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sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Discurso de posse de Mãe Stella de Oxóssi na Cadeira nº 33 da Academia de Letras da Bahia


Mãe Stella é a primeira sacerdotiza do culto afro no Brasil a ocupar uma cadeira na Academia de Letras. O Fato histórico aconteceu no último dia 12 de setembro de 2013.



Mãe Stella na Academia de Letras Da Bahia

Gostaria muito de iniciar meu discurso de posse nesta essa venerável Academia de Letras, dirigindo-me a todos, indistintamente, chamando-os de amigos. Entretanto, fui educada por uma religião que tem na hierarquia a sua base de resistência, o que coincide com a tradicionalidade desta Academia. Sendo assim, inicio este discurso saudando as autoridades presentes ou representadas, sentindo que estou saudando a todos que aqui vieram para engrandecer esta cerimônia

Em 1910, Mãe Aninha fundou, em Salvador, na Bahia, o terreiro de candomblé Ilé Àÿç Opo Afonjá, hoje mundialmente conhecido e respeitado. Mulher com a cabeça muito além de seu tempo, ela costumava dizer que queria ver seus filhos com anel no dedo servindo a ßàngó: oríÿa para quem consagrou sua cabeça e patrono da Casa de Culto aos Oríÿa que criou, mas que deixou de herança para todos nós, seus descendentes espirituais.

Se a cabeça de Mãe Aninha foi consagrada; sua língua ganhou axé, ganhou força. Sua fala é uma sentença que seus filhos espirituais procuram obedecer e cumprir, como manda a sabedoria ancestral. Foi isso que também eu fiz, tanto que hoje me encontro aqui, na ilustre Academia de Letras da Bahia para ser empossada na cadeira 33. A sentença de mãe Aninha é mais profunda do que normalmente se costuma interpretar: receber um anel é símbolo de aceitação de um compromisso. A vanguardista senhora desejava que seus descendentes se comprometessem com as causas sociais e espirituais. Desejo de Mãe Aninha que se tornou de todas as iyáloríÿa que a sucederam. Esse também é meu desejo: comprometer-me com tudo que assumo, seja no âmbito social, seja no âmbito espiritual.

Quando fui iniciada para o oríÿa Õÿösi, pelas mãos de Mãe Senhora, uma das filhas diletas de Mãe Aninha, eu tinha apenas catorze anos de idade. Em 1939, uma pessoa com essa idade era uma criança, que apenas obedecia a ordens, sem questionar o que lhe mandavam fazer. Se minha cabeça física sentia tudo aquilo como uma grande brincadeira, minha cabeça espiritual entendia que eu estava me comprometendo com algo muito sério. Ao ser iniciada, consagrei-me a Õÿösi. Tinha, então, compromisso com essa divindade, com minha mãe de santo, de saudosa memória, e com toda família Opo Afonjá. Meu compromisso não foi selado com um anel. Ele foi selado com correntes fininhas, que simbolizam elos de uma grande corrente que une o Àiyé e o Õrun, os homens e os deuses, o profano e o sagrado. Eu carregava elos de todas as cores: um arco-íris, uma ponte que me fazia transitar, ir e vir, da Terra ao Céu e do Céu à Terra. Em minha inocência, eu não entendia que aquelas correntes fininhas comunicavam aos deuses que eu era ainda um elo frágil, que precisava de energia, de àÿç, para me tornar um elo forte, capaz de segurar muitos outros elos.

Foi assim que aos 51 anos de idade fui escolhida pelos búzios, consequentemente, pelos deuses, para ser iyáloríÿa – mãe de oríÿa, aquela que dá nascimento à essência sagrada de algumas pessoas. Minhas guias fininhas foram substituídas por grossas, grossíssimas guias. Eu já não tinha a inocência dos catorze anos e pude compreender que eu passava a ser um forte elo, sobre o qual se esperava que fosse capaz de segurar e apoiar todos aqueles que buscassem força para atingir degraus mais elevados na existência humana. Uma mãe, no colo de quem muitos buscam conforto, consolo e encantamentos, porque não dizer feitiços, para facilitar a caminhada por este planeta. Ninguém é empossada iyáloríÿa antes de sentar na cadeira especialmente preparada para este mister. Corrente e cadeira, objetos de grande valor simbólico tanto para a religião que pratico – o candomblé, quanto para a Academia de letras na qual agora sou empossada.

Hoje, aos oitenta e oito anos de idade, estou eu recebendo, outra vez, uma corrente, que segura uma linda medalha, e também mais uma cadeira. A medalha me faz lembrar o quão honrosa devo procurar fazer minha caminhada; a corrente, o sustentáculo desta medalha, demonstra o pacto agora firmado com os objetivos da Academia de Letras da Bahia; a cadeira deixa de ser apenas um lugar de assento, para se transformar em um trono simbólico, onde ilustres cidadãos se imortalizaram. Sou agora mais um elo dessa corrente que me liga aos outros elos, meus confrades e confreiras, estejam eles presentes em vida ou em obra. Analisando a palavra cadeira, descubro que esta vem do latim “cathedra”, significando cadeira de braços que confere uma imponência a quem nela se senta. Dessa palavra também deriva o termo catedral, local onde se encontra instalada uma autoridade religiosa. Quando se diz que alguém conhece um assunto “de cathedra”, sobre este se deseja afirmar que ele tem um domínio sobre o tema em voga.
Não sou uma literata “de cathedra”, não conheço com profundidade as nuanças da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua yorubá. Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores. Sou brasileira. Sou baiana. A sabedoria ancestral do povo africano, que a mim foi transmitida pelos "meus mais velhos" de maneira oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo. Compromisso continua sendo a palavra de ordem. Ela foi sentenciada por Mãe Aninha e eu a acato com devoção. Em um dos artigos que escrevi, eu digo: Comprometer-se é obrigar-se a cumprir um pacto feito, tenha sido ele escrito ou não. O verbo obrigar, que tem origem no latim obligare, significa unir. Portanto, quando dizemos um “muito obrigado”, estamos sugerindo a alguém que nos fez um favor que a ele estaremos ligados, em virtude do favor que nos foi prestado. Obrigação é uma das palavras chaves do candomblé: aquela que abre muitas portas. Fazer uma obrigação ou a obrigação, fica sendo, então, uma forma de estar cada vez mais unido aos oríÿa.
Se minha parte branca estuda as origens latinas da língua portuguesa, minha parte negra estuda a língua africana de que fazemos uso no candomblé: o yorubá arcaico. Nessa língua, comprometer-se é wulewu, palavra que tem a seguinte análise: a raiz wù (agradar), a mesma que forma a palavra wúlò, que significa útil; e lé, que é traduzida como seguir em frente, procurando não ser mais um na multidão. Para o povo yorubá e, consequentemente, para os brasileiros que se guiam pela religião nagô, uma pessoa comprometida é aquela que é útil, pois cumpre a função que lhe foi destinada, e por isto pode seguir em frente, distinguindo-se da massa uniforme; uma pessoa comprometida é especial, pois já encontrou sua especificidade, tornando-se, assim, imortal.

