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terça-feira, 15 de novembro de 2011
Partituras
Eu ainda não conheci uma mulher que não fosse como uma música, como uma boa música. Porque elas há, como tantas as combinações de notas se podem fazer som.
Algumas músicas – ou mulheres? – são misteriosas, insinuantes, obscuras. Incessíveis, é o que parece antes do momento mágico em que se pode solfeja-las. São aquelas mulheres – ou canções – que arrebatam os órgãos do sentir. Como olhar o olhar de Liz Taylor e não se deixar afundar? Mas não é só naquele escuro cinema que elas ecoam, as obscuras. Estão em esquinas sombrias, estão em bares esfumaçados. Estão nestes lugares que as guardam em véus. Estão.
Há as discretas – canções e mulheres. Elas não costumam despertar, logo nas primeiras aproximações, onde mais básico se sente. São necessárias várias voltas na vitrola para que se dêem a conhecer em esplendor e alcance. São mulheres – ou músicas – que depois de desvendadas são sempre murmuradas. Alguns não as apreciam, queixam-se da simplicidade. Mas, se se tem a sorte ou a persistência de voltar a ela, é como avistar uma miragem – é a mesma? ou já é outra? Ou, ainda, nunca foi isso? E todas as respostas parecem corretas enquanto a melodia se faz carne em quem a aprecia.
Umas mulheres – ou músicas? – são, ainda, em crescente complexidade. Entregam-se. Esquivam-se. Quase se é capaz de cantarolá-las mas, em algum momento, ritmo ou letra se perdem. São reflexos - invertidos e vacilantes – de ilusões vívidas que ecoam no que ouve. São, sempre, sensação mais viva que carne. A elas se volta, sempre, muitas vezes mais, com uma fome encantada de luz e sombra: a completa nitidez é mágica. E, ainda assim, nunca se chega. Não há encontro possível.
Há, mulheres e canções, que ganham sentido apenas quando tocadas, aquelas que se estabelecem na ação, que se espalham tão dentro, cravam raízes de companheira tão alegre, bonita e sólida. Canções e mulheres de verdades simples, vivas como uma frutífera mangueira, generosa em sabor e sombra.
Amar uma canção é como tocar uma mulher. De início, o encantamento. Nunca lhe basta. Tão arrebatador quanto efêmero, os nervos à flor da pele e a vontade de sabê-la toda, intervalos inclusos. Em um depois, depois que vem após várias audições, mas que parece tão agora, imediato, é pele perdendo a cor, a flor sem viço, casca dos dias e das noites iguais. Um esgotamento de ouvir. Já não se consegue sentir de tanto que já esteve. Teme-se que a canção – ou a mulher? – já nada signifique. O antes equilibrado arranjo já soa monótono. Previsível é quem a escuta, porque a quis tanto, mas parece sempre que é a mulher – ou a canção. Retorna-se a ela, ainda e sempre e muitas vezes mais. Mas não é possível trazer o ingênuo deslumbre da primeira audição de volta e ela mulher/som parece cada vez mais tristemente nítida, como se a beleza estivesse no que se esconde. E está. Já não há enlevo, divorciado o ouvido está de quem o chama. Aquelas tais, mulher e canção, acabam por desaparecerem em outra sequência de notas que chegarão, surpreendentes, inéditas, tocantes.
Isso se sucede com todas. Mesmo com as que guardamos em cassestes à caneta indicados. Com nostalgia escuta-se, mas não com amor. Tocam, não o corpo, mas a idéia do corpo. Foram-se. Vão-se todas: mulhermilonga, mulhersinfonia, mulher-quarteto-de-cordas, mulher-concerto, mulher-suíte, mulher-cantata. Vão-se as cançõesloiras, as cançõesmorenas e, mesmo as ruivascanções, intensas, também se vão ao fim de outono.
