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domingo, 13 de janeiro de 2013

"A Música Segundo Tom Jobim" - o filme



Saiu o DVD de A música segundo Tom Jobim, que pode ser adquirido nos melhores sites que vendem os disquinhos. Indispensável.

1.) Documentário que foge ao feijão com arroz tradicional das imagens entrecortadas por depoimentos, A música segundo Tom Jobim, do veterano Nelson Pereira dos Santos, é um documentário extraordinário. Primeiro, porque é sobre Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o maior compositor brasileiro de todos os tempos, e, segundo, porque o filme se restringe às músicas e às imagens de arquivo, sugerindo uma obra sinfônica. O realizador do clássico Vidas secas teve a sensibilidade suficiente de colher os registros de um tempo e acioná-los por meio da música do célebre maestro autor (com Vinicius de Morais) de Garota de Ipanema. Veja aqui o trailer oficial do filme em HD:


2.) Tom Jobim é mais conhecido como um compositor da Bossa Nova, o parceiro de Vinicius, Carlos Lyra, Chico Buarque, Newton Mendonça, outros, mas, na verdade, é um compositor que atinge os limites fronteiriços da música clássica, como podem ser observadas suas partituras para discos como Wave, Matita Perê, Passarim, Urubu. Com formação clássica e influências diversas, entre as quais Debussy, Jobim é um fenômeno de talento. Ouvir a sua música e ver as imagens de sua grande época - inclusive na interpretação por outros notáveis - se constitui num espetáculo único. A pesquisa de imagens teve a colaboração da segunda esposa do maestro, Dora Jobim, que cedeu os registros cinematográficos do Instituto Antonio Carlos Jobim. Nelson Pereira dos Santos chegou, por isso, a incluí-la como co-autora de A música segundo Tom Jobim.

3.) Partiturista de filmes nacionais e estrangeiros, entre os que assinou osoundtrack destacam-se: Orfeu negro (aqui chamado Orfeu do Carnaval, 1959)), o polêmico filme do francês Marcel Camus, baseado na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Morais; Porto das caixas, (1962), de Paulo César Saraceni, Garota de Ipanema (1967), o fracassado filme de Leon Hirszman, que pretendeu criticar o mito e mostrou que estava completamente fora de sua praia, pois cineasta enragé; O mundo dos aventureiros (The Adventurers, 1969), de Lewis Gilbert, com Charles Aznavour, Candice Bergen, Ernest Borgnine, Rossano Brazzi, Olivia de Havilland, John Ireland, uma superprodução de quase três horas de duração; A casa assassinada (1974), de Paulo César Saraceni, que se baseou num livro de Lúcio Cardoso. A trilha de Jobim, para este filme, é magnífica; Gabriela Cravo e Canela (1982), de Bruno Barreto, com Sonia Braga e Marcello Mastroianni; entre outros, sem esquecer a música que fez, em parceria com Chico Buarque de Holanda, para a minissérie Anos dourados da rede Globo. Se não fosse uma certa preguiça que o caracterizava, Jobim poderia ter feito partituras para muitos filmes importantes e, como partiturista de cinema, pode ser comparado a alguns maiorais como Lalo Schifrin, John Williams, Jerry Goldsmith.

4.) Sempre admirei muito Tom Jobim e comprei quase toda a sua discografia disponível, que a tenho em vinil, faltando apenas um ou dois discos. Mas com o advento do CD, e a falência de meu toca-discos (difícil de encontrar outro por aqui), não posso mais ouvi-lo em suas extensões mais clássicas. Sempre que vou ao Rio, quando da aterrissagem no aeroporto que tem seu nome, lembro-me, logo, de seu Samba do Avião. Uma vez, no Rio, fui ao Bar Veloso, em Ipanema, lá pelos anos 70, e me sentei para tomar alguns chopes. De repente, duas mesas adiante, vi sentado, sozinho, com um chapéu panamá, o próprio Tom Jobim. Naquela época, um chopp sempre via acompanhado de uma bolacha de papelão pela qual se contava a quantidade bebida. A mesa na qual Jobim se sentara estava com um monte dessas bolachas, sinalizadoras de que tinha entornado muitos e muitos chopes. Pensei em me aproximar do maestro, mas, por tímido, fiquei constrangido. O garçom me disse que ele frequentava todos os dias e, geralmente, saía riscando. O Bar Veloso foi reformado e tomou o nome de Garota de Ipanema, mas não tem mais as mesinhas características com suas cadeiras de vime.

