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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

EXAGERADO - ARNALDO ANTUNES -




(Cazuza / Ezequiel Neves / Leoni)



Amor da minha vida

Daqui até a eternidade

Nossos destinos foram traçados

Na maternidade



Paixão cruel desenfreada

Te trago mil rosas roubadas

Pra desculpar minhas mentiras

Minhas mancadas



Por você eu largo tudo

Vou mendigar, roubar, matar

Até nas coisas mais banais

Pra mim é tudo ou nunca mais



Eu nunca mais vou respirar

Se você não me notar

Eu posso até morrer de fome

Se você não me amar



Por você eu largo tudo

Vou mendigar, roubar, matar

Até nas coisas mais banais

Pra mim é tudo ou nunca mais



Exagerado

Jogado aos teus pés

Eu sou mesmo exagerado

Adoro um amor inventado
 
 
 

Choro bandido


É preciso fazer a distinção entre cancionista e neo-sereia. Enquanto o primeiro "tem um controle de atividade que permite equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia, distraidamente, como se para isso não despendesse qualquer esforço (...) é um gesticulador sinuoso com uma perícia intuitiva muitas vezes metaforizada com a figura do malandro, do apaixonado, o gozador, do oportunista, do lírico, mas sempre um gesticulador que manobra sua oralidade, e cativa, melodicamente, a confiança do ouvinte" (TATIT: 1996, p. 9), a neo-sereia se utiliza das configurações do cancionista para situar o ouvinte no mundo.
Ou seja, de forma perigosamente reducionista, mas absolutamente verificável, podemos dizer que toda neo-sereia é cancionista em ação, mas nem todo cancionista é neo-sereia posto que para ser esta aquele depende do sujeito cancional gerado da aproximação entre quem canta e quem ouve. Dito de outro modo, a neo-sereia está quando o sujeito cancional - a entidade concreta e invisível resultado da fruição e do entendimento do ouvinte - se materializa. Assim sendo, fica claro que a preocupação neste trabalho é com a maneira de cantar e suas consequências.
E isso não tem nada de metafísico, ou muito pouco. "É sobre nossos sentidos, e unicamente sobre eles, que a música age diretamente (mesmo no canto vocal, existe 'um charme anterior ao da expressão')", anota Claude Lévi-Strauss em Olhar Escutar Ler (1997, p. 73). A neo-sereia é a voz que canta o ouvinte de dentro e por trás da entoação do cancionista. Esta voz carrega a mitologia do ouvinte que se reconhece plasmado no modo charmoso de dizer do cancionista. São as relações estabelecidas e equalizadas pelo cancionista entre o ouvinte e o mundo ao redor o que proporcionam a permanência do canto sirênico: tão individual quanto efêmero, pois depende do instante-já da escuta. É assim que a semântica contida na letra de uma canção, pensada pelo compositor, pode expandir seus significados.
A canção sirênica equilibra, não necessariamente sem dor para quem ouve, os acontecimentos que a precederam e aqueles que a seguem. O contato com o canto sirênico entoado pelo cancionista promovido à neo-sereia faz o ouvinte se reencontrar com o ritmo de sua existência. E isso ignora o "bom" e o "mau" gosto, bem como ignora o pensamento que diz que um ouvido treinado, refinado e sensível prescinde das palavras. Ora, se são as palavras vocalizadas por alguém o que afirma a existência deste alguém - irmão do ouvinte no mundo, porque se reconhece naqueles sentimentos performatizados na voz, "há como que um sentimento de solidariedade com o momento passional vivido" (TATIT: 1986, p. 26) - como desprezá-las e fazer desse desprezo um sintoma de sensibilidade superior?
As palavras não enfraquecem a universalidade da linguagem musical, posto que é no ritmo, tal e qual pensado por Octávio Paz, dado a elas, pela voz de alguém, que aqui chamamos neo-sereia, mais do que aquilo que elas dizem, que reside a eficácia do despertar das sensações. "A melodia entoativa é o tesouro óbvio e secreto do cancionista", anota Tatit (1996, p. 11). "A melodia do meu samba põe você no lugar", canta Caetano Veloso. No laço tecido entre as palavras e seus sons - equilibrados na voz sirênica - mora o êxito da comunicação.
A comunicação é resultado do pacto entre locutor (destinador) e ouvinte (destinatário). Esse pacto rege a premissa de que aquela maneira de dizer do destinador é a que melhor diz o desejo do ouvinte. Este sabe que aquele "é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente".
"Eu minto, mas mina voz não mente", canta Maria Bethânia. "Mesmo que os cantores sejam falsos como eu / Serão bonitas, não importa / São bonitas as canções", canta Chico Buarque. É a neo-sereia quem mente sentir o que de fato sente, pelo ouvinte, para enredar este na sedução. O ouvinte, sempre carente de mentiras sinceras que lhe estimulem verdades, encontra na credibilidade entoativa do cancionista o canto sirênico necessário.
Tomando como exemplo a canção "Choro bandido", de Edu Lobo e Chico Buarque (Na carreira, 2012), cujos versos iniciais já foram aqui citados - "Mesmo que os cantores sejam falsos como eu / Serão bonitas, não importa / São bonitas as canções" -, podemos identificar o mecanismo da passionalização como elemento persuasivo utilizado pelo cancionista de choro bandido, desonesto, fingido.
"Ao investir na continuidade melódica, no prolongamento das vogais, o autor está modalizando todo o percurso da canção com o /ser/ e com os estados passivos da paixão (é necessário o pleonasmo). (...) A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível psíquico. A ampliação da frequência e da duração valoriza a sonoridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão de emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência introspectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão que, em geral, já vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo" (TATIT: 1996, p. 22-23).
Composta para a peça O corsário do Rei (1985), de Augusto Boal, "Choro bandido", ao ir revelando as estratégias do sujeito da canção, portanto, metacanção, aponta alguns dos mecanismos de sedução utilizados pela neo-sereia: o fingimento - "Mesmo que você feche os ouvidos / E as janelas do vestido / Minha musa vai cair em tentação" - e a mirada retrospectiva da história do gesto de cantar - "Quando um deus sonso e ladrão / Fez das tripas a primeira lira / Que animou todos os sons / E daí nasceram as baladas / E os arroubos de bandidos como eu".
A referência ao deus grego Hermes é clara. Protetor dos ladrões, ele teria construído a primeira lira, instrumento de acompanhamento rítmico-melódico da poesia e da canção. Em um de seus Hinos, Homero assim descreve a ato: "Ajustou, na medida, umas talas de cálamo exatas, / E, do dorso através e da pele, enfiou no quelônio / E, conforme pensava, uma pele de boi esticou / E dois braços extremos dispôs, por travessa ajuntados. / Sete cordas de tripa de ovelha estendeu harmoniosas. / Ao depois de fazê-lo, tomou do amorável brinquedo / E co’um plectro uma a uma provou cada corda, aos seus dedos / Ressoava tremenda" (Hinos homéricos, UNB, 2003).
Aí estão as tripas de que fala o sujeito da canção "Choro bandido". Mas ele vai além, pois, se tomarmos a popular expressão de domínio público "fez das tripas coração", entendemos que, falso, o que o sujeito da canção está tematizando é o fingimento implícito em toda canção. Ele faz da dor do desejo (das tripas) de não ter o outro o seu motor (coração) do canto. O engenho é complexo e bonito, feito para sedutor o ouvinte. Ou seja, a referência ao deus quer significar o próprio trabalho do artista: cancionista, poeta - sujeito da canção. Ele sabe que "a beleza existe sozinha", como canta Arnaldo Antunes, e aponta para sua intervenção de cantor como aquilo que, falseando sentimentos e sensações, embeleza e assalta a vida do outro no tecido das palavras e da melodia na voz. É assim que o sujeito da canção promove sua canção a canto de sereia.
O sujeito de "Choro bandido" é lúcido e tematiza as peripécias de todo cancionista: a malandragem necessária para equilibrar oral e vocal, palavra na melodia cujo objetivo é a sedução, o roubo dos sentidos do ouvinte. Situação da qual nem Ulisses escapou: "Mesmo que você feche os ouvidos / E as janelas do vestido, / Minha musa, vai cair em tentação". Em Homero, na verdade, são os companheiros de Ulisses quem têm os ouvidos tapados, porém, segundo o sujeito da canção, contrariando Adorno, nem mesmos estes se mantiveram imunes ao canto das sereias já que podiam imaginar. "Uma rodela de cera cortei com meu bronze afiado, / em pedacinhos, e pus-me a amassá-los nos dedos possantes. / Amoleceu logo a cera, por causa da força empregada / e do calor grande de Hélio, o senhor Hiperiônio esplendente. / Sem exceção, depois disso, tapei os ouvidos dos sócios (...) fiz sinal com os olhos aos sócios que as cordas / me relaxassem; mas eles remaram bem mais ardorosos" (HOMERO: 2000, p. 214).
O canto mavioso, que desvia o ouvinte da rota segura em direção à morte, está concentrado nos versos: "E eis que menos sábios do que antes / Os seus lábios ofegantes / Hão de se entregar assim: / Me leve até o fim. / Me leve até o fim". Ou seja, embriago no enredo vocal, no jogo poético, caberá ao ouvinte pedir mais, para ir mais fundo e até o fim. Versos como "Mesmo porque estou falando grego / Com sua imaginação" reforçam a tese de Tatit de que em canção não importante muito o que é dito, mas o modo - a gestualidade - do dizer.
Tomando ainda como referência a mitologia grega para decifrar seus modos de bandido, de jogador que dribla os empecilhos, o sujeito dirá: "Mesmo que você fuja de mim / Por labirintos e alçapões, / Saiba que os poetas, como os cegos, / Podem ver na escuridão", referindo-se ao labirinto de Dédalo e ao adivinho Tirésias. É quando, semelhante ao adivinho, alcança verdades incompreensíveis (das musas) ao homem comum, e traduz estas verdades para qualquer um, que o sujeito da canção, invenção do cancionista, promove este a neo-sereia.
E vale ressaltar que para o sujeito de "Choro bandido" a musa é o próprio outro-ouvinte da canção. É deste que o sujeito astuto retira os elementos de sedução - carências e excessos, devolvendo tudo de forma processada esteticamente, fingida, sedutora. Só o fato de instituir o outro ao status de musa já se configura como armadilha lançada.
Resumindo: Chico Buarque é cancionista - o autor, o compositor e o entoador/destinador - de "Choro bandido". E é neo-sereia quando sua voz, ao entrar no ouvido do ouvinte, promove o surgimento do sujeito cancional e, consequentemente, como resultado do embate entre esse sujeito e o ouvinte, o reposicionamento deste no mundo.