É considerado imortal todo aquele que fez ou faz de sua vida uma obra a ser lida, a ser internalizada. É objetivo da Academia de Letras da Bahia manter viva, na memória de todos, a contribuição que ilustres homens e mulheres deram, no sentido de colaborar para o aperfeiçoamento da sociedade e da humanidade. Se um dia, no Ilé Àÿç Opo Afonjá, eu recebi grossas correntes que simbolizam elos de união com os oríÿa, com meus ancestrais e meus descendentes espirituais; hoje recebo uma corrente que me une a todos que um dia pertenceram e os que ainda pertencem a esta nobre instituição. Honrada estou por ter sido escolhida para sentar na cadeira 33, que tem como patrono um ser tão especial quanto Castro Alves e que foi ocupada pelos imortais: Francisco Xavier Ferreira Marques, Heitor Praguer Fróes, Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araújo.

Se meu discurso tem como base o comprometimento, sigo rememorando os primeiros acadêmicos que ocuparam a cadeira 33.

Francisco Xavier Ferreira Marques foi a pedra fundamental da cadeira 33. Imortal também pela Academia Brasileira de Letras, onde foi o segundo ocupante da cadeira 21. No prefácio de sua obra O Feiticeiro, é citada uma fala do advogado sergipano Jackson Figueredo, através da qual se pode sentir a imortalidade desse homem da política, que era autodidata em literatura: “Xavier Marques merecerá o amor de todo o povo brasileiro, na proporção em que for crescendo a nossa consciência nacional. Tê-lo-á todo, quando levarmos não só à pompa dos programas, mas as escolas, o culto do nosso passado. Quando os nossos homens públicos se derem a esta obra, com menos frases e mais seriedade, os livros de Xavier Marques irão parar às mãos da infância e educá-la para a formação da alma brasileira”. Xavier Marques foi um jornalista e político que nasceu em 3 de dezembro de 1861, na prazerosa Ilha de Itaparica, o que contribuiu para que sua literatura encontrasse nos temas praieiros uma fonte de inspiração. Escrever era sua grande paixão. Poeta, romancista e ensaísta, foi com a novela Jana e Joel que a crítica o consagrou.
A imortalidade de uma pessoa pode estar em sua vida, em sua obra, em sua descendência. Xavier Marques partiu do planeta em que vivemos em 30 de outubro de 1942, mas aqui deixou seu neto, o músico Celso Xavier Marques, hoje com 71 anos, o qual vem dedicando grande parte de sua vida e de sua obra musical a memória do avô, a quem chama carinhosamente de "meu velho escritor itaparicano".
O neto não teve o prazer e a alegria de conhecer o avô na vida física, o que não impediu que entre eles fosse firmada uma bonita ligação espiritual. Foi, provavelmente, essa ligação que inspirou o neto de Xavier Marques a escrever um hino em tributo a seu avô, o qual se constitui uma verdadeira biografia sobre o mesmo. A arte musical de Celso Xavier Marques contribui, assim, para tornar a obra de Francisco Xavier Ferreira Marques ainda mais imortal. Celso Xavier Marques traz na letra um elenco dos títulos dos livros publicados por Francisco Xavier Ferreira Marques, os quais são seus trabalhos mais conhecidos, lidos e apreciados: A cidade encantada, A arte de escrever, As voltas da estrada, Jana e Joel, O feiticeiro, Holocausto, Os praieiros, Mar azul, A boa madrasta, Maria Rosa, O arpoador, Sargento Pedro, Insulares, Terras mortas, Pindorama, Terra das palmeiras. Onde estiver, o grande político e escritor baiano há de escutar seu neto cantar: "Deus criou, tão sublime, a sua pena magistral. Fez Xavier Marques, imortal".

O imortal Xavier Marques deixou sua cadeira para ser ocupada por Heitor Praguer Fróes. Filho da histórica e cultural cidade de Cachoeira, nascido no dia 25 de setembro de 1900. Praguer Fróes foi poeta, tradutor, médico e professor. Foi membro não apenas da Academia de Letras da Bahia, mas também de inúmeras outras instituições científicas e culturais, como a Academia de Medicina da Bahia.

Praguer Fróes escrevia com sacrifício. Eu faço uso dessa palavra não no sentido comum que ela possui, como sinônimo de dificuldade, mas em seu sentido original. Escrever para Praguer Fróes era um ofício sagrado, sobre o qual ele dizia: “Quem escreve um livro e o revê e publica passa pelo paraíso e pelo inferno: Pelo paraíso, quando compõe; pelo purgatório, quando retoca; pelo inferno, quando imprime. Pelo paraíso, quando compõe, porque nada é mais agradável do que criar; pelo purgatório, quando retoca, porque nada é tão fastidioso quanto modificar; pelo inferno, quando imprime, porque nada é mais enervante que estar interminavelmente a corrigir”. E foi, pensando e sentindo assim, que Praguer Fróes somou em sua biografia livros de poemas, contos, contrafábulas e inúmeras obras científicas. Sacralizar um ofício é um comportamento típico de quem se preocupa e se ocupa com a humanidade. Tanto que Praguer Fróes chegou a abdicar dos direitos autorais de seu livro Lições de Medicina Tropical, em benefício do então futuro Hospital das Clínicas. Praguer Fróes era um humanista nato, pois herdou de seus pais a consciência cidadã.