5.) Foi neste bar que Jobim recebeu uma ligação de Frank Sinatra. Conta a lenda que Sinatra, impressionado com o talento de Jobim, quando de sua apresentação nos Estados Unidos, queria gravar um disco com ele. Telefonou para sua casa em Ipanema, e sua primeira esposa, Tereza (sim, a Tereza da Praia) informou que o marido deveria estar bebendo no Veloso e deu o número do bar a Sinatra. Este imediatamente ligou e quem atendeu foi o garçom, que foi avisar na mesa onde Jobim estava tomando chopes com os amigos. Todos ficaram estupefatos. O grande Frank Sinatra a telefonar para Jobim no bar! Jobim foi atender num daqueles telefones pendurados na parede. Sinatra então o convidou para a gravação do disco.

6.) Ruy Castro em A República de Ipanema conta a maravilha que era se morar no bairro nos anos 60 e 70. Era uma verdadeira república como alude o título do livro. Com o passar do tempo, Ipanema se descaracterizou, perdeu alguns de seus bares característicos e seus frequentadores famosos. Ficou apenas a lembrança de um tempo feliz. Castro, talvez num acesso de exagero, chega a comparar Ipanema daquele tempo como o paraíso na terra.

7.) Tijucano, na época em que a Tijuca pertencia ao Rio Zona Norte, Jobim nasceu em 24 de janeiro de 1927, vindo a morrer em 8 de dezembro de 1994, aos 67 anos. Fora a Nova York fazer uma cirurgia de próstata num dos centros de excelência na especialidade. A operação correu bem, mas um coágulo se soltou e invadiu uma artéria coronariana, obstruindo-a. Mas Tom era da Tijuca apenas por nascimento, porque sua família se mudou para Ipanema assim que ele completou um ano de idade. Segundo está escrito na Wikipédia, "a ausência do pai, Jorge de Oliveira Jobim, durante a infância e adolescência lhe impôs um contido ressentimento, desenvolvendo no maestro uma profunda relação com a tristeza e o romantismo melódico, transferido peculiarmente para as construções harmônicas e melódicas. Aprendeu a tocar violão e piano em aulas, entre outros, com o professor alemão Hans-Joachim Koellreutter, introdutor da técnica dodecafônica no Brasil." Vale ressaltar que durante a época de ouro da Universidade Federal da Bahia, anos 50 e 60, Hans Joachim Koellreutter foi convidado pelo reitor Edgard Santos para compor o corpo docente do então inaugurado Seminário de Música.

8.) O diretor de A música segundo Tom Jobim, Nelson Pereira dos Santos, é considerado o grão-duque do cinema brasileiro. Nelson plantou as sementes do Cinema Novo com o seu precursor Rio quarenta graus, que seria seguido por Rio Zona Norte. O seu melhor filme é, também, um dos melhores do cinema nacional em todos os tempos: Vidas secas, adaptação rigorosa do livro homônimo de Graciliano Ramos Na sua filmografia tem uma boa versão de Nelson Rodrigues para as telas: O boca de ouro, com Jece Valadão no papel-título. Se Nelson se dá bem nas adaptações dos livros do Velho Graça (Memórias do cárcere é um grande filme), não consegue, no entanto, ser feliz nas versões realizados dos romances de Jorge Amado: Jubiabá é frustrante para quem leu o livro, e Tenda dos milagres, ainda que bem melhor, não convence.

Para quem gosta de boa música, um filme para ver obrigatoriamente.