Mas. E isso é o que há de tão lindo. Mas. Todo dia essa fome de sereias, mítico anseio. Mas. Repito e é aqui que já sei os futuros. Mas. Mas e mais. A canção. Só uma. Ela. E aí o rapaz, menino, homem, esquece-se de ser semideus e já não escuta sereias. Porque, enfim, a canção. Ele tem seu samba. Sua mulher. E, ora vejam, é de uma nota só. E basta.
Beijos - LUIZ FERNANDO VERISSIMO
Queria ser um homem moderno, mas tinha alguma dificuldade com o protocolo. Por exemplo: não sabia quem beijava. Quando via aproximar-se uma conhecida do casal, perguntava para a mulher, apreensivo, com o canto da boca: “Essa eu beijo? Essa eu beijo?”. Nunca se lembrava.
Para simplificar, passou a beijar todas. Conhecidas ou não. Quando lhe apresentavam uma mulher, em vez de apertar sua mão, beijava-a. Dois beijos, um em cada face.
– Muito (muá) prazer (muá).
Outro problema era a quantidade de beijos. Já tinha dominado os dois beijos, estava confortável com dois beijos, quando a moda passou a ser três. Um dia, a mulher comentou:
– Não sabia que você era tão amigo da Fulana (o nome verdadeiro não é este).– Beijo todas.
– Quantas vezes?
– Quem está contando?
Às vezes, ele partia para o terceiro beijo e a beijada não esperava. Ou então esperava e ele não dava, e quando ele voltava ela já recuara. Não havia nada mais constrangedor do que oferecer a face para o terceiro beijo (ou o quarto, quando a moda passou a ser esta) e o beijo não vir. Ficar, por assim dizer, com a cara no ar enquanto a mulher se afastava, rezando para que ninguém tivesse notado. O problema da vida, pensava ele, é que a vida não é coreografada.
Aí os homens começaram a se beijar também. Tudo bem. Seu lema passou a ser: se me beijarem, eu beijo. Mas não tomava a iniciativa. Quando chegavam numa reunião, fazia um rápido levantamento dos presentes. Essa eu beijo duas vezes, essa três, esse me beija, esse não me beija, aquele já está me beijando quatro vezes...
Na outra noite, numa
recepção de casamento, a mulher comentou:
– Você enlouqueceu?
– Me descontrolei, pronto.
– Você beijou todo o mundo.
– Todo o mundo estava beijando todo o mundo.
– Mas beijo na boca?
– Foi só um.
– Mas logo o padre?!
Tomado por uma espécie de frenesi, depois de beijar uma fileira de conhecidos e desconhecidos, ele dobrara o padre pela cintura e o beijara longamente, como no cinema antigo.
Tim tim por tim tim - Francisco Bosco
Como disse o poeta Augusto de Campos, “João trata as vogais como Pelé trata a bola”
“Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, seria preciso incluir nela: a escrita em voz alta”, escrevia, em voz baixa, Roland Barthes, nos anos 1970, para em seguida lamentar: “Essa escrita vocal (...), não se a pratica”. Tal como imaginada por Barthes, essa arte ignoraria a clareza das mensagens, o teatro das emoções, todo a dimensão, em suma, do sentido e da comunicação — seu campo de manobras seria antes fonético: “um texto onde se pudesse ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a volúpia das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda”. Compreende-se por que Barthes afirmava que essa arte não era praticada: ele não conheceu João Gilberto. Pois o baiano de Juazeiro, como uma espécie de Flaubert falado (e feliz), levou a arte da escrita em voz alta a um ponto sem precedentes, e ainda sem sucessores.
