pedi outro café, fui ao toalete fazer nada, acendi um cigarro, sorri para uma alemã e depois de uns 10 minutos, absolutamente natural, só o coração batendo secreto me denunciaria, peguei e li sem fôlego, morto de sede e saudade.

Olinda, uma das cidades mais belas que conheço, patrimônio histórico da humanidade. Periferia de Olinda, Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil, América do Sul. Um seio amputado no lixo. Fome, miséria. Tamanho horror que minha forma mais eficiente de reproduzi-lo é repetir sua síntese aqui assim numa única linha para que fique bem claro e medonho e irrecusável na sua hediondez que ofende a todos nós.

Canibalismo em Olinda.

Voltei ao toalete para fazer aquilo que os bebês e os bêbados fazem muito, embora tenha passado dos 40 e, hoje, só bebi café e vitamina C. Dobro o jornal com cuidado e vergonha, para que ninguém leia. Capricho na pronúncia ao pedir a conta, para que não suspeitem de onde venho e saio de fininho. Ando sem rumo por Alesia até me atrasar para a entrevista. Eva Louzon, apaixonada pelo Brasil, faz milhares de perguntas, eu falo do sol, da energia bruta da terra – axé! Axé – que-aqui-não-tem! -, de Machado e Rubem F. e Lygia Fagundes e Hilda Hilst e muita música, Gal, Bethânia e Calcanhoto, cascatas, araras, essas praias murmurantes aonde a lua vem brincar e futuro resplandecente. Um dia, um dia. Tropeço por brasilidades histéricas, fumo demais. No metrô um punk antigo demi-moicano ameaça com navalha quem não dá dinheiro. Não dou, faço o invisível, sempre funciona. Desabo no Marrais de tardezinha.

Um postal de Isabelle Adjani como Emily Brontë, uma antologia de contos gay organizada por David Leavitt. Podia visitar sem aviso Betty Milan, que mora na esquina, telefonar para qualquer um, em português, assistir Jeanne La Poucelle, Sandrine Bonnaire como meu ídolo de infância, Joana D’Arc na versão de Erico Veríssimo. Não faço nada: cinemas cheios demais, ruas cheias demais. Quero voltar para casa, ver TV até a imbecilidade, dormir sem sonhos. Alguma coisa me falta, desesperadamente.

Estou perdido. Atravesso pontes, viro esquinas medievais. O dia é cinza e frio como as cinzas dos borralhos. Quero qualquer coisa que não tenho agora, um país, uma língua, um amor, nesta cidade estrangeira quero me jogar no Sena, me embriagar alucinadamente. Então eu paro e olho a rua, a casa em frente.


A placa (Gracias, Ricardo Costi)
Quai de Bourbon, número 19. Uma placa diz que ali viveu Camille Claudel. Mais abaixo, esta frase dela – “Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) – escrita exatamente há 108 anos. Mas já vivi isso, penso, por que outra vez? Quero acender uma vela pela alma de Camille, a multidão de japoneses barra a entrada da Notre-Dame. Amanhã, amanhã sem falta em Saint-Germain de Prés. Volto pelos túneis cheios de namorados. O sábado, o mel. O Brasil me falta e dói como dizem doer a ausência de um membro amputado, o seio no lixo, o tormento e a tormenta nas esquinas de Pernety, eu repito e repito o horror que ofende a todos nós:

Canibalismo em Olinda.

E no entanto eu não desato esse laço. Tão apertado, parece forca.

Girassóis

Caio Fernando Abreu

Foto de Adriana Franciosi

Tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples. fáceis, até um pouco bruta.

Pois não são não. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia, pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava e nada.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Girassol dura pouco, uns três dias.

ilha das flores completo


"Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”


Muvuca - Um programa alegre e divertido, com Regina Casé


Muvuca, como é definido pelo Dicionário Aurélio é uma grande aglomeração de pessoas, e conseqüente agitação, vozearia, etc. Portanto, não poderia ter nome melhor para o programa apresentado por Regina Casé, na Rede Globo, em 1998, aos sábados às 21h40.Ele contava com uma equipe da qual a maior parte já havia trabalhado com Regina no “Programa Legal” e no “Brasil Legal”. Os textos eram de Genetton Moraes Neto, Hamilton Vaz Pereira, entre outros. Na direção esteve o marido da atriz, comediante e apresentadora, Estevão Ciavatta.