***

(Edu Lobo / Chico Buarque)
Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim
 
 
 
 

Borges e Neruda: o gênio além da ideologia

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Algumas tentativas da percepção para transcender o conflito entre a lucidez e a sombra nas obras de dois nomes decisivos da literatura
 


De perto somos todos normais: de esquerda, de direita, de centro, alienados. De longe, quando a persona é vista em sua inteireza, que só pode ser expressada pelo talento de cada um, o bicho pega. Jorge Luis Borges e Pablo Neruda causam desconforto quando se fala neles. Um porque apoiou a ditadura argentina, outro porque foi ministro do governo de Salvador Allende. Essa maldição que persegue o gênio nos afasta da essência de suas obras. Neste ensaio, alguns pontos focais do trabalho inumerável de dois mestres da literatura universal. Um exercício de ver com os olhos livres e deixar de lado o que é datado e perecível, mesmo que o talento se expresse às vezes sob a ótica contaminada por convicções ideológicas. Fica no ar a pergunta: é possível uma obra transcender suas fontes mesmo quando não havia intenção de transcendência?
Próximo demais da luz
Iluminado pelas leituras de toda uma vida, Jorge Luis Borges descobre o essencial quando finalmente é empurrado para a sombra. A cegueira, dura presença aos 70 anos de idade, o deixa só diante da fonte que alimenta os clássicos — sua paixão explícita, uma rede tecida desde Virgílio a Kipling.
Nesse ambiente onde as palavras são desmascaradas — porque revelam-se desnecessárias — o escritor transforma-se no oculto veio que pacientemente garimpou nas bibliotecas, e que faiscava nos olhos de uma leitura privilegiada — árvore generosa de onde brotaram seus livros.
Memória, então torna-se esquecimento, a literatura transmuta-se em vida e a poesia é a alta gávea que anuncia a descoberta. Em “Elogio da Sombra”, não é a treva que ofusca a obra, mas um outro sol, imaginário antes, real agora, quando tudo vira linguagem. Inclusive o que não pode ser alcançado pelo poema, apenas sugerido, como os volumes submersos para sempre no alto das prateleiras.
Ao desistir de tudo, o escritor emerge como personagem, abandonando os leitores à própria sorte. Não foge, se encontra. Não trava, desanda. Não morre, eterniza-se. Aproveita para fazer um inventário, que passa por He­ráclito, Zeus, Buenos Aires, Joyce, Israel, o pampa — todos cenários que somem na neblina depois da última linha.
Mas fingir-se de morto não era seu objetivo. Sua intenção de identificar-se com a matéria-prima que o envolveu o tempo todo, é sincera. Retira-se da casa onde habitou para um lugar mais profundo, menos visível, mas indestrutível: é de lá que fluem os materiais forjados pelo gênio. A humildade diante do absoluto pode ser encarada como mais um jogo de sua predileção, mas o que salta à vista é a sobriedade inspirada pela presença da morte.
Esse é o seu destino: vazar o corpo fechado da razão para nele transparecer a loucura. Não o desatino dos doidos, mas a ardente lucidez da sabedoria.
Borges aproximou-se demais da luz e, aparentemente, recusou-se a tocá-la. Virou os olhos para o outro lado e nesse movimento, conquistou o definitivo espaço dos mestres. Ele nos conduz pela mão e, na beira do abismo, desaparece.
Ficamos, então, reduzidos ao pó de suas palavras, que ressoam como um sussurro, a ecoar a suprema ironia dos deuses. O livro não passa de uma armadilha. O que temos na mão é pura paisagem, rede que abraça a pedra na praia, e nos enreda, sugerindo afogamento. Quem, de sã consciência, teimará em escapar desse laço?
Cultura popular
Em “O Informe de Brodie”, coletânea de contos, o olhar “es­trangeiro” de Jorge Luis Borges sobre seu próprio povo denuncia suas convicções sobre a cultura popular. Admirador da poesia gauchesca, obra de advogados e jornalistas de Buenos Aires e Mon­tevidéu, ele descobre que os mitos do pampa não passam de uma nostalgia urbana. Fica, portanto, à vontade para abordar, sem concessões, as margens de uma nacionalidade mestiça, da capital e do interior da Argentina, onde recria, a seu modo, narrativas que todos teimam em lembrar.
Sem pactuar com o derramamento emocional que o cerca, o aço de sua escrita é temperada pelo calor da barbárie pingando sangue. Não há heróis para saudar, a não ser a experiência repassada pelas gerações, onde sobressai a traição, o crime, o ciúme e a falta de importância das personagens. É como se navegasse a favor da corrente de episódios e lendas que seu interesse acumulou, mas com a originalidade de uma linguagem sem raízes.
No rumo das lendas repassadas de boca a boca, obedece a mapas bem demarcados de suas leituras prediletas, livre das obsessões que ocuparam vasto espaço do seus contemporâneos. Ele sabe que a literatura tradicional não se opõe às novidades da vanguarda, já que é “feita de um conjunto secular de aventuras”. Insiste nessa matriz, consciente da sua infinita capacidade de encantamento.
Desse movimento que flui eternamente, porque realimentado pela memória e por ouvidos sempre atentos dispersos em todas as rodas e confidências, ele aponta para uma cultura que precisa se descobrir para mudar. Haverá saída para um universo onde o assassinato é permitido pelo cinismo da guerra? Sim, se o escritor conseguir despertar o horror ao descrever a cena.
A chave dessa ética cevada na solidão é a viagem hipnótica que a civilização desenvolve ao coração da crueldade: não haverá remissão se a ordem da escrita não dominar o caos da oralidade. Mas essa ordem já nasce, em Borges, contaminada pelos fantasmas de generais, damas, duelos, degolas. É co­mo se houvesse uma rendição, mas sem desonra. É a única vitória possível por um autor especializado em calamidades.
O truque é abrir mão do papel principal, mas não da autoria da trama. A Argentina, assim, transforma-se em puro Borges, o que não deixa de ser uma extrema ironia deste platino com os olhos voltados para a Inglaterra, que no deserto cultivou-se cosmopolita e foi um bibliotecário encerrado numa geografia ágrafa.
Épico insurgente
Neruda perdeu a terra e tenta recuperá-la por meio da poesia. Mas o que aparece no livro “Donde Nasce A Chuva” (tradução de Carlos Nejar), primeiro dos cinco volumes do seu “Memorial de Ilha Negra”, escrito aos 60 anos, não é apenas o Chile (e por extensão, a América Latina), mas principalmente a destruição da sua identidade pessoal. O poeta se debruça sobre sua infância, sobre sua cidade, e reconstitui esse processo de destruição para se redescobrir e recuperar o fio, apesar de saber que nunca será o mesmo e que está condenado, como todos, a uma viagem sem volta. No seu caso, essa viagem o levaria ao breve tempo de esperança no governo Allende e depois à morte, nos dias terríveis de setembro de 1973.
É por isso que Neruda não deixou, como herança, apenas uma descrição de sua terra, mas sua caminhada, sua tentativa de humanizar o homem destruído pela pressão social, sua vontade de recompor o mundo à imagem pura das matas de Temuco, onde “do machado e da chuva foi crescendo a cidade madeireira recém-cortada como nova estrela com gotas de resina”.
O livro é sobre a descoberta do mundo, os primeiros passos do poeta, suas revelações por meio da dor, sua passagem para novos estados de consciência que, ao mesmo tempo, o afastavam de suas raízes. Esse mundo nasce da cidade madeireira, da descoberta emocionada dos pais, da experiência de terror e lucidez nas matas e no mar, da adolescência tímida que descobriu o sexo, o colégio, o livro, e o levou à poesia, ao medo na capital e à rotina na pensão da rua Maruri.
Pelos olhos de Neruda passeiam as assombrações do seu Tio Genaro que veio das montanhas, as paisagens da terra — como nos poemas “Lago dos Cisnes” e “A Terra Austral” — e do povo, como em “A Injustiça” e “O Trem Noturno”. E, principalmente, a mudança do seu rosto, como neste trecho de “O Menino Perdido”: “E de repente apareceu em meu rosto um rosto de estrangeiro e era também eu mes­mo: era eu que crescia, eras tu que crescias, era tudo, e mudamos e nunca mais soubemos quem éramos, e às vezes recordamos aquele que viveu em nós e lhe pedimos algo, talvez que nos recorde, que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos com sua língua, mas desde as horas consumidas nos olha e não nos reconhece”.
Talvez só a poesia possa redimir o exílio, pois joga com a memória afetiva, redescobrindo o clima dos acontecimentos e as dimensões do homem nas suas viagens pelo furacão. Recompõe assim a história pessoal de uma coletividade, procura um rosto que permaneça e reine acima da perda, do eterno sentimento de derrota, dos foragidos que trocam de mundo também por que são empurrados, e não somente por sua sede de aventura. Neruda, apesar de eterno passageiro desse trem que nunca para, procura a memória social por meio de sua existência individual, recuperando a terra perdida e cumprindo seu destino de poeta e cidadão do mundo.
A história de Neruda, por sorte, é a história do povo. Nascido da chuva, da madeira, do pão e do vinho, ele é capaz de se identificar com os movimentos da terra e do tempo, retratando a aventura numa época de dispersão e miséria. Por ter descoberto a identificação do seu destino com o destino do Chile, pode-se dizer que Neruda, como todos os grandes poetas, é a pátria procurada pelos abandonados, pelos que foram varridos da sua terra, tanto pelo tempo como pela guerra. Felizmente, a tradução de Carlos Nejar conserva essa mágica experiência, por meio de um bom senso criativo, sem pretensões e exato. E há a vantagem de ser uma edição bilíngue, onde Nejar mostra-se útil até o fim.
O animal ferido da palavra
Poesia é a palavra diante da morte, a distância de um braço entre o poeta e seu destino. A tensão permanente do poema é a visão desse desenlace e é disso que se alimenta a sua eternidade. É por isso que o poeta sobrevive, não porque lute para ficar vivo, mas porque escreve sabendo que vai morrer. Quando, enfim, a última batalha desce sobre seu corpo em brasa, a obra grita, como condenada.
Pablo Neruda, morto há quase 40 anos, encarna esse animal que cruza todas as fronteiras e regressa à pátria para ser assassinado. Está na moda hoje destruir o mito para celebrar a exposição das vísceras, compensação de um tempo onde triunfa a indiferença. Assim, o vazio é confundido com virtude para privilegiar os “erros” de Neruda, como um poema para Stálin, por exemplo. Mas o que é datado, no poeta, morre com ele. O que permanece é o crepúsculo enrolado aos seus pés e a solidão, como um túnel.
Não é apenas a sua lírica que cresce quanto mais nos distanciamos do réquiem de 21 de setembro de 1973. Assoma a pátria, sua metáfora extrema: na hora em que morria , era o Chile que estava sendo devorado. Pois não bastava matar o presidente, era preciso também eliminar a esperança. Neruda entendeu que tinha chegado a sua hora. E acabou-se, puxando a toalha no momento em que os tiranos comemoravam a vitória.
Do seu engajamento fica essa encarnação do povo e terra, o lirismo épico de sua caminhada, a manutenção do mito, não restrito ao seu país. Ele pertencia a uma raça quase extinta, aquela que sumiu do mapa porque o mundo mudou de estilo. Já foi longe a época em que as nações cultivavam seu poeta, que recitava versos na praça e traçava biografias andarilhas.
Ele alimentava assim a multidão faminta de história, ainda presa a palavras hoje mortas, como atávico, mártir, telúrico. Era um artista popular da palavra, mas a mensagem que ele inventou para a rápida passagem do tempo atraiu a atenção dos lobos. Minaram então sua sorte trazida do berço, desmoralizaram seu andar partido, imitaram seu timbre, roubaram-lhe a voz. Pablo Neruda é a expressão maior desse romantismo tardio, desse último suspiro da imaginação emocionada, que morre nos braços do povo ao som da metralha.
Hoje, quando o Chile é visto pela sua performance econômica, seu perfil de tigre, lembramos o comportamento dos chacais. As manifestações nos aniversários do golpe de 1973 não podem prescindir da visita ao túmulo do poeta, gritar seu verbo em praça pública. Para o Brasil, retalhado numa guerra interminável — exatamente porque adiamos todos os desenlaces — ele inspira o tom de eternidade, que nos escapa. Estamos presos demais à pressa, à ilusão eterna do presente.
Muitos poetas apostam no supérfluo, no fugaz, no palavrão — ainda iludidos de que é possível “chocar” alguém com gestos ou palavras, não fôssemos nós observadores permanentes das chacinas. A poesia brasileira costuma ficar dividida entre o mimetismo nerudiano e o espólio da demolição con­cretista, entre a pomposidade inútil e o falso vanguardismo. Estamos mergulhados demais no horror para enxergar a poesia.
É nesse túnel que deve se desenhar o poema ainda em silêncio, como um animal ferido. A longa cicatrização imobiliza o gesto, enquanto a palavra estilhaça nos vidros de uma nação que derrapou. Nesse exílio obrigatório, a morte de Neruda abre uma trilha. Ele identificou-se com a grandeza e a tragédia chilena e tornou-se o mais caro patrimônio do país. Precisamos deixar que ele nos toque com os dedos longos da palavra.
Não podemos entretanto, mergulhar no equívoco de endeusá-lo, nem nos deixar enganar pela maior parte da sua obra póstuma. O que ele mesmo publicou já basta: “Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada”, “Con­fesso que Vivi”, As Mãos do Dia”, “Canto Geral”, entre outros livros iluminados.
 
 

Hermann Hesse: o guru dos hippies

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Nobel de Literatura, Hermann Hesse é um dos mais importantes escritores alemães do século 20 e sua obra provoca uma espécie de culto místico. O autor do romance “O Lobo da Estepe” quis mudar-se para o Brasil e, depressivo, foi paciente de J. B. Lang e de C. G. Jung