Esse aspecto da arte de João Gilberto é — como outros igualmente fundamentais de sua criação — minuciosamente investigado no documentário “Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto”, cujo roteiro é do cancionista e pesquisador Paulo da Costa e Silva. Com quase quatro horas de duração, o doc é apresentado pelo cancionista Romulo Froes e apresenta depoimentos da maior parte dos principais estudiosos daobra de João Gilberto. Embora tenha sido produzido por mim, para a rádio Batuta (www.ims.com.br/radiobatuta), sinto-me desimpedido de elogiá-lo, pois não sou o responsável por suas virtudes, e sim seu roteirista e seus entrevistados, que cumprem a promessa do título e revelam, com rigor demonstrativo, com quantos e quais paus se fez essa canoa que saiu da Bahia para ganhar o mundo.
Menos explorado, talvez, nas obras críticas que já lhe foram consagradas, o aspecto da operação com a língua no canto de João Gilberto receberá aqui meu destaque. Trata-se de uma arte dentro da arte, pois a construção do canto de João envolve outras decisões, fundamentais, de princípio. Como explica o preparador vocal Felipe Abreu, “é um canto naturalista, cujo parâmetro é se aproximar da fala. E isso vem desde uma utilização de uma tessitura muito próxima a da fala — quer dizer, com muito poucos agudos, mas numa região que mais ou menos um homem tem falando, até a questão da articulação e da enunciação do texto muito próxima àquela da fala”. Tais princípios remontam aos dois grandes precursores do canto falado na canção popular brasileira, Mario Reis e Carmen Miranda, que cantavam com pouco volume, articulando sílaba por sílaba com precisão milimétrica e esvaziando o pathos das canções (em Carmem, desde a escolha do repertório).
Mas as diferenças são claras e decisivas. Como esclarece Paulo da Costa e Silva, Mário canta staccato, João canta legato. Ou seja: Mário canta dividindo; João canta ligando. “Cantar em legato significa amaciar a transição de uma nota para outra, criando um traço de união entre elas. Mário Reis fazia o oposto: cantava separando. Com isso, obtém uma espécie de pontilhismo musical. A frase melódica é percebida como uma série de sílabas autônomas, que não variam muito em duração. De fato, raramente ouvimos Mário Reis sustentar por muito tempo uma mesma nota. Em João ocorre justamente o contrário: seu canto explora ao máximo a elasticidade das vogais. A frase melódica é percebida como um fluxo contínuo, um rio vocálico eventualmente bloqueado pela presença das consoantes.” Aqui é que o trato com a língua atinge o estatuto de ourivesaria.
João explora todas as potencialidades rítmicas e melódicas das consoantes oclusivas, como “p”, “t”, “k” (que, percussivas, interrompem o fluxo sonoro, recortando-o), das sibilantes (também percussivas, mas ao modo de instrumentos como o ganzá) e das vogais (em que o canto se dilata e a voz pode deslizar macia de nota a nota numa mesma emissão). Todo cantor joga com essas características, mas João joga especialmente bem: como disse o poeta Augusto de Campos, “João trata as vogais como Pelé trata a bola”. Na arquitetura sonora de João Gilberto, explica Paulo, “as vogais formam extensos vãos horizontais, livres, soltos no espaço. Eventualmente apoiados sobre pilares de consoantes”. Do mesmo modo, as consoantes são mobilizadas em toda a sua potência rítmica. Em “Pra que discutir com madame”, por exemplo, João comprime as vogais das palavras “discutir com”, fazendoas soar como um composto de chocalho, caixa e surdo: pra que “dz-k-tch-com” madame. Felipe Abreu arremata: “Vogais e consoantes são as cores e os traços com que ele pinta seus quadros. Quer dizer, a expressão do canto dele, muito mais do que em relação a agudos, potência, dinâmica vocal entre fortes e fracos, vem da utilização das cores das vogais e das consoantes para criar a palheta que ele usa no canto.”
Essa pintura, João a exercita mesmo quando em língua estrangeira. O ensaísta Lorezo Mammì comenta sua interpretação de “Estate”, canção italiana registrada no álbum “Amoroso”: “Ele não faz nenhum erro, mas parece que ele dissecou, encontrou exatamente para a linha melódica se aquele ‘o’ tem que ser um pouquinho mais aberto que ele é, se ele deve dar uma amolecida naquela consoante... Parece um italiano que passou por um filtro e foi reconstituído pedacinho por pedacinho.”