Não se pode nem se deve falar de Heitor Praguer Fróes, sem falar de sua família. Pai, mãe e filho, todos eles médicos que dedicaram a vida a salvar vidas. Sua mãe, Francisca Praguer Fróes, foi uma das primeiras mulheres formadas em Medicina, pioneira em todas as áreas em que atuou, principalmente na defesa dos direitos femininos. Ela dizia: "Eu sou feminista por herança e convicção"; "A inferioridade da mulher não é fisiológica, nem psicológica; ela é social. Sua escravidão sexual determina sua dependência econômica". O pai de Heitor Praguer Fróes, João Américo Garcez Fróes, foi tão "singular figura humana" que quando precisava interferir no comportamento de um estudante de Medicina, de modo a impedir que este fizesse o doente sofrer desnecessariamente, delicadamente dizia em latim: "Non vi, sed arte!” ("Não pela força, sim pela arte!").
O que nosso confrade o jornalista Jorge Calmon diz sobre o pai de Heitor Praguer Fróes é o princípio que faz de um membro da Academia de Letras da Bahia um imortal; é o principio que faz de qualquer pessoa, letrada ou não, um imortal. Ele diz: "Efetivamente, há homens que se tornam instituições. São Poucos. Constituem exceções. A regra geral é o bitolamento medíocre dos inumeráveis componentes do rebanho humano, que a lei da vida vai tangendo, em marcha entre o nascimento e a morte. Nessa indistinta mediania, as inteligências não brilham, o esforço não avulta, o caráter não logra atingir forma, consistência. É a grande planície dos homens comuns. Vez por outra, desse solo rasteiro sobressai uma eminência. O talento, a virtude, o mérito rompem a vulgaridade e projetam de entre a massa os indivíduos bem dotados, ou que a si mesmo se dotam, e cuja ascensão proclama as faculdades superiores da pessoa humana. Foi Garcez Fróes um desses raros indivíduos".

Em 25 de outubro de 1987, Heitor Praguer Fróes seguiu seu caminho rumo ao reino divinal, para encontrar esta linda família que deixou para todos nós um exemplo de vida registrado em livros.

Seguindo a lei da vida, Heitor Praguer Fróes deixou sua cadeira para ser ocupada por Waldemar Magalhães Mattos, que nasceu na cidade de Entre Rios, em 13 de setembro de 1917, e viveu na Terra por 86 anos. Era homem de números e letras. Bacharel em Ciências Contábeis, ingressou na carreira literária em 1940 pelo caminho jornalístico. O conjunto de sua obra é de um valor histórico imprescindível para a compreensão da Bahia e, consequentemente, do Brasil do século XIX. Tanto que em 2011, século XXI, portanto, dois de seus livros foram reeditados: Panorama Econômico da Bahia e O Palácio da Associação Comercial da Bahia, no qual Waldemar Mattos narra o baile que comemorou, em 1911, o centenário da Associação Comercial da Bahia, fundada em 15 de Julho de 1811: “Suntuoso no seu deslumbramento inexcedível, cheio de encantadora poesia e fulgurante pompa. Sem contestação, foi uma cerimônia de destaque excepcional, cujas impressões os anais das crônicas baianas guardarão para sempre".
Waldemar Mattos também escreveu o livro A Bahia de Castro Alves e foi na sede da Associação Comercial da Bahia que o conclamado Poeta dos Escravos, na verdade poeta dos fracos e oprimidos, fez sua última declamação pública. Na tarde do dia 10 de fevereiro de 1871, apenas cinco meses antes de deixar esta vida, Castro Alves recitou o poema No meeting du Comité du Pain durante uma reunião filantrópica promovida pela colônia francesa em benefício das crianças desvalidas da Guerra Franco-Prussiana.

Waldemar Mattos ligou-se ao patrono da cadeira 33 ao escrever o livro A Bahia de Castro Alves. E ligou-se a mim, atual ocupante desta honrosa cadeira, por ter ele escrito sobre Dona Francisca de Sande, a primeira enfermeira do Brasil. Afinal, eu hoje sou Mãe Stella, uma iyáloríÿa que orienta as pessoas no sentido de cuidarem do espírito, mas um dia fui Maria Stella de Azevedo Santos, uma enfermeira que orientava sobre os cuidados com o corpo físico.

Deixei para falar por último sobre meu antecessor, Ubiratan Castro de Araújo – Bira Gordo – e sobre o patrono da cadeira que hora ocupo Castro Alves – O Poeta dos Escravos –, pelos laços que nos unem. Cada um de nós lutando por honrar e glorificar um povo que, mesmo chegando escravizado ao Brasil, soube fazer história, ajudando na formação de nosso país em todas as áreas. Cada um de nós lutando por esse ideal de acordo com a época em que viveu e com os dons que recebeu do Deus Supremo: A alma poética de Castro Alves gritou clamando pela liberdade física dos negros; Bira Gordo, com sua capacidade única de contar a história e estórias, tudo fez para mostrar a contribuição indiscutível deste povo; eu, como cultuadora de divindades, rogando sempre para que o orgulho que agora estou sentindo não faça com que minha jornada espiritual seja maculada, sigo esforçando-me no sentido de fazer com que a religião trazida pelo povo africano para o Brasil seja melhor compreendida e, assim, mais respeitada.