 
A Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas regiões do país. A área abrange quase a metade do Estado de Baden-Württemberg — que, ao Sul, faz limite com a Suíça e, a Oeste, com a França. A topografia é acidentada com vales, colinas e montanhas cobertas de densa mata de pinheiros que, ao sol do verão, assumem uma cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o nome de Floresta Negra. A Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno, a mais importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas origens nos Alpes suíços; em seu percurso penetra o território alemão do Sul ao Norte, onde faz um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no rio Maas — formando um intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar do Norte. A Floresta Negra estende-se além do Reno, em território francês, onde as árvores são da mesma família e a cor verde-escuro viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses chamam-na de Floresta dos Vosgues.
Em território alemão, no coração desta floresta, encontra-se a pequena e pitoresca cidade de Calw, um nome que soa estranho para os que não vivem na região. A localização geográfica de Calw, cujas origens datam do ano 1075, também é estranha: a cidade encontra-se numa depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw situa-se num buraco. A cidade é cortada pelo Nagold, rio que, em termos de Brasil, seria considerado riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado certamente com mais água, teve uma importante função na história da cidade. Até o século 19, o pequeno rio era a principal via de transporte fluvial para os troncos de pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e transportados via rio Neckar até ao Reno, de onde seguiam até à Holanda e, não raro, para a Inglaterra.
Durante quase toda a Idade Média, Calw foi um grande centro de comércio — com estabelecimentos manufatureiros de couro, moinhos, serrarias, marcenarias e artesãos de móveis e de construção de casas do estilo enxaimel, a arquitetura típica da região.
O Sul da Alemanha, a partir do século 17 até meados do século 20, era fortemente influenciado pelo pietismo, o maior movimento reformista dentro do protestantismo europeu após a Reforma Protestante. Os pietistas, profundamente crentes, conservadores e intransigentes a tudo quanto era novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da letra e eram, por isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo.
Foi neste ambiente que, em 2 de julho de 1877, nasceu e passou a sua infância e parte da adolescência Hermann Hesse, o mais lido escritor alemão do século 20. Perscrutar a vida desse autor não é tarefa rotineira e quem a enceta deve estar ciente de que, caso tiver percepção para os sentimentos mais intrínsecos da alma humana, acaba perscrutando a si mesmo.
Hermann Hesse não aceitou e muito menos se conformou com o ambiente no qual nascera e crescera. Muito cedo deu mostras de rebeldia contra a “camisa de força” que lhe fora imposta pelo ambiente pietista. No círculo familiar sua rebeldia contra a extremada religiosidade causou tanto incompreensão quanto preocupação, pois os Hesse, por gerações, eram crentes convictos, engajados na igreja, em serviços missionários e na publicação de literatura religiosa.
Portanto, o jovem foi a primeira ovelha negra de uma linhagem familiar que não conhecia nada além do sacrifício à religião. Mais tarde, Hermann Hesse registrou em seu diário uma observação que explica um dos motivos de sua rebeldia adolescente: “Que pessoas encarem a sua vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas de qualquer impulso egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi uma vivência da minha juventude que me influenciou profundamente”.
Hermann Hesse foi um homem que, durante toda a sua vida, teve que lutar contra dúvidas, anseios e aflições. O ambiente familiar pietista, por ser rígido, serviu de húmus no qual se desenvolveram seus futuros devaneios psíquicos por meio dos quais acabou encontrando o seu caminho à literatura. Durante toda a sua vida, Hesse foi um solitário que não suportava pessoas por muito tempo ao seu redor. Mesmo suas mulheres — teve três —, só as tolerava a certa distância. Em sua obra “O Lobo da Estepe” (best seller também no Brasil), Hesse registrou uma frase elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos”.
Para compreender a beleza, a profundidade e o sentido da obra literária de Hermann Hesse é preciso entranhar-se nos labirintos da alma do autor. É necessário perceber Hermann Hesse como indivíduo, entender o ambiente em que viveu e conhecer a sua genealogia. Seus parentes, além de pietistas, tinham ampla cultura humanista.
Sua vida é bem documentada, o que vale para os seus ancestrais tanto da linhagem paterna, os Hesse, como da materna, os Gun­dert. Os bisavós tinham o hábito de guardar todo e qualquer papel, por mais insignificante que fosse. Cartas, apontamentos, cartões postais, simples bilhetes — tudo era guardado. O mesmo costume tinham também os avós e seus pais. Graças a esse cuidado, os registros, documentos e demais fontes de informações existentes sobre a ascendência de Hesse são amplas. A dedicação à literatura e à arte de escrever já eram hábitos que existiam nos dois ramos familiares de seus ancestrais.
O avô paterno, dr. Carl Her­mann Hesse (1802-1896), nasceu em Livland, na Estônia, à época pertencente à Rússia. Era casado com uma alemã, médico e conselheiro de Estado, em Weissenstein, na Estônia. Além do russo, falava alemão, latim, grego e hebraico. Como pietista, ministrava aulas bíblicas, fundou um orfanato, escreveu artigos para jornais e é autor de vários livros, entre os quais uma ampla autobiografia em dois volumes. Hermann Hesse, o neto escritor, não chegou a conhecer o avô pessoalmente mas, desde jovem, manteve com ele regular correspondência até sua morte.
O avô materno, dr. Hermann Gundert, nasceu em Stuttgart, na Alemanha, em 1814. Fez seus estudos preliminares no célebre mosteiro de Maulbronn, cujas origens datam do século 11 e a seguir matriculou-se no Tübinger Stift, fundado em 1536, uma instituição de elite, ligada à Universidade de Tübingen. Em seus quase cinco séculos de existência, o Tübinger Stift formou grandes homens da cultura alemã, como o astrônomo Johannes Kepler, o poeta Friedrich Hölderlin, os filósofos Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Frie­drich Schelling e o escritor e tradutor Eduard Mörike.
O dr. Gundert era pessoa de ampla cultura. Começou a escrever durante os seus estudos preliminares em Maulbronn. Datam desse período vários dramas, entre eles um sobre Pedro, o Grande. Ampla era a sua vocação para as línguas. Durante a sua formação em Tübingen, estudou latim, grego, hebraico, inglês, francês, italiano, indu e malaiala. Terminados os estudos, passou um período na Inglaterra e de lá partiu para Tschi­rakal, na Índia, onde inicialmente trabalhou como professor. Não demorou, interessou-se por atividades missionárias e ocupou-se da área de seu interesse, as línguas. Estudou vários dialetos indus, traduziu a Bíblia do latim para o malaiala e compilou o primeiro dicionário inglês-malaiala, trabalho que lhe custou mais de 30 anos de pesquisa e continua sendo obra básica até os dias de hoje. No Estado de Kerala, na Índia, fundou um jornal, escreveu livros escolares, traduziu obras do sânscrito para o malaiala, inclusive um documento budista dos primeiros séculos da era cristã. Casou-se, na Índia, com Julie Dubois, filha de calvinistas da região de Genebra, com quem teve dez filhos, entre os quais Marie Gundert, a mãe de Hermann Hesse. Julie Dubois (avó de Hermann Hesse) nunca chegou a falar e escrever o alemão corretamente, mas, além de sua língua materna, o francês, dominava perfeitamente o inglês e o indu e vários dialetos. Cultivava uma vida ascética, era rigorosa e intransigente.
Gundert regressou à Alemanha em 1859 e assumiu uma editora de literatura religiosa. Viveu em Calw por mais 33 anos, dedicou grande parte desse tempo às pesquisas linguísticas. No Estado indu de Kerala, Gundert é respeitado como grande cientista linguístico. O Estado o homenageou com monumento, nome de rua e placa comemorativa. Gundert escreveu mais de oito mil cartas, que foram usadas por um de seus genros, Johannes Hesse, o pai de Hermann Hesse, para publicação de uma biografia sobre o sogro.
Johannes Hesse (1847-1916), filho do dr. Carl Hermann Hesse, nasceu em Weissenstein, na Estônia. Hermann Hesse — com um avô paterno russo casado com uma alemã, um avô materno alemão casado com uma francesa; o pai russo casado com uma alemã e ele próprio nascido em Calw — tinha dúvidas quanto a sua nacionalidade. Em suas notas autobiográficas, escreve: “Naquela época eu não sabia qual era a minha nacionalidade, provavelmente russa, pois meu pai foi súdito russo e tinha um passaporte russo; a mãe, nascida na Índia, era filha de um suábio e de uma francesa-suíça. Tal origem mesclada impediu-me de ter maior respeito perante nacionalismos e limites fronteiriços”.
Em 1919, ao decidir que a região da Floresta Negra era a sua origem, berço, cultura, pátria, Hermann Hesse passa a se considerar cidadão alemão. Segundo as leis vigentes da época, como filho de um missionário alemão-báltico (russo) casado com uma mulher nascida na Índia, oficialmente o escritor era cidadão russo. Entre 1883 e 1890 e a partir de 1923 tornou-se cidadão suíço. No entremeio, tinha também os direitos de cidadania do Estado alemão de Baden-Württemberg.
Johannes Hesse, pai de Her­mann, indivíduo franzino, nervoso, leitor incansável, laborioso em anotar e registrar tudo que lia, ouvia e observava, aos 16 anos resolveu ser missionário. Seus textos, escritos nessa idade, não revelam nenhum fanatismo; ao contrário, era um homem pensativo e ponderado. Além da biografia sobre o sogro, escreveu outras 16 obras. Na Índia, a serviço missionário, casou-se com a viúva Marie Gundert, a filha de Hermann Gundert. Marie Gundert, mãe de Hermann Hesse, era escritora. Publicou vários livros, entre os quais encontra-se uma biografia sobre o naturalista inglês David Livingstone. Falava um inglês impecável, razão pela qual os pais de Hermann Hesse costumavam co­municar-se em inglês.
Hermann Hesse conheceu muito bem o avô materno, Her­mann Gundert, com o qual manteve estreito contato. Tinha-o em grande conta e dedicava-lhe uma imensa afeição. No texto autobiográfico “A Meninice de um Má­gico”, Hermann Hesse fala com sentimentalismo sobre o avô: “E todas essas coisas pertenciam ao avô, e ele, o idoso, respeitado, po­deroso, com sua densa barba branca, sabia tudo, mais poderoso do que meu pai e minha mãe, estava em poder de muitas outras coisas e poderes... sua sala e sua biblioteca, ele era também um mágico, um homem que sabia de tudo, um sábio. Ele entendia todas as línguas dos homens, mais do que trinta, talvez também a língua dos deuses, talvez a língua das estrelas, ele escrevia e falava o páli e o sânscrito, falava e cantava canções em canarês, bengalês, hindustâni e singalês e recitava orações e textos dos muçulmanos na língua destes. Recebia muitas visitas e eles falavam em todas as línguas”.
Diante desse manancial cultural, com vários escritores entre seus ancestrais, o pequeno Hermann Hesse, fortemente influenciado pelo avô materno e pelo próprio pai, teve, desde tenra idade, uma educação condicionada ao preparo do serviço missionário, como foram seus pais, avós e bisavós. Sob o peso da profunda religiosidade, o jovem Hesse decidiu não se tornar “vassalo de Deus”. Começam assim os conflitos com Johannes, que, embora não fosse um pai extremado, queria o filho como missionário. Prova disso é o fato de que o pai começou a ministrar-lhe aulas de latim desde a infância. Hermann Hesse, mais tarde, comenta esse período em “Meninice de um Mágico”: “Até a idade de 13 anos nunca me preocupei com o que seria da minha vida futura e que profissão deveria seguir”. Uma das coisas que Her­mann admirava em seu pai, que falava várias línguas, era o seu estilo claro e preciso ao usar a língua alemã.
Os primeiros intensos abalos psíquicos que Hermann sofreu aconteceram durante seus primeiros quatro anos de ensino elementar na escola que frequentava em Calw, com o irmão mais novo, Hans (1882-1935). Os métodos educacionais eram rígidos. Castigos corporais eram medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades. Abusos, com graves lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um trauma escolar em virtude dos métodos educacionais pelos quais passou e do qual não conseguiu livrar-se durante o resto de sua curta vida, que terminaria em suicídio. Hermann Hesse abordou essa tragédia nos livros “Demian”, “O Jogo das Contas de Vidro” e “Debaixo das Rodas”. Nessa a personagem principal, Hans Gie­benrath, em referência a seu irmão morto, é retratada como vítima dos métodos educacionais. Nessa obra encontra-se a seguinte passagem: “A escola é a única instituição cultural que, apesar de levar a sério, me irrita. Em mim a escola estragou muita coisa e conheço poucas personalidades que não passaram pela mesma experiência. Para sobreviver nesse ambiente você precisa aprender a mentir e o irmão Hans era um menino sério e é por isso que na escola em Calw quase o mataram, quebraram-lhe a espinha dorsal”.
Em 1891, o pai matriculou Hermann Hesse, de 14 anos, no renomado mosteiro de Maulbronn, onde o avô materno estudara. O astrônomo Johannes Kepler, que nasceu em Weil der Stadt, pequena localidade a nove quilômetros de Calw, frequentou o mesmo ginásio do mosteiro de Maulbronn, três séculos antes de Hermann Hesse (de 1586 a 1589).
“Serei escritor ou nada”