Enfim, eis aí uma bela recompensa para aqueles que, como eu, se desencorajaram diante dos altos preços da turnê — agora adiada — de João Gilberto.
“Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, seria preciso incluir nela: a escrita em voz alta”, escrevia, em voz baixa, Roland Barthes, nos anos 1970, para em seguida lamentar: “Essa escrita vocal (...), não se a pratica”. Tal como imaginada por Barthes, essa arte ignoraria a clareza das mensagens, o teatro das emoções, todo a dimensão, em suma, do sentido e da comunicação — seu campo de manobras seria antes fonético: “um texto onde se pudesse ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a volúpia das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda”. Compreende-se por que Barthes afirmava que essa arte não era praticada: ele não conheceu João Gilberto. Pois o baiano de Juazeiro, como uma espécie de Flaubert falado (e feliz), levou a arte da escrita em voz alta a um ponto sem precedentes, e ainda sem sucessores.
Esse aspecto da arte de João Gilberto é — como outros igualmente fundamentais de sua criação — minuciosamente investigado no documentário “Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto”, cujo roteiro é do cancionista e pesquisador Paulo da Costa e Silva. Com quase quatro horas de duração, o doc é apresentado pelo cancionista Romulo Froes e apresenta depoimentos da maior parte dos principais estudiosos daobra de João Gilberto. Embora tenha sido produzido por mim, para a rádio Batuta (www.ims.com.br/radiobatuta), sinto-me desimpedido de elogiá-lo, pois não sou o responsável por suas virtudes, e sim seu roteirista e seus entrevistados, que cumprem a promessa do título e revelam, com rigor demonstrativo, com quantos e quais paus se fez essa canoa que saiu da Bahia para ganhar o mundo.
Menos explorado, talvez, nas obras críticas que já lhe foram consagradas, o aspecto da operação com a língua no canto de João Gilberto receberá aqui meu destaque. Trata-se de uma arte dentro da arte, pois a construção do canto de João envolve outras decisões, fundamentais, de princípio. Como explica o preparador vocal Felipe Abreu, “é um canto naturalista, cujo parâmetro é se aproximar da fala. E isso vem desde uma utilização de uma tessitura muito próxima a da fala — quer dizer, com muito poucos agudos, mas numa região que mais ou menos um homem tem falando, até a questão da articulação e da enunciação do texto muito próxima àquela da fala”. Tais princípios remontam aos dois grandes precursores do canto falado na canção popular brasileira, Mario Reis e Carmen Miranda, que cantavam com pouco volume, articulando sílaba por sílaba com precisão milimétrica e esvaziando o pathos das canções (em Carmem, desde a escolha do repertório).
Mas as diferenças são claras e decisivas. Como esclarece Paulo da Costa e Silva, Mário canta staccato, João canta legato. Ou seja: Mário canta dividindo; João canta ligando. “Cantar em legato significa amaciar a transição de uma nota para outra, criando um traço de união entre elas. Mário Reis fazia o oposto: cantava separando. Com isso, obtém uma espécie de pontilhismo musical. A frase melódica é percebida como uma série de sílabas autônomas, que não variam muito em duração. De fato, raramente ouvimos Mário Reis sustentar por muito tempo uma mesma nota. Em João ocorre justamente o contrário: seu canto explora ao máximo a elasticidade das vogais. A frase melódica é percebida como um fluxo contínuo, um rio vocálico eventualmente bloqueado pela presença das consoantes.” Aqui é que o trato com a língua atinge o estatuto de ourivesaria.