Tuna Espinheira também escreveu sobre o filme quando do seu lançamento:

O velho Tuna Espinheira foi ver A música segundo Tom Jobim, de seu amigo Nelson Pereira dos Santos (que produziu um de seus filmes curtos) e saiu deslumbrado com a beleza do documentário. Chegando ao seu apartamento, bateu o comentário que vai abaixo e, na afobação, nem parou no bar vizinho de Seu Hermenegildo para tomar a sua cerveja acompanhada de uma rigorosa Seleta. Abro aspas para evitar desconforto textual:

"Nelson Pereira dos Santos, mestre divisor de águas, da história do cinema brasileiro, faz um gol de placa com o filme: A música segundo Tom Jobim. A opção feliz de contar a saga do compositor tão somente pelas suas próprias criações melódicas foi deveras um grande achado. A edição primorosa trás para as retinas (estas costumeiramente cansadas) dos espectadores, a impressão de estar vendo um filme com um único plano sequencia, (embora com centenas de cortes)

A abertura do filme, nas asas da Panair, em preto e branco, dando uma visão de um Rio antigo, é deslumbrante e, sem gastar saliva, encarna o maestro iluminado na cidade do Rio de Janeiro e vice versa. Se existe o chamado carioca, com seu jeitinho de ser, seu retrato falado coincide com próprio Tom, não se pode separá-lo da Cidade Maravilhosa, assim como não se deve apartar Dorival Caymmi da Bahia.

Mesmo sendo uma mania antiga, esta de contar um filme, não cabe neste caso, é incontável, só vendo, seu enredo é puramente para ver e ouvir. Um impressionante desfile de artistas, ao nível de Ellla Fitzgerald; Frank Sinatra; Sammy Davis Jr; estas e outras e outras feras imortais, em rico material de arquivo de filmes, tocando e cantando as pérolas musicais do bruxo compositor, a quem o Chico Buarque chamou: de “Maestro Soberano”. É um revezamento de cenas antológicas de artistas nacionais e internacionais, um espetáculo de dar água na boca, para uns, e de deixar a alma lavada, para muitos.

Sem querer comparar, mas me lembrou O Baile, de Ettore Scolla. Talvez porque é também a música que conduz o enredo. A realização de um filme mudo, mas não silencioso, como estes dois, enfrenta o suspense do caminhar no fio da navalha. Semelhante a um jogo de armar, cada peça no seu cada qual. É tudo ou nada. É coisa é coisa de mestre.
Nelson fica devendo o filme número 2, agora falado. Tem muito pano prá manga neste outro olhar necessário sobre Jobim, muitas histórias, estórias “causos”, depoimentos, coisas do arco da velha. O Diretor já provou ser um ótimo regente de conversações (vide o documentário sobre Sergio Buarque de Holanda), vai tirar de letra.

Mestre Nelson , na plenitude dos oitenta anos, fez um gol de placa com o filme: A Música Segundo Tom Jobim."
 
 

‘Vamos celebrar o Mané Garrincha’ - Elza Soares


Pedro Motta Gueiros
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Elza Soares com a imagem de Garrincha vestindo a camisa do Botafogo
Foto: Gustavo Stephan / O Globo
Elza Soares com a imagem de Garrincha vestindo a camisa do BotafogoGustavo Stephan / O Globo
 