Em Maulbronn, o seminarista Hermann Hesse redigiu algumas peças de teatro em latim — que ele mesmo ensaiava com colegas e as apresentava aos alunos internos. Suas cartas aos pais eram em forma de rima e muitas em latim. Ele gostava do ambiente, mas vivia com receio de acabar virando missionário. Resolveu enfrentar o pai escrevendo-lhe uma carta com uma frase derradeira: “Serei escritor ou nada”. Mais tarde Hesse confessa: “Quanto mais avançava em idade, tanto mais compreendi quanta semelhança eu tinha com o meu pai”.
Depois de sete meses em Maulbronn, Hermann fugiu do internato. Só foi encontrado dois dias depois, confuso e transtornado. Após uma tentativa de suicídio, foi internado numa clínica psiquiátrica. Após o tratamento, ingressou num ginásio em Cannstatt, um bairro de Stuttgart. Não suportando o ambiente escolar, Hermann deixou o estabelecimento e começou a trabalhar numa livraria em Esslingen, onde suportou apenas três dias.
Regressou à casa dos pais em Calw e foi trabalhar como aprendiz na firma Perrot, que fabricava relógios para torres de igreja. Permaneceu no emprego por um ano e meio. Durante esse período, aos 17 anos, Hermann Hesse falava seriamente de planos para emigrar para o Brasil, assunto frequente nos seus apontamentos e escritos.
O relacionamento com a mãe Marie era normal e Hermann costumava dizer que a amava. O relacionamento sofreu uma ruptura abrupta numa época em que Hermann já publicara textos, comentários e seu nome já era conhecido. Hermann redigiu um pequeno texto com o título “Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria. Enganou-se. A mãe, num gesto indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho do filho. Passado mais de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio e disse nunca ter perdoado a mãe.
A partir desse episódio a vida de Hermann Hesse transforma-se numa roda viva. Em 1895 começa a trabalhar numa livraria em Tübingen (que ainda existe), publica algumas poesias e uma obra com o título “Uma Hora Após a Meia-Noite”, escreve regularmente para o jornal suíço “Allgemeine Schweizer Zeitung”, e viaja três meses pela Itália. Ao regressar, trabalha num antiquário em Wattenwyl, na Suíça, e seu romance “Hermann Laus­cher” é publicado. Em 1903, volta a viajar pela Itália, desta vez, acompanhado pela fotógrafa Maria Ber­noulli. Ao mesmo tempo, publica sua obra “Peter Camenzind” (1904), seu primeiro romance cujo enredo contém muitos paralelos biográficos. “Peter Camenzind” torna-se um best-seller, Hesse casa com Maria Bernoulli e compra uma propriedade em Gaienhofen, no Lago de Constança, na divisa da Ale­manha com a Suíça.
Às margens do lago, a criatividade literária de Hermann Hesse desenvolve-se em bom ritmo. Em 1906 publica “Debaixo das Rodas” e em 1910 “Gertrudes”, novela escrita em primeira pessoa, na qual o autor narra os infortúnios de uma dolorosa experiência de amor. Entre 1905 e 1911 nascem os seus três filhos, Bruno, Heiner e Martin. Para distrair-se Hermann Hesse pratica a jardinagem. Na área que circunda a casa, Hesse planta árvores, arbustos e cultiva rosas. Muito do que plantou na época continua a vicejar até hoje sob os cuidados de uma sociedade mantenedora que tem o zelo de conservar a propriedade e cultivar as mesmas plantas, rosas e flores que Hesse cultivara.
Em 1911 Hesse parte para uma viagem à Índia. Queria conhecer o lugar no qual a mãe nascera e onde os pais trabalharam. A viagem estende-se à Indonésia e à China. Ao regressar publica “Da Índia”. Essa viagem à Índia o decepciona por não encontrar lá o que os pais idolatravam.
Enquanto isso Maria Bernoulli começa a ter problemas psíquicos. Hermann Hesse demonstra não ser capaz de lidar e viver com uma situação dessas. Chega à conclusão que, para dar continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é internada num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e amigos. Resolve mudar-se para a Suíça. Deixa a propriedade e seus bens em Gaienhofen, leva consigo apenas a sua escrivaninha, vai à Berna onde aloja-se na Casa Welti. Em 1914 publica “Rosshalde”, romance no qual fala do fracasso do matrimônio de um casal de artistas. A obra traz marcantes traços biográficos. Em toda a literatura alemã Hesse é o autor que mais traços autobiográficos incluiu em sua obra.
No início da Primeira Guerra Mundial, Hermann Hesse se engaja em projetos e serviços humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupou com a remessa de livros para presos em campos de concentração. Em 1915 publica “Knulp”, obra na qual o autor mostra ao leitor o quanto o homem depende de convenções sociais.
Em 1916 Hermann Hesse é acometido de uma crise nervosa que o prende por meses no sanatório Sonnmatt, em Lucerna, na Suíça. Tem início uma profunda amizade com o psicanalista J. B. Lang. Nesse estado de espírito publica um artigo contra a guerra sob o pseudônimo de Emil Sinclair e começa a ocupar-se regularmente com a pintura aquarelista.
O guru dos hippies
Em 1919 publica “O Regresso de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens: “O mundo não está aí para ser melhorado. Mas vocês estão aí para serem vocês mesmos. Vocês estão aí a fim de que este mundo sombrio, com esse acorde e com esse tom de vocês, fique mais rico. Seja você mesmo e o mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”. Paralelamente Hermann Hesse muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no Tessino, onde permanece até 1931.
Ainda em 1919 Hesse publica “Demian”, sob o pseudônimo de Emil Sinclair, e faz amizade com Ruth Wenger, com a qual acaba se casando. O casamento dura apenas três anos, de 1924 a 1927. Em 1921 Hesse começa a escrever “Sidarta”, o qual teve que interromper em virtude de um bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda depressão. Começa a sua segunda análise psicanalítica, dessa vez, com o renomado psiquiatra C. G. Jung. Em 1922 termina e publica “Sidarta”, sobre o qual Henry Miller escreveu: “Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente do que o Novo Testamento”.
Nesse entretempo Hesse pu­blicou várias obras, entre elas, “O Lobo da Estepe” (1927). No mesmo ano Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi, aparentemente como secretária. Em 1931 Hesse começa a escrever “O Jogo das Contas de Vidro” e se casa com Ninon Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um abastado admirador, H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a sua morte. No muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com os seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu amigo Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-sde que nunca mais os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa” hoje é propriedade particular.
Em 1943, doze anos após iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo das Contas de Vidro”. Em 1946 Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.
Não é possível comentar todas as obras de Hesse num texto relativamente breve. Além disso, há resenhas de seus livros em mais de cinquenta línguas. Por esta razão procuramos dar especial ênfase ao homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo para podermos compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua obra.
Hermann Hesse ainda era vivo e sua obra já tinha sido traduzida para 34 idiomas. “Parece-me que os japoneses são os que melhor me entendem e os que menos me entendem são os americanos. Mas esse também não é o meu mundo. Nunca chegarei lá”, comentou logo após ter recebido o Nobel. Em meados dos anos 1950, o editor Siegfried Unseld recomprou os direitos sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares. Assinado o contrato, Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o qual o americano disse: “Se o sr. quiser rescindir esse contrato tão desvantajoso, podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos, as obras de Hermann Hesse tornaram-se su­cesso também nos Estados Unidos quando a juventude hippie, à procura de novas alternativas de vida, confrontou-se com os textos de Hesse, este passou a ser visto como uma espécie de guru. Outro fator que contribuiu para o sucesso de Hesse nos Estados Unidos foi a banda “Steppenwolf” (Lobo da Estepe), que adotou o nome do livro e fez com que a obra influenciasse várias gerações.
Hermann Hesse, além de dedicar-se a seus textos, empenhava grande parte de seu tempo em responder cartas de leitores. Nesse particular, supera Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o grande autor clássico da literatura alemã, que escreveu mais de 30 mil cartas. Hermann Hesse escreveu mais de 40 mil, a maioria delas ainda estão preservadas. Não apenas trocava correspondência com renomados homens da literatura, como Tho­mas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas também com políticos, chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe escreviam pedindo conselhos ou ajuda para problemas da alma humana. Hesse fazia questão de responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às perguntas pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à tolerância e aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara livrar-se em Maulbronn.
Até agora apenas parte de suas cartas foram publicadas em dois volumes, está previsto o lançamento de uma edição completa de sua correspondência que deverá abranger um total de dez volumes.
Apenas “ler” Hesse não é suficiente. Para entendê-lo é necessário “encontrá-lo” e a melhor maneira de encontrá-lo é aprofundar-se em sua biografia. Em Calw, sua cidade natal, o município criou o Museu Hesse, no qual encontra-se grande parte de seu acervo. Sua casa em Gaienhofen, que hoje está como ele a deixara, também foi transformada em museu, e em Mon­tagnola, nas montanhas do Lago Lugano, encontra-se a terceira parte de seu acervo.
Otto M. Carpeaux destaca o escritor em busca de libertação
É oportuno mencionar um detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse: o autor foi grande admirador e profundo conhecedor dos contistas da Renascença Italiana. Em 1920 Hesse selecionou e publicou uma coletânea de 16 contos de autores italianos sob o título “Novellino”, na qual encontram-se cinco títulos de Franco Sacchetti, quatro de Giovanni Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano, um de Nicolau Maquiavel, e quatro de autores anônimos. O título de Nicolau Maquiavel é “Belfagor” e foi Hesse que, pela primeira vez, publicou-o em língua alemã. O “Novellino” de Hesse foi republicado na Alemanha numa versão atualizada em 2012.
Otto Maria Carpeaux, ao caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o Estado querem impor”. A caracterização de Car­peaux é correta. Falta apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.
Quem caminha pelas ruas de Calw encontra Hesse como eu o encontrei. Lá está ele, no meio da ponte sobre o Nagold, seu lugar preferido quando menino, em estátua de bronze em tamanho natural, com o seu inseparável chapéu à mão. O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco: “Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.
Hermann Hesse morreu em 9 de agosto de 1962, em Mon­tagnola, aos 75 anos. Trans­corridos 50 anos, a data foi devidamente lembrada em 9 de agosto de 2012 com cerimônias, festejos, palestras e conferências realizadas durante todo o último trimestre do cinquentenário de seu falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam vivas e hoje, mais do que no passado, o número de leitores e admiradores de Hermann Hes­se aumenta em todos os quadrantes. Especialmente na Eu­ropa, Estados Unidos, Ja­pão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um au­tor de interesse universal. Tal­vez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hes­se nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.
 
