Pesquisar este blog

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Salve-se sua obra!


Ficar velho é uma droga!

Caetano Veloso

Merquior tinha razão: Caetano é mesmo um pseudo-intelectual do miolo mole

Ficar velho é uma droga! Não porque você perde o desempenho sexual, o charme de conquistador, vista fica embaçada e quando vai jogar futebol com os amigos, é como diz o ex-jogador Júnior, o Leovegildo: é preciso jogar de relógio pra não perder o tempo da bola. Não é por nada disso. Essas coisas a gente tira de letra.
O chato mesmo de ficar velho é ver os nossos ídolos virarem massa de pastel. Sim. Meus ídolos, os ídolos da minha geração viraram massa de pastel. E é de pastelão de rodoviária, daqueles embrejados de gordura. Pensando bem, os ídolos deveriam morrer jovens. Todos morrendo jovens, assim como Castro Alves, Rimbaud, James Dean e Garcia Lorca. Para não dar tempo de desfazer o que fez. Para não virar massa de pastel diante de seus admiradores.
Ou então quando a gente (nós admiradores) ficasse velho perdesse a capacidade de ter ídolos. Quem é seu ídolo? Olha, acho que já tive. Mas não me lembro. Porque os ídolos quando envelhecem viram uma droga. E a gente que ficou velho perde o direito à idolatria.
Porque estou dizendo isso? Porque estou vendo os ídolos de minha geração, Caetano, Chico e Milton fazerem coro com o retrógrado Roberto Carlos em defesa de uma das coisas mais nojentas das ditaduras. Sejam elas esclarecidas ou disfarçadas. Uma das coisas mais nojentas das ditaduras é a censura. A imposição de barreiras para a circulação de ideias, de opiniões e de obras culturais.
Querem porque querem a manutenção dos famigerados artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro, que embarca num viés autoritário de só permitir biografias autorizadas. Biografia autorizada é adulação, puxa-saquismo, hagiografia (técnica de descrever vida de santos). Temos a lei mais ditatorial das nações ditas democráticas sobre o tema. Somos campeões de muita coisa ruim. Essa é mais uma de nossas mazelas. Nos outros países se uma pessoa fez por merecer o rótulo de “pessoa pública” ninguém precisa de autorização para escrever a biografia dela. Claro, desde que o biógrafo se apóie em fatos e as informações sejam obtidas por meios lícitos. No Brasil, biografia só com autorização e aprovação final pelo biografado ou representante legal. E meus ídolos querem defender a consolidação dessa infâmia.
Já faz algum tempo que José Guilherme Merquior chamou Caetano de “pseudo-intelectual de miolo mole”. Tomei o partido de Caetano. Onde já se viu? Como pode ser de miolo mole um sujeito que fez o que fez? Liderou o movimento da Tropicália. Que tomou posições vigorosas em favor da redemocratização do País. Como pode ser pseudo-intelectual? E pior que isso: de miolo mole? Francamente. Guilherme Merquior é que é (ou era) um cara ressentido e reaça. Isto sim.
Mas hoje sou obrigado a dar a mão à palmatória. Merquior tinha razões. Ainda que premonitórias. Porque o meu ídolo (parece que ele é que lidera os outros) tomar uma posição dessas só pode mesmo é estar com o miolo mole. Defender a censura às biografias, quando somos um país pobre culturalmente e indigente em biografias. As biografias que existem no País são quase que totalmente adulatórias. As que não são, ou estão recolhidas, ou autor está com processo nas costas. Quando não as duas coisas, como no caso do escritor Alaor Barbosa que escreveu uma biografia de Guimarães Rosa. O livro além de recolhido, Alaor está gastando os tufos para responder na justiça. E olhe que Guimarães é seu escritor de cabeceira. Só queria elucidação baseado em fatos reais e obtidos por meios lícitos (e nunca destorcer) a vida de nosso Joyce.
Ademais, biografias são veículos poderosos de divulgação cultural. Sem elas, os grandes vultos de uma geração morrem na geração seguinte. Nossos ídolos têm instintos suicidas. Suicídio historicamente falando. Ou no mínimo obscurantistas. Até você Chico? Até você Milton? Não. Devo estar “ouvindo coisas”. Ou já estou caduco. Mas isso não pode ser.
E ainda vejo nos jornais que quem diz o que é para Caetano dizer é sua mulher (ou seria ex?), a Paula Lavigne. Se for mulher, a coisa vai muito mal. Agora se for ex?… Meu amigo, nossa geração se atolou de vez no pântano da história!