João explora todas as potencialidades rítmicas e melódicas das consoantes oclusivas, como “p”, “t”, “k” (que, percussivas, interrompem o fluxo sonoro, recortando-o), das sibilantes (também percussivas, mas ao modo de instrumentos como o ganzá) e das vogais (em que o canto se dilata e a voz pode deslizar macia de nota a nota numa mesma emissão). Todo cantor joga com essas características, mas João joga especialmente bem: como disse o poeta Augusto de Campos, “João trata as vogais como Pelé trata a bola”. Na arquitetura sonora de João Gilberto, explica Paulo, “as vogais formam extensos vãos horizontais, livres, soltos no espaço. Eventualmente apoiados sobre pilares de consoantes”. Do mesmo modo, as consoantes são mobilizadas em toda a sua potência rítmica. Em “Pra que discutir com madame”, por exemplo, João comprime as vogais das palavras “discutir com”, fazendoas soar como um composto de chocalho, caixa e surdo: pra que “dz-k-tch-com” madame. Felipe Abreu arremata: “Vogais e consoantes são as cores e os traços com que ele pinta seus quadros. Quer dizer, a expressão do canto dele, muito mais do que em relação a agudos, potência, dinâmica vocal entre fortes e fracos, vem da utilização das cores das vogais e das consoantes para criar a palheta que ele usa no canto.”
Essa pintura, João a exercita mesmo quando em língua estrangeira. O ensaísta Lorezo Mammì comenta sua interpretação de “Estate”, canção italiana registrada no álbum “Amoroso”: “Ele não faz nenhum erro, mas parece que ele dissecou, encontrou exatamente para a linha melódica se aquele ‘o’ tem que ser um pouquinho mais aberto que ele é, se ele deve dar uma amolecida naquela consoante... Parece um italiano que passou por um filtro e foi reconstituído pedacinho por pedacinho.”
Enfim, eis aí uma bela recompensa para aqueles que, como eu, se desencorajaram diante dos altos preços da turnê — agora adiada — de João Gilberto.
Ensaio Sobre a Cegueira
Ensaio sobre a Cegueira é um romance do escritor português José Saramago, publicado em 1995 e traduzido para diversas línguas. A obra se tornou uma das mais famosas de seu autor, juntamente com Todos os nomes, Memorial do Convento e O Evangelho segundo Jesus Cristo.
Aos olhos de Saramago (autor):
"Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso."
Resumo/contexto da obra literária:
A cegueira começa num único homem, durante a sua rotina habitual. Quando está sentado no semáforo, este homem tem um ataque de cegueira, e é aí, com as pessoas que correm em seu socorro que uma cadeia sucessiva de cegueira se forma… Uma cegueira, branca, como um mar de leite e jamais conhecida, alastra-se rapidamente em forma de epidemia. O governo decide agir, e as pessoas infectadas são colocadas em uma quarentena com recursos limitados que irá desvendar aos poucos as características primitivas do ser humano. A força da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo governo e depressa o mundo se torna cego, onde apenas uma mulher, misteriosa e secretamente manterá a sua visão, enfrentando todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos os sentimentos que se desenrolam na obra: poder, obediencia, ganância, carinho, desejo, vergonha; dominadores, dominados, subjugadores e subjulgados. Nesta quarentena esses sentimentos se irão desenvolver sob diversas formas: lutas entre grupos pela pouca comida disponibilizada, compaixão pelos doentes e os mais necessitados, como idosos ou crianças, embaraço por atitudes que antes nunca seriam cometidas, atos de violência e abuso sexual, mortes,…
Ao conseguir finalmente sair (devido a um fogo posto na camarata de uma grupo dominante, que instalara ainda mais o desespero controlando a comida a troco de todos os bens dos restantes e serviços sexuais) do antigo hospício onde o governo os pusera em quarentena, a mulher que vê depara-se com a ausência de guarda: “a cidade estava toda infectada”; cadáveres, lixo, detritos, todo o tipo de sujidade e imundice se instalara pela cidade. Os cegos passaram a seguir os seus instintos animais, e sobreviviam como nômades, instalando-se em lojas ou casas desconhecidas.