 
 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Encontro em San Francisco Bay


 

O jornalista e amigo Claudio Leal, que se encontra na Califórnia em visita de prazer e trabalho, marcou encontro com esta residente, de longa data, na cidade de San Francisco. O domingo se vestiu de sol pra amenizar a brisa fria que ainda é a norma na simpática e atrativa cidade da costa leste dos Estados Unidos.

Claudio, Regina e Fernanda Gabriela, nativa de San Francisco e filha da anfitriã, saíram em passeio pela cidade com o visitante encantado e encantador e, como não podia deixar de ser, fizeram uma parada obrigatória para adimirar uma das sete maravilhas do mundo, a Golden Gate Bridge, que nesse dia se vestia de dourado, literalmente!!!

Outra parada obrigatoria para quem acompanha a historia de San Francisco, é o distrito dos “Hippies”, principalmente o encontro das famosas ruas Haight-Ashbury, movimento jovem iniciado nos anos 60′s e que ainda respira nessa parte do mundo, sem faltar o lunch no famoso restaurante CHA CHA onde deleitamos o paladar.

Como diz o velho ditado, “barriga cheia, coração contente”, e nesse dia de visita tão especial eu diria que o coração cantava de felicidade, tal qual os personagens desse encontro cantavam no carro em alta voz, canções das terras que amam!!!!

Claudio segue em visita à Los Angeles, mas retorna à área da baia, mas uma vez, antes de partir para New York, afim de saborear os vinhos e conhecer o vinhedo onde fincou raiz a autora destas linhas e seus filhos. Claudio já está deixando saudades e sua visita parece muito curta…


Regina Soares

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

É pavê ou pacomê?!