“Muvuca” misturava talk-show e reportagens especiais, unindo pessoas de diferentes universos. Gente famosa e anônima era convidada a participar do mesmo programa, olha que salada russa Regina comandava. Ele era produzido, gravado e editado numa casa no alto do Humaitá, no Rio. Não havia tema definido nem roteiro fixo.

Portanto, era comum que microfones, câmeras, salas de produção e redação fizessem parte da atração, misturando bastidores e cena, já que todos os ambientes da casa podiam ser usados como cenário. A Muvuca, como ficou conhecida a casa, tinha um enorme jardim com piscina. Além da equipe de 40 pessoas, também habitavam a casa o Muvucão, um cachorro dogue alemão, e o Muvuquete, um gato presenteado pela atriz Ana Paula Arósio.
No programa de estréia, a entrevista de Regina com a apresentadora Angélica foi feita no banheiro, e empregadas domésticas anônimas também foram entrevistadas na cozinha da casa.


As entrevistas eram sempre feitas na Muvuca. Regina Casé também saía às ruas da cidade para ouvir depoimentos de pessoas comuns, entrevistarem gente famosa e descobrir personagens curiosos. Num dos episódios, ela foi a um shopping Center comprar um presente para o apresentador Cid Moreira e invadiu o vestiário do Flamengo para entrevistar o jogador Romário, enquanto ele tomava banho. Nomes como Fernanda Montenegro, Rubens de Falco, Ana Maria Braga, Gabriela Duarte, Fernanda Abreu, Monique Evans, Dona Zica, Sean Lennon (filho de John Lennon), entre muitos outros, estiveram em Muvuca.
Em abril de 1999, passou a ser exibido às sextas-feiras, depois do “Globo Repórter”, mas 2000 foi transferido para as terças-feiras. Foi um sucesso! Além do mais, é sempre bom ter Regina Casé na telinha da televisão. Aliás, eles poderiam acabar com certos programas de “humor” e colocar um novo “Muvuca” no ar.

Paulo Senna


Fins de Semana e Feriados - Eu abro a geladeira para pensar

Há pessoas que, por passar três vezes mais tempo no trabalho que em casa, apreciam ficar em casa fazendo nada. Nada contra. É bom mesmo procurar curtir seu lar de vez em quando. Observar os cantos dos móveis empoeirados ou as novas rachaduras nas paredes enquanto pensa nada, faz nada... Nada...

Nesses momentos de ócio puro e simples é que você começa a perceber os trejeitos mais simples das pessoas, as manias loucas, os feitos repetitivos, automáticos e inconscientes de nosso corpo. Eu abro a geladeira para pensar. Ou para continuar sem pensar mesmo. Andando pela casa sem rumo, a cozinha passa a ser parada oficial de cinco em cinco minutos.

Não, não chego a pegar nada (não tem nada mesmo), mas é o ato indispensável de abrir a geladeira, receber o frescorzinho, olhar a lâmpada interna acesa por alguns segundos e fechá-la em seguida, sem saber porque a abri. Até voltar lá e fazer novamente.

Essas andadas pela casa é que impressiona. Pode ser um apartamento de quatro metros por seis, mas a gente ainda acha como andar dentro de casa, e olhar a janela, e abrir a porta para ver a rua, e olhar os cantos do banheiro, e abrir a geladeira...

E você caminha pelado, ou no mínimo, em roupas íntimas, com aquela sensação de liberdade e reconhecimento na área, observando tudo ao redor. Nada melhor que ficar, assim, em casa, fazendo absolutamente nada. Se jogar no sofá, encoxar o travesseiro. Tudo, menos fazer qualquer tipo de fritura, claro!

Fazendo nada, assistimos televisão por no máximo vinte minutos, antes de sermos acometidos pelo tédio. Acompanhados, sexo, claro! Sozinhos, banheiro, óbvio. Depois, um banho. Daqueles que há tempos você não toma. De ficar sentado no chão do banheiro sentindo a água escorrer (de preferência gelada, em um dia bem quente). Dança um pouco com a música alta do vizinho.