RIO - Sem receber um centavo de Garrincha, Elza Soares é herdeira de seu bem mais valioso. A uma semana dos 30 anos de sua morte, em 20 de janeiro de 1983, o craque vive na capacidade da ex-mulher de usar a arte para driblar as pancadas da vida. Depois de perder três filhos e seu maior amor, Elza ainda solta a voz com otimismo e bom humor para sustentar um mito de rara grandeza.
Entre o apogeu e a derrocada, qual a imagem que fica do Garrincha?
Do futebol feliz, daquele homem alegre, que entrava em campo e acabava com qualquer tristeza e monotonia. Esquece o outro lado, já tem muita gente por aí fazendo besteira. Se soubesse por que ele foi esquecido já tinha corrido atrás como fiz para evitar que tirassem o nome dele do estádio de Brasília. E ganhei. Fui lá na Câmara e falei: “o que sobrou para ele foi isso”.
O Brasil não gosta de olhar para suas mazelas?
É como dizia o Cazuza: “Brasil, mostra a sua cara, quero ver quem paga para a gente ficar assim...” O espelho às vezes mostra coisas feias. Eu amo o espelho, mas tem gente que não gosta. Sou um ser humano, tive momentos de desespero mas você não pode sair gritando por aí. A dor é minha e me doeu. Melhor celebrar do que sofrer. Vamos celebrar o Mané Garrincha.
Já se passaram 40 anos da Copa de 1962, quando o Garricnha conquistou a madrinha da seleção como seu maior troféu...
Parece que foi tudo agora, ainda sinto o cheiro, o calor dele. Mané era muito limpo, cheiroso e asseado. Foi uma coisa de pele, de encostar, arrepiar. Alquimia total. Muito amor. Depois da Copa, ficamos fechados vários dias na minha casa na Urca. Na época, se deixava o pão e o leite na porta. Acumulou tudo. Eu saía devagarinho, pegava uma garrafa de leite, um pão, e entrava.
Consta que a paquera no início era com o Pelé...
Deus me livre. Não estou desfazendo, mas nunca fui esse tipo de mulher. Se fosse o Mané, seria o Mané e não o Pelé. Tenho respeito, mas para mim o rei é o Mané.
Como pintou o clima?
Negócio de Pelé?
Não, Mané. Pelo que você conta, o Pelé nem chegou perto...
Se alguém chegou, não fui eu. Tinha vinte e poucos anos, sempre tive corpo muito perfeito, mas para conquistar o Mané, o negócio era fazer uma boa comida. Gozado que ele era caçador mas gostava muito de peixe. Eu fazia uma peixada na panea de barro, com pirão, muito coentro, pimenta. Ele chegava em casa e só pelo cheiro já sabia que quem tinha feito era eu. Comia com muito gosto porque depois ele tinha outro peixe para comer. Prefiro falar assim com essa ironia que era dele.
Como vocês se conheceram?
Fui ver um treino da seleção em Friburgo antes da Copa. O Mané pediu para falar comigo, disse que tinha comprado um disco meu e estava espantado com a forma como eu cantava. Também falou que tinha ganhado um disco da cantora cubana Celiz Cruz e do músico J.J Johnson, que era o maior tombonista na época. Fiquei surpresa: “Cara, você conhece J. J. Johnson?”. Ficamos conversando e na hora de ir embora ele me deu um beijo. Eu correspondi, lógico. Receber um beijo e não retribuir seria falta de educação.
E no Chile?
Quem tomava conta dos jogadores era um cara muito bravo, o Paulo Amaral, mas ele gostava de mim e me levou para fazer uma visita à concentração. Foi um auê. Eu era uma menininha, custei muito a virar mulher. Na nossa conversa, eu falei para ele da minha preocupação porque estava faltando um monte de coisa lá no Brasil, arroz, feijão, soja, e sabe o que Mané disse? “Não se importa não, tenho um sítio e quando eu voltar vou abastecer vocês, desde que você faça uma feijoada para mim”. Essa foi nossa conversa, não dá para esquecer.
Em sua primeira aparição pública, no programa de calouros de Ary Barrosso, você disse que vinha do planeta fome, mas em 1962 a escassez que te preocupava era outra?
Estava falando do povo. Eu já tinha filé mignon na geladeira. Não precisava do Garrincha para nada. Na minha casa, só não tinha cerveja porque nunca gostei de bebida. Nem sabia que ele bebia, fui descobrindo aos poucos. Ele começou a chegar bêbado, dizia que tinha vindo de uma festa. Com o tempo, essa festa passou a ser todos os dias. Ele enterrava as garrafas de cachaça na beira da Lagoa, quando a gente morava lá. Saía para pescar e voltava embriagado. É triste demais para quem viu aquele garoto no auge virar aquele cara tão acabado.