Tem gente que se irrita, que suspira e vira os olhos como um filósofo vendo TV ou um cientista lendo o horóscopo, mas eu, não. Eu sorrio feliz e contente toda vez que escuto alguém perguntar, diante de um pavê, com a certeza do primeiro ser humano tocado pela luz da inspiração: "É pavê ou pacomê?!".
Que coragem. Veja, vivemos sob a égide do grande Deus Photoshop. Começamos tirando as celulites das bundas, passamos a cortar as estrias dos discursos e, hoje, removemos manchinha por manchinha de nossas facebúquicas personalidades. Nesta era da performance, em que cada ideia é cuidadosamente escanhoada antes de ser posta no mundo, em que cada julgamento é miligramicamente pesado para se avaliar os seus efeitos --seus likes, deslikes e retuítes--, enfim, nestes tempos bicudos em que a canalhice é perdoada, mas a ingenuidade, não, o cidadão me sai com essa: "É pavê ou pacomê?!". Que coragem.
Trata-se, evidentemente, de um espírito superior. Um homem acima da moral de sua época, que não tem vergonha de baixar a guarda e mostrar-se desprotegido, como aqueles peladões que, antigamente, surgiam correndo no meio de um jogo de futebol.
Como eram felizes os peladões de antanho, livres e despropositados, ziguezagueando entre jogadores perplexos e policiais furibundos. Agora, os peladões têm objetivos, estratégias, método. Desnuda-se pelo fim da corrupção, pelos golfinhos, pela bicicleta. Tudo bem, é sempre melhor ver ativistas ucranianas em pelo (ou sem pelo nenhum) defendendo uma causa nobre do que ruralistas (vestidos, felizmente) atacando as leis ambientais.
Sejamos anarquistas ou sojicultores, despidos ou de burca, contudo, fomos todos cooptados pela cartilha do cálculo. No século 21, até adestrador de cachorro tem assessor de imprensa, pipoqueiro faz coaching, refém de assalto a banco imagina, com uma arma na cabeça, como vai capitalizar a experiência, saindo dali: palestra motivacional? Biografia? Autoajuda? Só nosso amigo do pavê não pensa nos efeitos e consequências de seu ato: simplesmente segue o impulso. É o último romântico, filho temporão de Jacques Tati, neto do Charlie Chaplin, lutando contra as catracas do bom (sic) gosto, da etiqueta, da inteligência.
Ah, a inteligência, superestimada virtude! Goebbels, Stalin, Kalashnikov e o inventor do telemarketing eram todos inteligentíssimos e o mundo passaria bem melhor se, em seus lugares, tivéssemos um punhado de figuras capazes de desafiar a família, os amigos, os chefes e colegas de trabalho, sem medo do ridículo ou de retaliações, em nome de uma piada (dita) infame.
"Bem-aventurados os do 'pavê ou pacomê', pois verão a face de Deus", diria Jesus, na Galileia, se na Galileia já houvesse pavê. Não havia --mal havia pacomê--, de modo que os bravos iconoclastas seguem na luta sem o beneplácito de Deus, enfrentando com a cara e a coragem o desdém da sociedade. Não desanimem, irmãos: saibam que, se não têm o testemunho de Mateus, contam ao menos com o apoio deste modesto cronista, sempre disposto a responder, com a colher em riste e a fé no futuro: "Pacomê!".
Bem-aventurados os puros de coração.


antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata
Antonio Prata
Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".
 
 
 
 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Who should win and who will win

“Memórias do Cárcere”

POR EM 18/02/2013 ÀS 12:12 PM

Cadeia, o grande sertão de Graciliano

publicado em
“Memórias do Cárcere”, a obra maior do prisioneiro que radiografou o ofício da literatura ao confiná-la em cubículos, dividindo espaço com a diversidade do povo marcado para morrer

