Folheando o “Discurso de Primavera e Algumas Sombras“, um livro indevidamente pouco recordado no conjunto geral da extraordinária poesia do meu querido Drummond, me deparei “casualmente” com o que chamei pessoalmente de uma Trilogia do Silêncio. Um conjunto de três belos poemas sobre a dialética entre silêncio e palavra com os títulos de: “A Palavra Mágica”; “O Constante Diálogo” e “SOM”. Drummond não era psicanalista e na sua arte não encontraremos o rigor da teoria, mas sua poesia fabulosamente se debruça sobre o mesmo fenômeno do incompleto da existência e das armadilhas da palavra. Cuidadoso que era, sabia que poesia é palavra lapidada sendo antes de mais nada ritmo e forma. Poesia não nasce pronta num instante de comunicação cósmica. A palavra deve ser lapidada, catada, escolhida, escrutinada. O silêncio somente deve ceder de sua condição de possibilidade ante o minuto de ouro da poesia que dorme na sombra e somente encontra o motivo de despertar diante de algo que vibra na vida do poeta.
“A PALAVRA MÁGICA ——————————————–
Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida a senha do mundo. Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo. Se tarda o encontro, se não a encontro, procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura ficará sendo minha palavra O CONSTANTE DIÁLOGO ——————————————–
Há tantos diálogos
Diálogo com o ser amado o semelhante o diferente o indiferente o oposto o adversário o surdo-mudo o possesso o irracional o vegetal o mineral o inominado
Diálogo consigo mesmo com a noite os astros os mortos as idéias o sonho o passado o mais que futuro
Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos. SOM ——————————————– Nem soneto nem sonata vou curtir um som dissonante dos sonidos som ressonante de sibildos som sonotinto de sonalhas nem sonoro nem sonouro vou curtir um som mui sonso, mui insolúvel som não sonoterápico bem insondável, som de raspante derrapante rouco reco ronco rato som superenrolado com se sona hoje-em-noite vou curtir, vou curtir um som ausente de qualquer música e rico de curtição.”
I
A couraça das palavras protege o nosso silêncio e esconde aquilo que somos
Que importa falarmos tanto? Apenas repetiremos.
Ademais, nem são palavras. Sons vazios de mensagem, são como a fria mortalha do cotidiano morto. Como pássaros cansados, que não encontraram pouso certamente tombarão.
Muitos verões se sucedem: o tempo madura os frutos, branqueia nossos cabelos. Mas o homem noturno espera a aurora da nossa boca. II
Se mãos estranhas romperem a veste que nos esconde, acharão uma verdade em forma não revelável. (E os homens têm olhos sujos, não podem ver através.)
Mas um dia chegará em que a oferenda dos deuses, dada em forma de silêncio, em palavra transfaremos.
E se porventura a dermos ao mundo, tal como a flor que se oferta - humilde e pura - , teremos então cumprido a missão que é dada ao poeta. E como são onda e mar, seremos palavra e homem.
Nos anos 70, já havia o Chico Buarque de “Mulheres de Atenas”, o Caetano Veloso de “Sampa”, o Edu Lobo de “Arrastão” na indomável voz de Elis. E isso era bom. Mas nós, na periferia da periferia do mundo necessitávamos de algo mais. Algo mais cosmópolis, que nos sintetizasse e sintonizasse com o mundo ou ligasse definitivamente ao rock sem deixar de ser orgulhosamente periféricos – até mesmo dentro de nosso país. Faltava a esses todos uma carga pop, bem sabíamos. Uma ligação com o mundo de uma forma ainda mais espontânea e complexa que nos eflúvios demasiado vanguardistas da Tropicália ou de Os Mutantes. Ou que nas bem lapidadas rimas toantes de Chico, decalcadas de João Cabral de Mello Neto. Nós já éramos, de há muito, o centro de nosso mundo. Mas ainda não sabíamos.
Esse fenômeno, radicalmente musical, rico na invenção harmônica, antenado ao que ocorria lá fora, porém sem perder a bossa de sertões profundos, sem predar a orelha sertaneja e sem deixar de descer o Rio São Francisco até desviar-se a Ponta de Areia, no Recôncavo Baiano, deu-se através de Milton Nascimento e seus colaboradores: Lô Borges, Beto Guedes, Tavinho Moura, Toninho Horta, Nelson Angelo, Joyce, Alaíde Costa, Wagner Tiso, Flávio Venturini, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, O Som Imaginário, et alli. Era como se o barroco das igrejas de Minas de repente fundisse com o som dos Beatles para produzir um terceiro que era ainda mais ambicioso até mesmo que o som do quarteto de Liverpool depois do Peppers. Chico e Caetano eram poetas valendo-se de canções. Edu Lobo, um compositor sofisticado, embora excessivamente cauteloso. Milton era a canção em estado bruto.