Saramago mostra, através desta obra intensiva e sofrida, as reacções do ser humano às necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos também a refletir sobre a moral, costumes, ética e preconceito através dos olhos da personagem principal, a mulher do médico, que se depara ao longo da narrativa com situações inadmissíveis; mata para se preservar e aos demais, depara-se com a morte de maneiras bizarras, como cadáveres espalhados pelas ruas e incêndios; após a saída do hospício, ao entrar numa igreja, presencia um cenário em que todos os santos se encontram vendados: “se os céus não vêem, que ninguém veja”…
A obra acaba quando subitamente, exatamente pela ordem de contágio, o mundo cego dá lugar ao mundo imundo e bárbaro. No entanto, as memórias e rastros não se desvanecem.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Ensaio_sobre_a_Cegueira)
“Ensaio Sobre a Cegueira” e “A Caverna” continuam a ser os livros de José Saramago mais populares nos Estados Unidos e têm estado “continuamente a ser reeditados”, segundo a presidente da Fundação Saramago.
“José & Pilar”
De Lisboa, Pilar del Río trouxe o livro “José & Pilar”, a lançar em breve em Portugal pela editora Quetzal, com diálogos e entrevistas inéditas não incluídas no filme homónimo, realizado por Miguel Gonçalves Mendes, candidato português à nomeação para o Óscar de melhor filme estrangeiro.
Para Pilar del Río, o filme tem um caminho “muito difícil” para os Óscares 2012, mas alcançar a nomeação e o troféu seria o “triunfo da qualidade e da beleza sobre a estratégia industrial”.
“Estamos a competir para o Óscar com uma indústria muito séria, muito rigorosa, multimilionária. E este é um filme feito por uns miúdos, sem mais apoio, sem indústria, sem ninguém por detrás. Se este filme ganhar o Óscar, será o triunfo da qualidade e da beleza sobre a estratégia industrial”, diz Pilar del Rio.
Com a presença do realizador Miguel Gonçalves Mendes, o evento “Emptiness, Silence” (“Vazio, Silêncio”) decorreu no domingo na galeria Sonnabend, onde foram mostradas fotografias de Rita Barros, que acompanhou o casal Saramago numa visita à cidade em 1996, e também da alemã Cândida Höfer sobre Portugal.
Já no final, Pilar del Río tomou a palavra para dizer que “o grande homem e intelectual Saramago” se enganou quando disse que “morrer é ter estado e já não estar”, pois ele “está cada vez mais vivo e é mais necessário”.
Pilar del Rio contou que quatro dias antes de morrer, quando já estava “um pouco ausente”, José Saramago disse a um grupo de amigos, reunido para festejar os 24 anos de união do casal, que a crise actual “não é económica, é moral, uma crise moral que vamos pagar economicamente”.
“Deu-nos a última lição, de olhar mais longe e ir mais além”, referiu a jornalista e tradutora da obra de Saramago.
Os cidadãos, disse, podem “fazer muito mais”, têm “muito poder” e a única questão é acreditarem em si mesmos.
“Saramago é um imprescindível. Está nos corações dos leitores, mas está também porque é necessário, porque precisamos de pensamento, porque, se continuamos a viver sem pensar, estamos a encaminhar-nos para o precipício e falta-nos pouco para cair”, adiantou.
A “Semana de Saramago” decorre num país que o escritor criticou duramente durante a administração Bush, e que hoje vive movimentos de protesto de indignados em vários pontos, o maior dos quais não muito longe do sítio onde decorreu a leitura de textos de domingo - Ocuppy Wall Street, na baixa de Nova Iorque.