Homens checam se está tudo nos conformes e rir até engasgar com a água depois de soltar um pum no chuveiro e ouvir o eco dentro do Box (ou observar as bolhinhas na banheira). Mulheres fazem o exame de mama que há tempos não dava tempo de fazer, fazem as pernas e o bigodinho, ainda que não esteja na época (afinal, quando haverá tempo novamente?) e sentam em um banquinho dando um longo tratamento nos cabelos, há muito, maltratados.

Ao secar-se, privada, mas antes, descarga. Duas coisas: primeiro, ninguém gosta de usar a privada depois de um banho. Parece anti-natural. Segundo, que mania louca é essa que temos? Nós só usamos a água da privada se estiver branquinha. Sem nada. Limpa. A gente vai urinar, muitas vezes de longe, mas onde quer que estejamos não o fazemos antes de dar descarga.

Não sei o porquê, mas queremos exclusividade. Ninguém pode ter estado ali antes de nós. Queremos ver a água mudando de coloração aos poucos e, ao fim, dizermos ‘obra minha’. Se for número dois e não tem água, aí complica mesmo. A pessoa vai, preocupada com a prisão de ventre ou com o chicotinho, mas reza fervorosamente para que nada ‘respingue’, quase chorando.

A mania é contra todas as políticas ambientais. Na França, um dos ministros recomendou “se não for sólido, deixe lá”, se referindo à economia de água. Dizem que no banheiro da casa dele, uma privada passou quase dois meses sem descarga. Isso me leva a várias conclusões.

Primeiro, a família do mesmo tem rolhas anatômicas de dissolução intestinal. Segundo, a política de visitas na casa da família era bem interessante. “Posso usar o banheiro?”, “Qual o número?”, “Ahn?”, “Dependendo do que for fazer, te encaminho para o banheiro ‘encarregado’. O dos fundos, número dois. Ao lado do quarto da esquerda, número um. E o de lá de cima, número três e afins”, “Ahn?”, “Você sabe, muitos ficam excitados na casa alheia. E ainda pode rolar maquiagem, depilação, coisas assim”. Terceiro, oh, povo porco!

Sai, se troca, tenta arrumar as gavetas do quarto. Desiste na segunda, mas acha antigos álbuns de retratos com fotos que gostaria de esquecer, mas adora rever. Decide atualizar a agenda telefônica. Começa a listar. Muitos números. Não, decide tomar sorvete. Para que lista, não é? Lembra do frio e vai limpar o filtro do ar-condicionado. Agora já tirou, tem que limpar mesmo. Tenta fazê-lo na máquina de lavar e sem sucesso, vai à mão mesmo. Aproveita para lavar os sapatos que estão jogados no canto. Sem tirar o cadarço mesmo para não perder tempo.

Decide ir ver os vizinhos, que há tempos não encontra. Não estão. Pensa em como é bom ter vizinhos. Vizinhos e seus simpáticos cães e crianças, sempre silenciosos. Chega à conclusão que é impressionante como todos se juntam na derrota. Se um vendaval passou destruindo tudo ou o mar destruiu suas casas, todos se juntam, vivem juntos, choram juntos, rezam. Irmãos em tragédia. Basta que um deles ganhe na loteria e saia gritando para seus ‘irmãos’ “estou rico! Estou rico!” para ouvir, segundos depois “perdeu, playboy. Passa!”.

Volta para casa. Destino certo: internet. Ninguém online. Todos trabalhando. Que vida cruel! Decide procurar algo para comprar, mesmo com pouco dinheiro. Cd? Dvd? Não, João vende a três reais, não vale. Já sei! Diploma! Qual vai ser dessa vez? Letras. Afinal, é só saber ler mesmo, não é? Ótimo. Emitido em três dias com certificado do MEC.

Tira a roupa. Começa a andar pela casa. Abre a geladeira. Olha pela janela para o interior dos apartamentos de frente. Não, ninguém fazendo sexo. Liga a televisão. Nada. Desiste em dois minutos. Liga o som. Ninguém para dançar. Deixa. Pensa “Que merda estar em casa com nada para fazer”.

Vai ao quarto. Cama convidativa. Esqueceu o condicionador de ar ligado. Deita na cama e lembra do trabalho. “De volta à escravidão amanhã. O atestado vai expirar”. Abraça o travesseiro e muda de idéia. “Tão bom ficar em casa fazendo nada”. E dorme. Luxo que há tempos não se permitia. Melhor aproveitar, pode ser sonho... Silêncio!