 
Cigarros ordinários acesos um no outro para economizar fós­foro, um restinho de iodo para desinfetar um ferimento no dedo, papel e caneta embrulhados em pijamas e outros trapos numa valise que carrega por todo lado, por mais de cinco prisões para onde foi jogado junto com milhares de outros presos políticos, misturados a vigaristas, ladrões e malandros, acompanham o escritor na sua faina: o de escrever notas que mais tarde vão continuar a literatura iniciada nos confins do Brasil seco e violento. Os livros que esmerilha na sua rotina brutal são narrados como personagens ocultos, um amontoado de letra miúda, mal alinhavadas e passíveis de todas as correções.
O protagonista é o livro — pode ser “Angústia”, publicado em 1938, ou as anotações que geraram mais tarde “Memórias do Cárcere”. Ele está sendo esmiuçado nos apertos sem conta, em meio ao pavor, o horror, a miséria, a sujeita e o escândalo. O que lemos em “Me­mórias do Cárcere” é uma obra sobre literatura, que começa a ser esboçada na cadeia. A s notas se transmutam mais tarde, reescritas e editadas (dez anos depois de sua soltura, em 1938) para a posteridade — foi publicado em 1953 pelo seu filho Ricardo, que mudou o título original, “Cadeia”.
Escrever é a ação principal deste grande sertão de Gra­ciliano. É sua obra maior, não só pelo tamanho, mas pela ambição. Longe de ser apenas um mural do povo brasileiro no seu habitat natural — a miséria confinada em porões de uma tirania endêmica. É sua grande obra prima, seu “O Tempo e o Vento”, seu “Guerra e Paz”. O Brasil no porão, explícito, cru, diverso, assustador. Um mural humano com detalhes íntimos de cada figura, cada gesto, cada ação. Nele, vemos que vida não é texto que se costure, a não ser que você costure a vida como um texto.
Em “Memórias do Cárcere”, Graciliano Ramos usa técnicas de ficção para contar a verdade. Uma delas é focar uma dúvida da percepção para iluminar o entorno, destacar um elemento protagonista para elucidar pormenores. Invoca-se, por exemplo, com dois vultos fixos vistos na madrugada da janela da sua cela. Não atina o que seja e usa a dúvida para ir narrando sua insônia, feita de migalhas e vivências. Outra técnica é dizer que não lembra de determinados detalhes enquanto outros se tornam abundantes.
Para tornar explícita a miséria social e política, afunda-se na baixa autoestima, como se o personagem que cria — ele mesmo, a vítima de uma injustiça — seja o fruto da escassez que domina o país. A família que descreve — a esposa mesquinha e histérica, os filhos agitadores — tem perfil fictício, o que o deixa à vontade para reforçar o papel de uma situação doméstica opressiva, contra a qual a prisão acaba se oferecendo como uma bizarra solução. O drama se desenrola no varejo, com vingancinhas pessoais, pequenas traições nos gestos e palavras, ruas mal iluminadas, prédios sinistros, funções inúteis, cidadania zerada.
O narrador está no miolo de um drama que se expõe das bordas às vísceras, em que a rotina doméstica é substituída pela falta absoluta de sentido do encarceramento. Graciliano Ramos conta sua história compondo um mural literário inspirado na memória. É o tempo todo literatura, pois os fatos se unem pelo fio narrativo de uma improbabilidade, o mundo sendo definido pela visão amarga e ríspida de alguém que sobrevive à revelia.
Desisti de ler “Recordações das Casa dos Mortos”, de Dos­toiévski, diante dos horrores que ele descreve da vida na prisão da Sibéria. Descubro agora, lendo “Memórias do Cárcere”, que Graciliano Ramos supera o clima descrito pelo gênio russo ao reproduzir as cenas infernais do porão do navio-prisão Manaus. Nem vou citar a sucessão de cenas descritas, pois prefiro me ater a um detalhe importante. O grande escritor, mestre absoluto da língua, era tido como personagem menor pelos bem postados revolucionários famosos.
Foi até confundido com tira, policial disfarçado, pois entrou no navio vestindo terno, gravata, chapéu e levando uma valise. O mal entendido se dissipou, mas ele continuou sendo tratado como um subalterno. É assim mesmo. Um grupo se forma, se autodenomina líder e coloca quem quiser no limbo. Não adianta espernear. Mais tarde, ao ser transferido de prisão, Gra­ciliano conseguiu se ambientar entre os chamados comunas, sempre mantendo a postura crítica, pois para ele o importante era a crueza humana e não sua ideologia. Uma das forças do livro é a produção de pensamento sobre comportamentos em situações limite.
Sua autocrítica é arrasadora. Sentindo-se incompetente para viver em grupo, enxerga-se como um outsider permanente, a passar sua bateia entre os cascalhos das palavras tartamudeadas por ele e ouvidas nas várias cenas que se sucedem na prisão. Uma de suas magistrais lições de literatura neste livro é a composição de personagens. Temos um exemplo no parágrafo inicial do capítulo 9, da segunda parte, do volume 1. Ele ensina como um mestre formata um personagem, que neste trecho do livro tem a função de sintetizar as dissenções internas dos presidiários políticos. “O capitão de nariz comprido esteve conosco dois ou três dias. Nunca lhe ouvi uma palavra, mas vi-o falar em excesso a grupos pequenos, afirmativo, açodado, a examinar os arredores com jeito de conspirador. Sem revelar em público nenhuma opinião, estava sempre a sussurrar um cacarejo indistinto, passeava na assistência minguada os inexpressivos olhos de ave, erguia o bico longo, baixava-o, reproduzia movimentos sacudidos de galinha a colher grãos. Os cochichos permanentes aborreciam-me, os gestos ambíguos, o proceder furtivo, o conluio visível de meia dúzia de pessoas. Afinal o tipo se sumiu. Na verdade estivera a sumir-se constantemente, a esgueirar-se de um cubículo para outro. Findos esses manejos, bateu asas na fuga definitiva, nem nos deu tempo de gravar-lhe o nome: para mim ficou sendo o capitão de nariz furtivo.”
Outro exemplo é como ele descreve Agildo Barata. No capítulo 13, da segunda parte, do volume 1 , Graciliano traça um perfil primoroso de Agildo Barata, uma personalidade conhecida nas leituras sobre a época das revoluções dos anos 1920 e 1930. Li “A Vida de Um Revolucionário”, de Agildo e também as páginas que a ele se referem em Juarez Távora e outros memorialistas. Jamais tinha tido uma ideia exata da figura até chegar a este parágrafo de ouro.
“Esquisita pessoa, Agildo. Minguado, mirrado. A voz fraca e a escassez de músculos tornavam-no impróprio ao comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto preciso, na hora exata. Economizava ideias e movimentos para utilizá-los com segurança: moreno, rosto impassível, tinha uns longes de esportista japonês: ligeiro desvio, avanço ou recuo oportuno assegurava-lhe a vitória. Preso, dirigira a sublevação do 3º Re­gimento e tão bem se comportara que, após breve luta, estava no cassino, vigiando os oficiais legalistas vencidos. Faltava um major e ninguém dera pela ausência dele: provavelmente sucumbira na peleja. Súbito o desaparecido invadira a sala, gigantesco, chegara-se ao carcereiro, uma pistola em cada mão. Às desvantagens naturais Agildo somava então inconvenientes acessórios: apanhavam-no de surpresa, sentado, via um sujeito enorme, em pé diante dele, manejando armas. Estou frito, dissera por dentro. E levantara-se para morrer. O colossal major, rubro e afobado, largara as duas pistolas em cima de uma banca e expressara-se veemente: — Rendo-me. Contra a força não há argumento.”