Em um discurso tão longo, tudo fiz para não cansar os ouvintes. Não sei se estou conseguindo, mas em respeito a meu grande amigo e antecessor na cadeira 33, o historiador Ubiratan Castro de Araújo, tentei alcançar este feito procurando construir meu discurso de posse narrando fatos de modo histórico, mas com a leveza de uma contadora de "causos". Como disse anteriormente, Bira Gordo foi um grande contador da história e de estórias. Nascido em Salvador, em 22 de dezembro de 1948, o Professor Doutor Ubiratan Castro de Araújo foi graduado em História, pela Universidade Católica do Salvador e em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Um estudioso por natureza, fez mestrado em História na Université de Paris X, Nanterre, e doutorado em História na Universite de Paris IV (Paris-Sorbonne). O fato de ter recebido o Troféu Clementina de Jesus da União dos Negros pela Igualdade e a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara Municipal de Salvador mostra o reconhecimento pelo empenho de Bira Gordo contra a discriminação racial. Foram inúmeras as vezes que nos encontramos em seminários, e outros encontros de ordem semelhante, para reafirmar a grandeza histórica do povo negro e sua sabedoria ancestral, que é capaz de orientar qualquer um que dela se aposse. Afinal, sabedoria não tem cor e não pertence a nenhuma raça específica.
A frágil saúde de Bira Gordo, como gostava de ser chamado, não o impediu de dar uma grande contribuição ao mundo intelectual e de transmitir alegria por onde passava e para todos com quem convivia. Sua prestabilidade era incontestável! Nunca se negava a participar de nenhum evento para o qual fosse convidado a contribuir com sua forma única de estoriar a história. Intelectual cinco estrelas; contador de "causos" de estrelas incontáveis. Bira registrou pouco seus vastos conhecimentos.
Foram apenas três os livros por ele escritos: A Guerra da Bahia, Salvador Era Assim - Memórias da Cidade e Sete Histórias de Negro. Editou pouco, mas falou muito, muito, muito... E era uma fala deliciosa de ser ouvida. Em seu único livro de ficção, Sete Histórias de Negro, ele conseguiu reunir muito do que era, sabia e lutava. Para dizer o que Bira era, sabia e lutava, tomarei emprestado o que seu amigo, o jornalista e escritor, Emiliano Queiroz, disse sobre ele: "Quando a barra pesava, quando algum problema o atormentava, Bira punha-se a cantarolar como a se convencer de que os orixás pudessem socorrê-lo ou simplesmente como uma maneira de afastar os maus olhados e buscar socorro na poesia, que ela sempre ajuda - quanto mais quando a alma não é pequena, e a dele era do tamanho do mundo". Concordo, por experiência própria, com a opinião de Emiliano Queiroz sobre Bira: "O mestre que compartilhava sua erudição como quem contasse histórias à beira da fogueira".

Um exemplo claro dessa capacidade que tinha Ubiratan Castro, um intelectual do povo, é a última história escrita em seu livro Sete Histórias de Negro. Intitulada "O Protesto do Poeta", a referida história é muito adequada para este discurso, uma vez que narra uma conversa que acontece em uma sessão espírita entre Castro Alves e um grupo de pessoas. Como bom piadista que era, não escapou da mente criativa de Bira Gordo nem o patrono da cadeira que ocupava na Academia de Letras da Bahia. Para Bira, a vida parecia ser uma piada e a piada uma coisa muito séria. Condensada de maneira irônica no "causo" do protesto do poeta, Bira conta a trajetória da libertação dos escravos no Brasil ocorrida no passado, alertando para a necessidade constante por uma luta pela liberdade, pois as correntes de ferro, antes visíveis, são, no presente, correntes imperceptíveis, que marginalizam e excluem.

Bira Gordo nos deixou a pouco tempo, em 3 de janeiro do ano em curso. Se hoje ainda estivesse conosco, digo fisicamente, é provável que buscasse na poesia de Castro Alves a força que precisamos para continuar enaltecendo um povo guerreiro, ao mesmo tempo pacífico e afetuoso, que soube amar e amamentar quem os escravizou.
Muitas pessoas, no passado e no presente, lutaram para que hoje eu pudesse, de maneira natural, fazer parte desta Academia. Uma delas foi o patrono da cadeira onde me firmo. Antônio Frederico de Castro Alves entoou gritos poéticos na tentativa de despertar a sociedade brasileira para a mais cruel de todas as atitudes humanas: a privação da liberdade. Em 1868, através de seu poema "Vozes d'África", ele clamou:

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
- Infinito: galé! ...
Por abutre - me deste o sol candente,
E a terra de Suez - foi a corrente Que me ligaste ao pé...

Se minha bisavó chegou ao Brasil presa a muitos outros negros africanos, amarrada por correntes que lhe tiraram o maior de todos os bens que pode ter qualquer ser vivo – a liberdade, hoje aqui me encontro acorrentada por um adorno que me une a todos os baianos, brasileiros, humanos, letrados ou não letrados. O Poeta dos Escravos desejava ver todos os homens tratados com igualdade de condições; queria ver desacorrentados os negros escravizados. Por isso, Castro Alves escreveu um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, "O Navio Negreiro", no qual denunciava as atrocidades sofridas pelos africanos na travessia oceânica que foram obrigados a se submeterem:

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

O baiano Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847 na fazenda Cabaceiras, antiga freguesia de Muritiba, que é hoje a cidade de Castro Alves. Era dotado de uma constituição física frágil, mas de uma forte alma humanizada, que contestava as barbaridades típicas da época em que viveu – o século XIX. Foi corajoso o suficiente para que, com apenas 21 anos de idade, obrigasse os fazendeiros donos de escravos a escutá-lo recitar "O Navio Negreiro", pois estando todos em uma comemoração cívica não seria politicamente correto retirar-se do recinto.
A poesia de caráter social de Castro Alves era típica da terceira geração do Romantismo brasileiro, chamada Condoreira, pois o condor é uma ave símbolo de liberdade. Representante da burguesia liberal, Castro Alves foi o último grande poeta da geração Condoreira que, por meio da literatura, instigava o povo para exigir a abolição da escravidão e a proclamação da república, aproximando, assim, o Romantismo do gênero literário seguinte – o Realismo.

Se as causas sociais eram o ideal de Castro Alves, o amor era sua fonte de inspiração. E como são lindos seus poemas de amor. Escutemos com a alma seu poema "As Duas Flores", que na Escola Nossa Senhora Auxiliadora, de propriedade da professora Anfrísia Santiago, eu costumava recitar para minhas colegas no horário de recreio:
São duas flores unidas
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo, no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!

Intensamente viveu Castro Alves a sua curta vida de 24 anos. Em 6 de julho de 1871 ele não pode mais sentir na carne os prazeres do amor. Também não pôde ver os escravos desacorrentados, não pôde assistir a seu ideal concretizado. Mas sua curta vida é longa. Estamos hoje, aqui, nos deleitando com seus versos. Uma senhora de 96 anos, falando sobre seu primo Castro Alves, um dia me disse: "Por amor ele viveu, por amor ele morreu. Mas quem morre por amor não morre: torna-se imortal."