E a separação?
Foi muito doída, tinha que fazer se não ele matava o meu filho. Pegava o menino pelos pés na beira da piscina e ficando gritando: “vou soltar”. Quando bebia ficava agressivo. É aquele negócio de o médico e o monstro. Depois, vinha cabisbaxo. Vivemos entre a dor e o desejo até o fim. Mané era um grande amante, um puta amante, só dizendo assim. Essa fama não é à toa. Era habilidoso até demais
Numa crônica, o Hermínio Bello de Carvalho tornou público o mito da virilidade ao revelar seu espanto diante da queda da toalha de Garrincha no vestiário do Botafogo...
Tudo que o povo queria era que o Mané deixasse cair a toalha. Todo mundo queria ver aquele índio criado a Toddy, livre, ao vento. O Mané tinha muito humor. Era uma pessoa linda de se lidar, que tem a cara do Brasil. Sumia para o mato, vivia sem camisa, com aquela sunga, as pernas tortas... Dizia: “Criola, tô indo”. Se enfiava no sítio do Chico Anysio e desaparecia. Trazia só passarinho. Era a paixão dele, conversar com os pássaros. Era gentil, sabia tirar a cadeira para uma mulher sentar, como já não se faz mais hoje. Se fizer, a mulher cai de bunda no chão. Nunca ouvi um palavrão da boca dele.
Em meio às dores, é preciso preservar a delicadeza.
Perdi três filhos, dois foram embora porque não tinham o que comer. Nem por isso, deixei de ser o que sou. Acordo todo dia com esperança de que vai ser melhor. Se está difícil, não briga. Brinca. Usei muita maquiagem, muito curativo para esconder as feridas. Tenho a minha medicina que é a música. Graças a Deus estou com um show maravilhoso, “Deixa a nega gingar”, vou para a Europa e muita gente por lá ainda pergunta por ele. As vezes, é preciso dar uma beliscada. Tudo que acontece hoje no futebol começou com ele. Gosto de passar naquele muro do Botafogo para ver a caricatura dele e apontar: olha lá o cara. Tenho camisas 7 que compro nas Copas do Mundo. É esquisito, você sofre dobrado, suspira fundo porque é muito frágil. Toda alegria do povo é sofrida, são momentos, um bom carnaval, um bom réveillon. Natal não sei se é muito bom, fica todo mundo contando dinheirinho para comprar presente. A gente não controla nada. Ninguém é de ninguém, fica tudo aí.
Para quem veio do planeta fome, a vida lhe ofereceu um rodízio completo de emoções.
As vezes foi pesado, mas teve de tudo. Só quem veio do planeta fome sabe dar valor a um banquete. Tento sair e levar muita gente mas tem quem adore o planeta fome, quem não faça nada para sair dele, é pao e circo mesmo. Não adianta ficar de vítima. A vida dá chance e você tem que aproveitar. Cantando o espírito fica livre, lindo e maravilhoso, mas evito algumas músicas do passado, como “Se acaso você chegasse”, a primeira que gravei, porque me lembram muito dele.
Você sobreviveu literalmente a um tiroteio por ficar ao lado dele, não?
Em 1970, lembro que ele foi me buscar num show e o nosso carro foi cercado por homens armados. Como o trânsito parou e as pessoas começaram a nos reconhecer, eles foram para a porta da nossa casa, no Jardim Botãnico. A gente já tinha subido para o quarto quando os vidros começaram a pipocar. Tinha um piano na sala que foi partido ao meio. O segurança perdeu parte do braço. Nunca soubemos o motivo, apenas que tínhamos que sair do Brasil. Vimos a final da Copa de 1970 num quarto em Roma, com o Mané chorando.
Ficou na sua conta o fim do primeiro casamento e da carreira que o proprio Garrincha não conseguiu conservar...
Peguei ele já em declínio. Eu estava lá em cima e ainda era acusada de me aproveitar. Tinha uma coisa meio absurda, um falso moralismo, porque ninguém falava que eu saía para cantar pelo Brasil em cima de caminhão para dar de comer às meninas deles, porque ele não tinha como pagar a pensão. Quem ganhava dinheiro era eu. Abri minha vida para ele, engravidei para lhe dar um filho. Moramos na Urca, Ilha do Governador, Lagoa, Jardim Botânico e ainda mandei fazer a casa de Jacarepagua para trazer as filhas dele, sete meninas. Queria dar o melhor para ele, tínhamos mordomo, governanta. O Mané se incomodava com a presença do mordomo sempre atrás dele e mandava que fizesse um prato para sentar na mesa e comer com todo mundo.