O capítulo todo é dedicado a Agildo, que, segundo Graciliano, tinha a qualidade rara de “apre­ender num instante as disposições coletivas”. O episódio em que Agildo lidera a briga por talheres decentes, em que os presos jogam as refeições no pátio com grande estardalhaço, é de fazer saltar da cadeira.
O texto pelo avesso
A palavra, como Corisco, não se entrega. Tem a vocação da permanência, apesar de fustigada pela passagem da fanfarra. Por um tempo, pode até colorir o discurso, vender sabonete ou escorrer em panfletos de rua. Mas seu destino final, conduzido sob a ética do talento, é refazer o mundo, por pior que ele seja. Mesmo aquele mundo seco, rude, duro do interior de Alagoas, que criou Graciliano Ramos a partir de 1892.
No seu livro “Infância”, ele conta como foi difícil aprender a ler no meio do sertão. O pai sem paciência e a escola, ameaçadora e punitiva, forjaram na dificuldade sua iniciação ao texto. É esta lição, de um mestre de ofício a iluminar, na pedra, suas origens e o futuro, que ele deixa para um país ainda pobre e perdido.
“Graciliano nos ensinou a provocar emoção discretamente, concisamente”, diz a escritora Edla Van Steen. “Ele nos apontou uma nova maneira de escrever, através do acabamento impecável do texto, num estilo sem adjetivos. É o pai dos modernistas brasileiros.” Esse é um dos paradoxos do mestre: de formação clássica, nunca tinha lido Proust e gostava mesmo era de Flaubert, Balzac, Dostoiévski. Seu poeta predileto era Manuel Bandeira, assim mesmo de “Cinza das Horas”. Não gostava da oralidade dos modernistas e chegou a falar mal de Oswald e Mário de Andrade. Segundo o crítico Fábio Lucas, ele dizia que precisava comprar uma gramática paulista para entendê-los.
Logo o “velho Graça” — ex­pressão lembrada, numa crônica, pela sua contemporânea Rachel de Queiroz —, tão cheio de regionalismos: “Graciliano é o mais representativo de uma região que se universaliza”, diz Fábio Lucas. “A partir de ‘Caetés’, seu primeiro romance, publicado em 1933, introduz um vocabulário exclusivo do Nordeste, usando com rigor a tradição da língua.” Fábio nota que em sua obra prima, “Vidas Secas” (1939), ele despoja as personagens com tal riqueza de traços que estes acabam se tornando o prolongamento dos animais e da paisagem.
Outro contemporâneo, o poeta Ledo Ivo — ex-menino prodígio que em 1933, aos 10 anos de idade, foi cumprimentado pelo diretor de Instrução Pública de Maceió, o próprio Graciliano em pessoa — destaca a análise psicológica do mestre, feita num cenário geográfico e político. “É um escritor elíptico e sumário”, diz, “que se baseou na tradição literária. Ao mesmo tempo, ele é singular por não ter a eloquência do perfil brasileiro. Mas o traço mais marcante da personalidade do escritor é, segundo Ledo Ivo, o da vítima inocente, que so­freu a punição sem culpa.
“Memórias do Cárcere”, seu alentado depoimento sobre um ano de encarceramento em 1936 — quando foi acusado de comunista — e publicado depois de sua morte em 1953, é a obra mais citada por Ledo Ivo: “Além do ressentimento de ter sofrido uma prisão kafkiana, ele tinha uma visão trágica da vida. Era um bicho do mato, um caracol. Vivia recolhido e era avesso à publicidade. Não participava da festa do sucesso dos escritores nordestinos, como José Lins do Rego ou Jorge Amado. Sua glória é póstuma”.
Laços de família tinham aproximado ainda mais Ledo Ivo da casa de Graciliano, que ficava no Rio de Janeiro no início da década de 1940. Foi lá que conversara longamente pela primeira vez, quando o escritor mostrou ao jovem poeta um artigo que este tinha publicado aos 14 anos, sobre “Vidas Secas”.
Esse foi também o início da amizade do poeta com o filho do mestre, Ricardo Ramos. “É curiosa a relação entre pai e filho”, diz a pesquisadora Yedda Dias Lima, do IEB — Instituto de Estudos Brasileiros, da USP. “Ambos morreram no mesmo dia, 23 de março, vítimas da mesma doença, o câncer, e deixaram, cada um, um livro não concluído.” O pai deixou “Me­mórias do Cárcere” e o filho, que morreu em 1992, quando se preparava para coordenar as festividades do centenário, “Graciliano, um Retrato Fragmentado”, lançado pela Siciliano.
A polêmica que se seguiu à publicação do livro póstumo de Graciliano está relacionado diretamente aos 3500 originais que deixou em poder da mulher, Heloisa e se encontra no IEB desde 1982, sob a responsabilidade de uma equipe coordenada por Yedda. O crítico Wilson Martins chegou a dizer que “Memórias do Cárcere” foi corrigido pelo Partido Comunista.
A fidelidade ao que realmente acontece, o sentido de retidão, a sua recusa à mentira, a sua reflexão profunda sobre a realidade faz de Graciliano um prato cheio para estudiosos como o professor de Literatura Comparada da USP, João Luís Tafetá (1946-1976), autor de um estudo sobre a riqueza e complexidade da obra do escritor. “Ele é a sua própria experiência”, disse Lafetá. “Nele, o fundamental é o modo honesto de contar. O escritor está preso ao real e longe, portanto, da falsidade.” O trabalho, tese de livre docência, enfoca três ângulos principais, que se comunicam internamente. O primeiro é literário, examina as técnicas das formas de narrativa, onde se sobressai o texto neorrealista que acaba transcendendo os rótulos.
O segundo é psicanalítico, que levanta um oblíquo complexo de Édipo em “Caetés” e dois triângulos amorosos: um imaginário em “São Bernardo” — no qual os ciúmes do anti-herói Honório leva a mulher ao suicídio — e outro real em “Angústia”, no qual Luis da Silva, outro anti-herói, acaba matando o rival. Para Lafetá, Graciliano diminui suas personagens e revela os cortes que sofreu ao longo da vida. Ele gosta de citar um trecho de “Infância”: “Herdei a vocação para as coisas inúteis”.
O terceiro enfoque é da linguagem da ironia, que basicamente é uma inversão e procura dizer o máximo num mínimo de palavras. Lafetá estuda a ética da construção da linguagem de Graciliano, raiz da sua exigência e contenção. “Ele cortava tanto seus textos a cada nova edição, que a esposa advertiu que acabaria apenas com páginas em branco”, lembra Fábio Lucas. Yedda conta detalhes da sua técnica de escrever: “Colocava um cigarro ao lado do outro, fora do maço, para não perder tempo. Desenhava uma letra caligráfica, que descia a detalhes da perna da letra a. Quan­do cortava, passava uma régua em cima e abaixo da palavra, riscava no meio e até, ás vezes, um cigarro aceso, para não haver dúvidas”.
Descoberto pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, graças aos seus relatórios quando foi prefeito em Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos foi traduzido em 32 línguas e seus livros venderam, até 1992, cinco milhões de exemplares, só no Brasil. Alguns deles, como “Vidas Secas”, “Insônia”, “São Bernardo” e “Memórias do Cárcere”, viraram filmes. Ele destacou-se por virtudes que por um tempo foram esquecidas no Brasil. Hoje elas ressurgem como um exemplo para um país que precisa desesperadamente reencontrar seu rumo.