Eu sou o quinto elo da correte que forma a cadeia de iyáloríÿa do Ilé Àÿç Opo Afonjá. Eu sou a quinta pessoa a ocupar a cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia. O número cinco é meu guia. Há setenta e quatro anos atrás, nesta mesma data, eu fui iniciada para o oríÿa caçador – Õÿösi. Hoje é uma quinta-feira, dia consagrado a meu oríÿa. Nada disso foi programado, nada disso é coincidência. É magia e destino!

Na cadeira 33, e em todas as outras que compõem esta nobre instituição, cabe pessoas de todas as profissões, cores, religiões, estilos literários... Na cadeira 33, e em todas as outras desta instituição, só não cabe vaidade, nem modéstia. Não sendo vaidosa, digo que, com certeza, não fui escolhida para ser uma acadêmica pelo fato de escrever livros com sofisticação gramatical. Não sendo modesta, tenho a convicção de que se hoje aqui estou é por escrever minhas experiências de modo a cumprir meu compromisso sacerdotal. Não se esqueçam que compromisso e união são as bases em que meu discurso foi fundamentado. Sentar-me na cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia era meu destino.

O que escreveu meu confrade Paulo Costa Lima, quando fui escolhida para esta confraria, transmite com perfeição meus pensamentos sobre esse novo envolvimento em minha vida. Ele assim pensou e escreveu: "Hoje, 25 de abril, a Academia de Letras da Bahia jogou os búzios e o nome que apareceu foi o de Mãe Stella de Oxossi, para ocupar a cadeira cujo patrono é Castro Alves, sendo o grande historiador baiano Ubiratan Castro o último ocupante. A escolhida se fez presente logo após a votação para o abraço e a manifestação do compromisso. Foi uma bela cena, e muito rara. Um encontro de erudições da África e da Europa. Na verdade, um gesto inovador que não pode deixar de ser levado em conta como paradigma de abertura de horizontes e de convivência das diferenças... na luta de afirmação da tradição afro-brasileira e, portanto, pelo respeito aos direitos à alteridade e identidade própria.Diante da contribuição civilizatória que a África trouxe ao Brasil, alguns preferem calar, outros reconhecem mas acentuam a natureza oral dos conhecimentos e saberes.Mãe Stella rompeu essas barreiras (entre tantas), e passou a defender uma representação mais sintonizada com os novos tempos, conectando oralidade e manifestações letradas...."
Como já disse, sou bisneta de portugueses e africanos. Essas duas descendências não são somente minhas. São do Brasil. Quantas e quantas vezes estamos falando palavras de origem africana, pensando estar falando em português? Tôrô é chuva, görô é cachaça, gògó é garganta, todas elas palavras da língua yorubá, que precisam ser preservadas em sua origem. Talvez muitos tenham estranhado, em alguns momentos do discurso, ser falado os oríÿa, as iyáloríÿa. Não é erro. É que na língua yorubá as flexões gramaticais, no que se refere a número, são construídas de maneira diferente da língua portuguesa. Essa herança faz com que muitas vezes o povo fale uma mistura de português com yorubá. Sobre os dialetos africanos, a confreira Ieda Pessoa de Castro conhece o assunto de cathedra. Escrevo com a intenção maior de salvaguardar a língua e a sabedoria de meus ancestrais africanos, pois tendo sido este povo ignorado por séculos, seus conhecimentos correm o risco de serem esquecidos ou transmitidos de maneira deturpada.

Ser iniciada aos catorze anos de idade, fez com que eu tivesse a vantagem da inocência. Sem saber da responsabilidade que me esperava, eu brincava de caçador. Afinal, fui consagrada para o oríÿa Õÿösi – a divindade caçadora. Na minha mocidade, pude conciliar a profissão com a religião, cuidando do ser humano como enfermeira sanitarista durante trinta e cinco anos, quando me aposentei, ao tempo em que servia também aos deuses.
Curiosamente, alguns mais velhos insistiam em me repassar os conhecimentos que possuíam sobre os fundamentos do candomblé. Em uma época em que nossa tradição era transmitida apenas oralmente, Bida de Iyemonjá, por exemplo, contrariava o costume e de maneira obstinada mandava que eu anotasse nossas conversas. Muito tímida e respeitosa, não era fácil fazer o que ela mandava.
Com o passar do tempo, entendi que os mais velhos queriam munir-me de conhecimentos, pois cada dia eu recebia mais informações. Só em dezenove de março de mil novecentos e setenta e sete, quando fui escolhida iyáloríÿa do terreiro de candomblé onde fui iniciada – o Ilé Àÿç Opo Afonjá, na Bahia –, é que pude enfim compreender o porquê de toda aquela atenção para comigo. Nos anos que se seguiram, não apenas os mais velhos, mas também pessoas mais novas me enviavam importantes materiais de pesquisa sobre a religião que nos foi legada pelos africanos. As minhas atividades como iyáloríÿa são muitas e nunca me permitiram organizar tudo que eu recebia por revelação divina ou por gentileza dos homens, o que muito me preocupava.

Como iniciada que sou, tenho tendência a resguardar os mistérios, evitando retirar os véus que os encobrem. Por isso, não foi uma decisão nada fácil fazer uso da tradição escrita para registrar os conhecimentos que adquiri através da tradição oral. A ousadia veio da necessidade, mas a coragem veio da permissão dos oríÿa. Diante da modernidade, essa ficou sendo minha única alternativa para evitar deturpações da essência de uma religião milenar. Não sou uma escritora! Sou uma iyáloríÿa que escreve! Sou uma iyáloríÿa que escreve com o objetivo primeiro de não deixar perder a valiosa herança de nossos ancestrais. Assim foi que optei por oferecer a todos, indistintamente, a riqueza da filosofia yorubá, de maneira escrita, porém respeitosa, evitando expor fundamentos que interessam, apenas, aos sacerdotes, por serem eles responsáveis pela execução de rituais. A busca pela ampliação do conhecimento deve ter como interesse principal o aprimoramento pessoal, visando uma amplificação das capacidades enquanto ser humano.