A onda ficou conhecido como Clube da Esquina. Um rótulo genérico, superficial, mas suficiente. O lema era um pouco o que segue na letra de Fernando Brant em “Para Lennon e McCartney”, que, aliás presta conta de um misto de fascinação, desconsolo, emulação, superação: “Por que vocês não sabem do lixo Ocidental/ Não precisam mais temer/ Não precisam da solidão/ Todo dia é dia de viver// Por que vocês não verão meu lado Ocidental/ Não precisa medo, não/ Não precisa da timidez/ Todo dia é dia de viver// Eu sou da América do Sul/ Eu sei, vocês não vão saber/ Mas agora sou cowboy/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou o mundo, sou Minas Gerais”. É ao mesmo tempo senso de sentir-se desprezado ou ignorado, e superar esse estado, esse opróbrio, por inventividade. Ser radicalmente do mundo carecia de ter um pé no quintal, na província. Assumir ser o lixo, e, nesse movimento, por amalgamar aspesctos “arcaicos”, “tacanhos” e informações moderníssimas, converter-se no luxo do Ocidente. Ser o rematado luxo da aldeia musical do globo. E esse luxo também somos, doa em quem doer. (Anteontem, aliás, Paul McCartney fez show em Belo Horizonte (antigo Curral d’El Rey) e disse em português: “eu vim dizer: uai!”).
Enquanto isso há três álbuns absolutamente venerados: o Clube da Esquina; o chamado disco do Tênis (de Lô Borges); e o Nelson Angelo & Joyce. Todos do emblemático ano de 1972. Estranha coincidência. Através desses álbuns – e do rastilho deles em outros menos memoráveis ou mais episódicos, depois mas sobretudo antes – nós sabíamos que não só tínhamos chegado ao patamar da contracultura internacional, mas a superado com a tranquilidade e a eficácia artística e musical daqueles caras. (Lembro que em 72, eu tinha apenas 9 anos, e ia descobrir esse universo, fascinado, um tanto mais adiante).
Mas então, nós saíamos do Nordeste sequiosos por Minas. Minas era nosso suplemento. Saíamos loucos pelas montanhas, velhos ritos, as ferrovias, a mística do Grande Sertão, as igrejas, coros e cidades coloniais de Minas – que, de outra forma também as tínhamos no Nordeste (em São Luís, Olinda, Recife, Salvador, Penedo, São Cristóvão) – onde esses eflúvios musicais tinham medrado. Mas faltava-nos Aleijadinho, e o sentido compósito, complexo de passado e futuro jungidos, da forma como os mineiros haviam reprocessado no seu som. Ou uma certa dimensão cívica, presente em canções como “Coração Civil” — que pareciam defrontar a ditadura mas sem perder um grama de lirismo. E nem por sombra seguíamos apenas seduzidos por um sentimento ortodoxamente católico – e é claro que havia algo de católico também naquilo – mas mais era: era universal, no mais lato senso — e não no da Igreja Universal do Reino de Deus. Ou seja, era reassumir a radicalidade universal do termo. Era, no mínimo, astucioso que esse aparente desprezo, o da condição de “periféricos”, fosse (re-)convertido em paixão e fé.
E até hoje, nos rimos do facto: o que dá certo por aqui – ainda quando originalíssimo – é louvado como continuação de Europa (e, quiet often, não necessariamente de Portugal, mas sobretudo de Itália, de Alemanha, de França, até de Inglaterra). O que dá errado, bem, o que dá errado é nosso mesmo e peculiar (e, frequentemente, provem também de Portugal). Oremos.
Sem remissão.
Isso de sanção vinda de fora, de repente, deixou de nos obcecar. Porque a música nos imunizou contra essas falácias e arapucas. Nos autonomizou. Nos abriu para o mundo sem esquecer o passado. E, claro, esses mineiros nos apresentaram pontualmente a uma perspectiva musical mais complexa e moderna que a dos Beatles. Como se fosse uma melhor reatualização de 22 e das perspicazes lições dos Andrade: Mário e Oswald. Essa (in-)sanção. Insanidade, se obsessiva. E, logo, ( por que não?) de novo o “tupi or not tupi” na crista da onda. Ou o Macunaíma. Ou a Antropofagia de Oswald. A devoração canibal e incorporação da substância por eliminação da borra. E, então, quase qualquer forma de sanção vinda de fora, com alguma pretensão de hierarquia, já nos parecia um pouco tola. Embora com Milton e o Clube da Esquina tenhamos chegado a uma modesta síntese e reatualização disso tudo. Ou seja, a uma solução muito peculiar de psicodelia, contracultura e novas informações musicais àquela altura da pantomima. E, como não podia deixar de ser, fundida a impulsos polirrítmicos e melódicos tradicionais, arcaicos, africanos, índigenas, ibéricos: atualíssimos. Às simultaneidades e compositividades que tanto nos atraem e nos formam. Assim, quando Mestre Antônio Carlos Jobim gravou Lô Borges (“O Trem Azul”), em seu último álbum, no meado dos 90, bem sabia o quanto a homenagem prestava-se às estranhas invenções harmônicas do homenageado ou da turma de Minas.