Para Pilar, Saramago “já escreveu sobre o que está a acontecer agora no mundo, em Wall Street e noutros lugares”: “O livro chama-se ‘Ensaio sobre a lucidez’. Aí está tudo escrito”, disse à Lusa.
http://www.publico.pt/Cultura/caim-de-jose-saramago-com-grande-acolhimento-1519020
Outros tempos, outros costumes
Ciberescritas
http://www.ciberescritas.com/2011/11/15/outros-tempos-outros-costumes/
José Saramago acabou de escrever “Claraboia” no dia 5 de Janeiro de 1953. Era o seu segundo romance. Assinou-o com o pseudónimo de Honorato e dedicou-o à memória do avô, Jerónimo Hilário.Abriu-o com uma epígrafe de Raul Brandão: “Em todas as almas, como em todas as casas, /além da fachada, há um interior escondido”.
Encarregou um amigo de o enviar para um editor mas nunca lhe deram resposta sobre se o livro ia ser publicado ou não. Decidiu que deixaria de ser escritor e durante vinte anos não quis publicar nada mais. “Claraboia” permaneceu inédito durante estes anos todos. Mas desde a meia-noite de 30 de Setembro que o romance está disponível em versão ebook. Pode ser comprado e descarregado em qualquer lugar do mundo através da loja online mediabooks.com (para ser lido no computador) ou comprado através da aplicação Leya-MediaBooks, que pode ser descarregada através da loja de aplicações da Apple e permite que o livro seja lido no iPad ou no iPhone. Esta semana a versão impressa de “Claraboia” (ed. Caminho) chegou às livrarias portuguesas.
No primeiro capítulo Silvestre, o sapateiro, levanta-se da cama e discute com Mariana sobre se deverão ter ou não novo hóspede. Lá fora, na rua, ouve-se a voz de uma mulher a apregoar fava-rica. “Silvestre não chegava a perceber como vivia aquela mulher. Nenhum dos seus conhecidos comia favarica, ele próprio não a comia há mais de vinte anos. Outros tempos, outros costumes, outras comidas. ” (pág. 11).
Esta frase “outros tempos, outros costumes”, escrita por Saramago em 1953, cai como uma cereja no que aqui está a acontecer. É quase premonitória. Pedro Sobral, responsável pela plataforma de ebooks da Leya, confirma que é a primeira vez que em Portugal uma obra de um grande autor de língua portuguesa “é colocada à venda em exclusivo antes da versão em papel”.
Quanto a números de “downloads”, a Leya não tem por hábito divulgá-los. Mas “as vendas estão a correr muito bem quer na nossa aplicação para Apple onde está disponível desde a meia noite de 30 de Setembro, quer na nossa loja online mediabooks.com”, diz. Espera-se que este seja o ebook com maiores vendas desde que foi lançado o projecto Leya de livros em formato digital.
A publicação do livro foi atribulada. Quando o Nobel da Literatura 1998 tinha 30 anos deu a um amigo o manuscrito de “Claraboia” para que ele o entregasse a uma editora portuguesa. Essa editora não mostrou interesse em o publicar. “Decisão que Saramago poderia aceitar, mas nunca daquela forma, durante meses e anos não lhe responderam e, para além disso, não devolveram o original”, lê-se a propósito do lançamento do livro no site da Fundação José Saramago. Quarenta anos depois, Saramago foi contactado por essa editora com a “insólita notícia” de que “numa mudança de instalações se havia encontrado um manuscrito e que estariam muito interessados em publicar”. Saramago respondeu que já não era o momento. Não quis ver “Claraboia” publicado em vida mas deixou escrito que os que lhe sobrevivessem fizessem o que pensassem ser conveniente.
Assim fizeram. O blogue “O Caderno de Saramago” (que o escritor manteve nos últimos anos) junta-se à iniciativa da publicação e cada dia deste mês publica pequenos fragmentos deste “livro que foi escrito nos primeiros anos da década de 1950 para ser lido exactamente agora.”
Leya-Media-Books
http://www.mediabooks.com/
Outros cadernos de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/
(crónica publicada no ípsilon de 21 de Outubro de 2011)
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