Se eu chamo meus colegas de academia de confrades e confreiras, é porque estamos juntos na mesma confraria. No Ilé Àÿç Opo Afonjá, cumprimentamos uns aos outros chamando-nos de irmãos, estamos em uma irmandade. Confraria, irmandade, comunidade...elos unidos formando uma corrente por um objetivo comum. Na Academia de Letras da Bahia, o objetivo é cultuar para preservar a tradição escrita. No Ilé Àÿç Opo Afonjá, o objetivo é cultuar para preservar a tradição oral. Sou uma acadêmica oriunda da família Opo Afonjá, que tem como Iyá Nlá – a Grande Mãe – Ôba Biyi, Mãe Aninha, que no início do século XX escreveu um adurá (uma reza), na língua yorubá, pedindo bênçãos para a construção do Terreiro de Candomblé que tem como patrono o oríÿa ßàngó: seu élédá, o dono de sua cabeça.

Mãe Aninha assim rezava em yorubá:
Ôba Kawoo
Ôba Kawoo Kabiesile
Kö mö èsi kunlè
Ôba Kawoo
Ôba Kawoo Kabiesile
Çkùn
Esse adurá, em tradução, quer dizer: "Xangô, Rei Leopardo cuja decisão e ação ninguém poderá questionar. Dê-me como resposta a construção completa desta casa". Através dessa reza em forma de cântico, Mãe Aninha pediu condições para construir o Ilé Àÿç Opo Afonjá. Ainda hoje, nós, seus descendentes espirituais, continuamos entoando sua oração, todas as quartas-feiras na "Casa de Candomblé" construída por ela, pedindo forças para nos mantermos firmes em nossas decisões; pedindo humildade para mudar as ações que nos sejam questionadas, apenas quando elas forem justas. Somos descendentes de Mãe Aninha! Somos filhos de ßàngó! Somos filhos da justiça! Somos educados, polidos e firmes. Somos filhos da resistência!
Se Mãe Aninha pediu a seu oríÿa, ßàngó, forças para construir seu "Terreiro de Candomblé", eu peço a meu oríÿa, Õÿösi, que dê força, saúde e prosperidade a mim e a todos aqui presentes, principalmente aqueles cujos corações são puros.
Mãe Stella puxa o cântico em homenagem a seu oríÿa:
Olówo mo npe mi ô iye iye
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe mi ô iye iye
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe ni ná së ni dé ná


Fonte: blog Maria Preta


Peito Vazio - Roberta Sá e Ney Matogrosso


Um, dois, feijão com arroz

postado por Cleidiana Ramos
14 de agosto de 2013



Mãe Stella faz reflexão sobre importância da oralidade e da memória. Foto: Fernando Amorim/ Ag. A TARDE/06.12.2012

Maria Stella de Azevedo Santos

“Lá em cima do outeiro tem uma gata borralheira, quem falar primeiro, come tudo o que é porqueira Menos eu que sou rendeiro, que como carne de carneiro; menos eu que sou rainha, que como carne de galinha”.

Essa é uma parlenda, geralmente dita por um grupo de crianças, que vem sendo transmitida de geração para geração, com o intuito de treinar o ser humano para a importante capacidade de se manter em silêncio. O ato de silenciar-se, tão necessário na vida adulta, é também usado como forma disciplinar através de um provérbio que diz: ” A palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro”.

Parlendas, ditados populares, adivinhações, brincadeiras, lendas… tudo isso forma o conjunto de sabedoria popular, cuja importância é tão grande para a formação do indivíduo e da sociedade, que existe uma ciência específica para estudar este tipo de saber. Folclore é o nome dessa ciência. No dia 22 de agosto é comum encontrarmos as escolas em movimentação, festejando este dia e o que ele significa.

Quando pensei em falar sobre o folclore, neste artigo, eu tinha uma intenção muito séria, que era a de alertar as escolas e os professores sobre o pouco aprofundamento que este setor da sociedade tem sobre o assunto e do quão pouco proveito está tirando dos valorosos saberes populares, na formação de seus alunos, tanto no aspecto intelectual, quanto emocional. Mesmo sabendo que apesar da pedagogia atual não incentivar a memorização dos conhecimentos, e sim a compreensão dos mesmos, não é possível negar a importância de exercícios de memorização em todas as fases da vida.

Aprendíamos na escola, por exemplo, a memorizar o nome e ordem dos planetas, recitando: “Minha velha, traga meu jantar, sopa, uva, nozes e pão”, onde a primeira letra de cada palavra coincidia com a primeira letra de um planeta. Hoje, é comprovado pela ciência que exercitar a memória é tão necessário quanto exercitar os músculos.

Infelizmente, ou felizmente, não possuo uma natureza doutrinadora; não consigo me sentir à vontade nem com direitos de chamar a atenção de quem quer que seja. Até mesmo porque minha experiência me diz que cada ser e cada instituição tem consciência do que precisa ser trabalhado no sentido de aperfeiçoar-se cada dia mais. Por todos os motivos anteriormente citados é que resolvi, mais uma vez, seguir minha natureza e também obedecer a minha mãe de santo que costumava orientar seus filhos espirituais dizendo: ” A vida é bela e gozá-la convém”.

Ao tomar essa decisão, minha memória começou a trazer à superfície de minha mente, alegres e sábios conhecimentos populares, que fizeram com que o fato de escrever este artigo se transformasse em uma grande diversão. Conhecimentos esses que, usando uma palavra típica da turma jovem, passarei agora a compartilhar com meus leitores, na esperança de que eles se divirtam tanto quanto eu.

Que forma interessante o povo escolheu para comunicar a sua família ou comunidade que está brigado com um irmão: “Éramos dois irmãos unidos, todos dois de uma cor; nunca eu fiquei sem missa, mas meu irmão ficou. Para festas e banquetes, a mim convidarão; para festas de cozinha, convidarão meu irmão”.

Na verdade, isso é uma adivinhação cuja resposta é vinho e vinagre. No momento atual da humanidade, ela já pode contar com as técnicas dos fonoaudiólogos para conseguir que as palavras sejam bem expressadas. Mas no passado, a sabedoria popular aperfeiçoava a fala humana através de trava-línguas, um poderoso exercício de dicção que incentiva, de maneira lúdica, o gosto das crianças pela pronúncia correta de palavras difíceis:

“Num ninho de mafagafos, seis mafagafinhos há; quem os desmafagafizar, bom desmafagatizador será”. A rapidez da fala também podia ser treinada: “Quero ver você dizer, sete vezes encarrilhado; sem errar, sem tomar fôlego, vaca preta, boi pintado”. Vamos falar de maneira ligeira, tomando cuidado para não dizer besteira: “Pedro tem o peito preto, o peito de Pedro é preto; quem disser que o peito de Pedro não é preto, tem o peito mais preto que o peito de Pedro”.