O resultado, antes disso, é que, já em plena década de 80, íamos a Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, São João D’El Rey, Congonhas, Sabará, Diamantina como quem vai a Roma ou Santiago de Compostela, Canterbury ou Lourdes, ainda por conta dessa onda dos 70. Pedir a benção e a conta dessa musicalidade faceira e novidadosa, que fundia guitarras elétricas a berimbaus, tambores crioulos, coros de cirandas, rabecas, caxixis e violas caipiras. Havia inusitadas orquestrações. Havia senhas que não precisávamos glosar. Que entendíamos de imediato, trazíamos de cor, como se tatuadas no espírito. Havia o girassol da cor dos cabelos dela. A voz encantatória de Milton, (que depois tornar-se-á excessiva, preciosista, demasiado melíflua, afetada, meio “étnica” ou rococó, após os radicais anos 70. E nos desgostará definitivamente). Havia o senso de pau e corda (coisas acústicas + uma densa percussão) desses três discos fundamentais. Tudo isso meio que se perdeu na poeira de estrelas. E quase ninguém se lembra mais daquele você que parecia comigo e não se acompanhava de um senhor. Mas antes disso, o coração bateu sem medo, e buscou-se um caminho, feito nuvem cigana, “pelas ruas capistranas de toda cor”:
I. Um Girassol da Cor de Seu Cabelo (com Lô Borges): Este hinozinho geracional e intransferível em tom menor. Nenhuma como esta para derreter o coração das garotas àqueles tempos.
II. Cais (Com Milton e Carminho, numa versão posterior, tendendo ligeiramente ao fado)*
*Este ano, no aniversário da cidade de Fortaleza, 13 de Abril passado, um dueto improvável nos brindou com o show de encerramento da festa. Destaque para “Cais”, canção originalmente registrada no mesmo álbum do “Girassol…” acima, o opulento Clube da Esquina. Na versão abaixo, quatro décadas depois, é adorável a parte de Carminho e a diferença dos acentos. E é claro que Milton, aos 70, não é mais o mesmo nosso Milton dos anos 70, mas guarda vestígio):
III. Tudo Começa de Novo (com Nelson Angelo e Joyce): O fecho de um disco venerado pelos “iniciados” no Clube.
IV. Paixão e Fé (com Milton Nascimento e os Canarinhos de Petrópolis) De repente, Bach e os violeiros de Minas reunidos na mesma praça.
V. Cruzada (com Beto Guedes): Sinal de esperança e fraternidade na travessia de desertos, desmazelos políticos e ditadura.
Há quanto tempo não danço? Não lembro. Mas sinto até agora aquele abraço ondulante... fazendo marola! Aprendi com meu irmão, na sala, no corredor e nas festinhas regadas a cuba libre na casa dos amigos (você que tem menos de 30, 40, pode parar de ler). Meus pais não gostavam que eu fosse mas eu tinha UM irmão! E as minhas duas amigas vizinhas também tinham IRMÃOS. Então... sempre um par de olhos masculinos era responsável por nós. Mas o bom mesmo era durante a paquera ou já no namoro mesmo. Quando ele soltava a mão esquerda pra colocar os dois braços na cintura da gente... era quase um pedido de casamento! E a circunferência dos braços ía diminuindo de acordo com o interesse até os braços se cruzarem nas nossas costas. Sim, porque essa decisão era dele... nós éramos mulherzinhas e não tomávamos iniciativa alguma... Mas era também o momento de descartar o moço pra sempre - caso vc não estivesse a fim. E essa decisão era nossa... totalmente mocinhas - se é que me entendes. Era namoro. O corpo todo colado. Rosto. Coxa. Peito. Sentir o coração ressoar com a batida da música. A mão suar. Os olhares, a sincronia de passos, o movimento exato... tudo tão natural e absurdamente sensual. A gente cresceu um pouquinho e ainda pegou o tempo do "vamos pra outro lugar" dito sussurrado no meio da pista, e também pegou o tempo de dançar junto, e muito, com os amigos. Quem aqui dançou com Carlinhos Sampaio levanta a mão! Aliás, tinha uns baianos muito bons nesse negócio de dois pra lá dois prá cá - e olha que não peguei os tempos áureos da Clouse Up...mas dancei bastante. E dançava bem. Era boa de samba quadradinho - onde meu irmão dá show até hoje - o que na maioria das vezes surpreendia os menos avisados.
Bom mesmo seria hoje, no restaurante, antes mesmo da sobremesa, ouvir um "quer dançar?". E de pé, na hora em que o braço puxasse para o primeiro passo, poder se ajeitar dentro daquele abraço e me deixar levar.