Você tinha a ilusão de que poderia transformá-lo num homem da sociedade?
Eu achava que um dia ele ia ser isso. Um vez, fiz um jantar incrível para que não se falasse apenas da bebedeira. Consegui botar um blazer no Mané, comprei naquela casa mais chique de Copacabana. Quando desceu a escada, era um lorde, estava lindo. Eu achava que ele iria virar um lorde. Para mim, sempre foi. Depois, teve o bar naquela casa que comprei da família do Nelson Rodrigues em Vila Isabel. Minha intenção era o Mané receber times que viessem jogar no Rio, mas foi pior porque havia muita garrafa nas prateleiras. Quando procurava por ele, estava dormindo atrás dos sacos de feijão, completamente embriagado. Perdi o bar, tinha que perder.
Você também tentou completar a escolaridade dele?
Depois que parou de jogar, contratei um professor particular, o Sebastião Filgueiras, de uma família de advogados fortíssimos. Foi uma decepção logo na pimeira aula. O Mané não deu uma palavra e ainda ficou bravo comigo, que eu o estava chamando de analfabeto. Foi uma lição. Garrincha dificilmente lia um jornal, o negócio dele era caçar, era natureza. Também caçava muito rabo de saia. Sabia caçar muito bem, era macho, tinha essa necessidade. Eu sabia, mas a casa dele estava lá. Ele voltava.
Garrincha fazia planos, tinha ambições?
Não. Mané era hoje. Gostava muito de olhar o céu, as estrelas e se espantava: “Meu Deus, como essa gente é boba, não sabe que vai viver por um tempo tão curto, para que ficar preso a tanta coisa, não vai levar nada..” Tinha uma filosofia de vida que também é a minha.
Espiritualmente, ainda tem alguma conexão com ele?
Tenho não. É muito dificil. Rezo muito, converso com ele, peço ajuda, mas não tenho esse poder. Nós nos separamos.
Você consegue rever o Garrincha no futebol de hoje?
Vejo o Neymar querendo fazer um pouco do Mané. Espero que um dia ele faça, rezo muito por ele, pode ficar tranquilo, como rezei muito para o Romário, para o Ronaldo. Tem que tomar conta do menino. Neymar usa a camisa 11 que o Garrincha usou em 58, tomara que chegue lá. É um menino leve, sem problemas, feliz. Torço para que não se machuque. Também gosto muito do Ronaldo e espero que agora como dirigente ele possa fazer da Copa uma homenagem ao Garrincha. Os jogadores de hoje não sabem quem ele foi. Nem citam. Quero fazer um museu para o Messi e o Cristiano Ronaldo conhecerem o Mané.
Pela sua capacidade de driblar a vida com arte, você é uma herdeira legitima de Garrincha.
A gente improvisa muito, Na vida e na musica também. Estrou sempre dando meu olé para cá e para lá. Mas com toda a brincadeira, levo a vida a sério, é linda demais, exige cuidado. Sou agradecida a tudo, até às criticas. Sem elas talvez não soubesse valorizar o que ganhei e o significado da palavra amor.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/esportes/elza-soares-vamos-celebrar-mane-garrincha-7279909#ixzz2HsjqovzO

As boas coisas da vida


Photo: Painel_Cantagalo


 Uma revista mais ou menos frívola pediu a várias pessoas para dizer as “dez coisas que fazem a vida valer a pena”. Sem pensar demasiado, Rubem Braga, fez esta pequena lista:

- Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: go...sto de infância, de tarde na fazenda.

- Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.

- Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos servente de pedreiro.

- Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.

- Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.

- Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.

- Viajar, partir…

- Voltar.

- Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio

- Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.

Rubem Braga