Mãe Stella é Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Quinzenalmente, sempre às quartas-feiras, ela escreve no Jornal A Tarde

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Axé, Mãe Stella.


Balaio de Ideias: O que as folhas cantam

postado por Cleidiana Ramos

2 de maio de 2013


O aniversário é de Mãe Stella, mas quem ganha o presente somos nós. Como estava fora na quarta-feira passada em que saiu seu artigo em A TARDE, aproveito que hoje é o aniversário dessa fonte de sabedoria para publicar mais um de seus belos ensinamentos e desejar saúde e mais muitos anos de vida entre nós. Axé, Mãe Stella.



Mãe Stella faz aniversário hoje. Foto: Margarida Neide/Ag. A TARDE/ 29.11.2012


Maria Stella de Azevedo Santos


O universo pulsa; o universo fala. Escutar o universo é escutar as batidas do próprio coração. Não as batidas físicas, mas o pulsar abstrato, entusiasmado, de um coração pleno. Quando falo pleno, provavelmente levo as pessoas a pensarem em cheio de alegria, prosperidade, beleza… Engano! Quando falo pleno, refiro-me a um coração cheio de experiências vividas e absorvidas de maneira completa.

Tenham sido essas experiências sentidas como felizes ou dolorosas. O universo fala, as folhas falam, tanta para quem canta para encantá-las, quanto para as pessoas que conversam com elas ou simplesmente lhes dão um bom dia a cada dia que amanhece. As folhas, ou melhor, as plantas são seres vivos, como é vivo todo o universo.

É por isso que no candomblé temos um ritual para reverenciar as folhas e tudo o que elas nos ensinam. Nas folhas não existem apenas substâncias químicas usadas pelos laboratórios para curar nossas doenças físicas; nelas estão contidos ensinamentos ancestrais, que ao serem traduzidos por aqueles que se permitem escutar o universo são verdadeiros remédios para a alma, que ajudam a curar, mas também a prevenir feridas que retardem ou impeçam que a mesma encontre seu destino.

Transmitirei um pouco do que “escutei” de algumas das folhas para quem cantei durante setenta e quatro anos da minha vida sacerdotal.

Alfavaquinha-de-cobra – É a folha que acalma os olhos. A folha que nos faz “videntes”, que amplia a nossa visão, e ao mesmo tempo impede de vermos aquilo que não é necessário ou que não nos agrada. Folha que vem sempre em primeiro lugar, silenciosamente canta a serenidade, alertando a todos para a necessidade do falar pouco, para sofrer menos. A calma é sempre cantada, chamada, em primeiro lugar. Não se pode, ou melhor, não se deve entrar em um ambiente sem que seu olhar esteja manifestando calma, um olhar calmo o suficiente para enxergar as coisas com clareza e nitidez, sob todos os ângulos.

A calma é parceira inseparável do silêncio. Verdadeiros tratados podem ser escritos sobre o silêncio, porém, “silenciosamente” se pode dizer: silêncio é não falar o que não é necessário ser falado. Basta, portanto, não falar aquilo que não é preciso, que a pessoa pode considerar-se em estado de silêncio, passo fundamental para que se possa atingir o estado de calma. Estar calado não necessariamente é estar em silêncio. E o oposto é verdadeiro, no silêncio muito se diz.

Bilreiro – É desta árvore que são tirados os bilros usados pelas rendeiras para fazer um dos mais ricos artesanatos de nosso país. Folha de Xangô que ilumina do alto, nos protegendo e nos erguendo. É a folha do trovão que, como o forte grito de Xangô, acorda quem está dormindo. Afinal, “quem muito dorme nada aprende e nada vê”. E é Xangô, Deus do Trovão, orixá de “olhos de orogbo”, sempre abertos e atentos, que com sua voz rouca grita para que nos levantemos e, como guerreiros, enfrentemos a nossas lutas diárias.

Vassourinha-de-Oxum – Cultuamos com muita força a folha mais doce que o mel, para que ilumine nossos mistérios. O mel é símbolo da doçura natural, isto é, aquela que nos é oferecida pela natureza. Oxum, assim como o mel, representa a fala doce que nos embriaga. A planta conhecida popularmente como vassourinha-de-oxum nos ensina a termos cuidado como as pessoas muito adocicadas, que podem estar usando a fala doce para nos deixar embriagados, conseguindo tirar de nós aquilo que desejam.

Bambu – Folha de vida longa, que é firme e escapa das tempestades, a quem suplicamos que nos torne fortes e vigorosos. O bambu segue em direção ao céu com a humildade e a sabedoria dos grandes mestres. No seu caminhar, reconhece a necessidade de se inclinar perante forças maiores, como a da tempestade. O Bambu é sábio: para não quebrar ele enverga.

Espada-de-Oxossi – Para a folhas com formato de espada pedimos que sejamos bastante fortes para que, rapidamente, possamos cortar o mal e as armadilhas que são feitas para atrapalhar a nossa existência. Afinal, a espada é símbolo de destruição da injustiça, da maleficência e da ignorância.


Maria Stella de Azevedo Santos é Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Quinzenalmente, ela escreve em A TARDE, sempre às quartas-feiras.