“Sem tesão não há solução”

No final dos anos 80, quando muitos dos futuros leitores da Revista Bula ainda não tinham nascido, um irrequieto psiquiatra, Roberto Freire, nadando por rios primitivos do imaginário — e posicionando-se contra a corrente de hábitos carcomidos, assumiu pensar fora da caixa do social. Atirou ao lixo os restos de discursos terapêuticos mascarados, acolchoados em bolsas de gelo verbal. Quebrou as plácidas e acomodatícias normas do bem viver. Num impulso súbito, ainda derrubou das mesas dos escritórios os retratos empoeirados do núcleo conjugal nacional — protótipo da eterna família feliz. Anarquista, sim senhor, despejou em livros suas reflexões declaradamente contestatórias.
“Descobri que é chegada a hora de acrescentarmos ao tempo e ao espaço mais uma dimensão fundamental à vida no universo: o tesão. Para mim esse tesão não habita dicionários oficiais; entretanto, é o que anima e encanta os poetas tropicais. Tesão sem passado, apenas contemporâneo e vertical, ele é produto semântico e romântico dos que sentem desejo pelo desejo, alegria pela alegria e beleza pela beleza. Mas pode ser ainda tesão de quem sente desejo pela alegria, beleza pelo desejo e alegria pela beleza. Sem tesão não há solução” — sentenciou o médico.
Num breve conchavo contemporâneo, advertiremos agora, alargaremos os estreitos caminhos delineados entre o sigilo e cautela, ensaiando sussurros quase decretados à queima-boca.  Em sequência, os lábios mal se moverão, cumprindo todavia  o intento de passar adiante, virilizar, esta descoberta-mais-que-somática.
Desejo é pouco para nos referirmos à desanestesia primordial de tentarmos acordar com nosso coração batendo afoito, vermelhinho da silva, pulsando no conluio de um colchão quente. Levantar, olhar para o céu sempre escancarado, de vez em quando azul, nos abrangendo como único e consagrado teto do universo e dizer sem receios: “bom dia, vida”.
Depois do café-mais-banho, sair de casa (não exatamente saltitando como um estúpido ioiô; nem bailando feito dançarino deslocado em palcos abandonados) enxergar o verde, teimoso que só, intrometido no horizonte atulhado de cimento urbano.
Continuar girando devagar a cabeça. Observar a esperança, embutida nas folhas de certas árvores, por absurdo, ainda viçosas. Cheirar profundamente no ar cansado a transparência do oxigênio, entorpecido em meio a tanta poluição. Por fim, exclamar sem traços de qualquer vergonha: “venha vida, eu estou aqui para lhe usar”.
Usar e abusar, inclusive, dessa sensação mais que palpável, porém extrínseca à cibernética do cotidiano. Uma rotina tão metálica e arrojada se inflando direto em nossos bolsos e mãos, absolutamente ocupadas hoje pela ditadura do digital.
Convém frisar nesse instante: é bom esquecer de propósito o carro em casa. Lembrar-se que você ainda possui pernas, mobilidade, pulmões sedentos, sobretudo, por inspirar profundamente os invisíveis, mas intensamente presentes aromas do caótico ambiente das ruas. A fumaça do trânsito, os caprichos do destino ziguezagueado, quem dera montado  no lombo de um selvagem potro — exuberante como nenhum outro.
Sem tesão, desejo, vontade, fissura, movimento de alma ou o que seja, ninguém acorda de verdade. Até pode fingir, num arremedo de teatro de meia tigela, colocar-se de pé, arriscar sorrir com a boca esquecida de alegrias — e entortada pelas raízes do tédio — para o cônjuge inerte ao lado.
Sem tesão borbulhante, lubrificando motores da biologia e das energias individuais, ninguém consegue dar uma gargalhada genuína, ligar para saber dos amigos, convidar os filhos para soltar pipa, talvez  nas cobiçadas areias de Ipanema.
Então #comofas, indagaria aqui um tuiteiro aficcionado. Quem tem o mapa da mina, das querências, do diamante perdido no brilho do olhar, da pele do corpo acesa de intenções.
O desafio maior na atualidade é que tudo ou quase tudo que tocamos, experimentamos, desvendamos perde a graça em furiosos e famigerados segundos.
O tesão de sacudir imprevistos, matá-los no peito e chutar para escanteio, no campo dos esportes inter-relacionais, não está mais com a bola toda. Ou melhor, não está com bola alguma. Neste caso, já viu, acabou partida, adversário, dezenas de malucos doidos para dar uma “pimba na gorduchinha” — como arremataria um fanático locutor de futebol. Acabou. Infelizmente não tem mais nada. Porque sem tesão não há solução.
Talvez a maior revolução da história seja submeter a vigorosas massagens os flácidos e anestesiados músculos do querer. Vai uma alegria aí? Uma empolgação acolá? Sai baratinho um belo passeio na beira do mar, enfiando os pés neste mundão salgado e azul aqui denominado oceano atlântico. Não custa nada brincar de ser criança, enquanto houver chama de vida aquecendo as demandas do peito.
Não custa nada decidir trepar por inteiro. Com cabeça tronco e membros juntos, concentrados na função erótica — não apenas para aliviar o maldito estresse.
Roberto Freire ensinou que liberdade, prazer, sorrisos a esmo, sem pecado e nem juízo, são filhos diretos do tesão. Esse bicho gostoso, fumegante, espumoso, sempre ávido por emitir grunhidos, tingidos de puro sangue e galope indômito.
Essa incrível força do instinto, que se agita sem parar, bem lá dentro da nossa densa e enorme floresta de desejuras.