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Mãe Stella de Oxóssi, Iya Odé Kayode

Ialorixá toma posse na Academia de Letras da Bahia

  • Mãe Stella é a 1ª líder de terreiro e a 1ª negra a entrar para a instituição



Mãe Stella ocupará a cadeira que tem como patrono Castro Alves -
Foto: Lucio Távora/Agência A Tarde

Mãe Stella ocupará a cadeira que tem como patrono Castro Alves -LUCIO TÁVORA/AGÊNCIA A TARDE

SALVADOR - Pela primeira vez, nos 96 anos da instituição, uma ialorixá tomou posse na Academia de Letras da Bahia. A protagonista deste marco histórico é Maria Stella de Azevedo Santos, de 88 anos, líder do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais tradicionais terreiros do Brasil.
Mãe Stella é a primeira negra a conquistar vaga na academia e ocupará a cadeira 33, que tem como patrono um abolicionista: Castro Alves. E mais: o último ocupante da vaga foi o historiador Ubiratan Castro de Araújo, intelectual combativo na luta contra o racismo.
— Mãe Stella tem uma particularidade: não necessitou sair de sua literatura pessoal, da sua experiência de sacerdotisa para galgar essa posição. Ela não precisou de articulações literárias complexas e inadequadas para ganhar o título com que representa todos nós — diz o historiador e religioso do candomblé Jaime Sodré.
Com a chegada de mãe Stella, a ALB também abre as portas para a representante de uma religião que luta contra um preconceito histórico. Há 37 anos, os terreiros tinham que pedir à polícia para realizar seus ritos. Desde então reiteram suas ações em busca do respeito, para o qual mãe Stella contribuiu de forma particular.
Em 1983, ela esteve à frente da elaboração de um manifesto que conclamava os membros de candomblé a assumirem a sua religião e pedia o afastamento do sincretismo vinculado ao catolicismo. O presidente da ALB, Aramis Ribeiro Costa, diz que ela foi eleita por unanimidade.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/pais/ialorixa-toma-posse-na-academia-de-letras-da-bahia-9943037#ixzz2emhxALZe 
 

Maria Stella de Azevedo Santos, conhecida como Mãe Stella de Oxóssi, Iya Odé Kayode, (Salvador, 2 de maio de 1925) é a quarta filha de Esmeraldo Antigno dos Santos e Thomázia de Azevedo Santos. Órfã em tenra idade, foi adotada pela irmã de sua mãe D. Archanja de Azevedo Fernandes, esposa do tabelião e proprietário de cartório José Carlos Fernandes.

É a Iyalorixá do Candomblé, religiões afro-brasileira. Mãe Stella foi iniciada por Mãe Senhora em 1939 e tomou posse como Iyalorixá do Ilê Axé Opó Afonjá por morte de Mãe Ondina de Oxalá. É a quinta sacerdotisa do Candomblé de São Gonçalo do Retiro, dirigindo o Opó Afonjá desde o dia 11 de junho de 1976.
Mãe Stella estudou no tradicional colégio baiano Nossa Senhora Auxiliadora, dirigido pela professora soteropolitana D. Anfrísia Santiago. É enfermeira aposentada (funcionária pública estadual) formada pela Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, com especialização em Saúde Pública. Exerceu a profissão por mais de trinta anos.
Notabilizou-se por ser a primeira iyalorixá de um terreiro tradicional a combater o sincretismo religioso com a Igreja Católica.
Em 1980 fundou o Museu Ohun Lailai: o primeiro de um terreiro de candomblé, auxiliada pela psicóloga Vera Felicidade de Almeida Campos, a Oni Kowê do Opô Afonjá. É a presidente emérita do Instituto Alaiandê Xirê, de quem fora a presidente fundadora.
Sacerdotisa de vanguarda é respeitada por suas idéias no longo do território nacional e muitos outros países. Tem proferido palestras e participado de seminários em diferentes partes do Brasil e do mundo.
Em 2001 ganhou o prêmio jornalístico Estadão na condição de fomentadora de cultura.

Em 2005, ao completar oitenta anos, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia. É detentora da comenda Maria Quitéria (Prefeitura do Salvador), Ordem do Cavaleiro (Governo da Bahia) e da comenda do Ministério da Cultura.

Ilê Axé Opó Afonjá, (Casa de Força Sustentada por Afonjá), Centro Cruz Santa do Axé do Opó Afonjá, fundada por Eugênia Ana dos Santos, em 1910.

* O Tombamento Terreiro Opo Afonjá relizado em 28 de julho de 2000, pelo IPHAN
* Endereço: Rua Direta de São Gonçalo do Retiro, 557, Cabula – Salvador, Bahia
* Livro Histórico: Inscrição:559. Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico: Inscrição:124 Nº Processo:1432-T-98

A história do Terreiro do Axé Opô Afonjá (outros Nomes: Terreiro de Candomblé do Axé Opô Afonjá; Ilê Axé Opô Afonjá) assim como a do Terreiro do Gantois, está intimamente vinculada ao Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho.

Este é o terreiro mais antigo de que se tem notícia e o que, segundo vários autores, serviu de modelo para todos os outros, de todas as nações. Um grupo dissidente do Terreiro da Casa Branca, comandado por Eugênia Anna dos Santos, fundou, em 1910, numa roça adquirida no bairro de São Gonçalo do Retiro, o Terreiro Kêtu do Axé Opô Afonjá.

O terreiro ocupa uma área de cerca de 39.000 m2. As edificações de uso religioso e habitacional do terreiro, ocupam cerca de 1/3 do total do terreno, em sua parte mais alta e plana, sendo o restante ocupado pela área de vegetação densa que constitui, nos dias de hoje, o único espaço verde das redondezas.
Filhas-de-santo do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá

Por força da topografia do terreno, as edificações do Axé Opô Afonjá se distribuem mais ou menos linearmente, aproveitando as áreas mais planas da cumeada, tornando, no acesso principal, um “terreiro” aberto em torno do qual se destacam os edifícios do barracão, do templo principal – contendo os santuários de Oxalá e de Iemanjá -, da Casa de Xangô e da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos.

A organização espacial do Axé Opô Afonjá mantém as caracteríticas básicas do modelo espacial típico do terreiro jejê-nagô. Esses mesmos elementos, são também encontrados nos terreiros da Casa Branca e do Gantois, apenas com uma diferença: no Axé Opô Afonjá o barracão é uma construção independente, ao passo que nos dois outros terreiros ele está incorporado ao templo principal.



Sacerdotisas
Nome – período que exerceu o cargo
* Mãe Aninha – 1909-1938
* Mãe Bada de Oxalá – 1939-1941
* Mãe Senhora – 1942-1967
* Mãe Ondina de Oxalá – 1969-1975
* Mãe Stella de Oxóssi – 1976

Fonte: Correio da Bahia , Wikipédia

Livros da Sacerdotisa: