Pedro Motta Gueiros
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RIO - Sem receber um centavo de Garrincha, Elza Soares é herdeira de seu bem mais valioso. A uma semana dos 30 anos de sua morte, em 20 de janeiro de 1983, o craque vive na capacidade da ex-mulher de usar a arte para driblar as pancadas da vida. Depois de perder três filhos e seu maior amor, Elza ainda solta a voz com otimismo e bom humor para sustentar um mito de rara grandeza.
Entre o apogeu e a derrocada, qual a imagem que fica do Garrincha?
Do futebol feliz, daquele homem alegre, que entrava em campo e acabava com qualquer tristeza e monotonia. Esquece o outro lado, já tem muita gente por aí fazendo besteira. Se soubesse por que ele foi esquecido já tinha corrido atrás como fiz para evitar que tirassem o nome dele do estádio de Brasília. E ganhei. Fui lá na Câmara e falei: “o que sobrou para ele foi isso”.
O Brasil não gosta de olhar para suas mazelas?
É como dizia o Cazuza: “Brasil, mostra a sua cara, quero ver quem paga para a gente ficar assim...” O espelho às vezes mostra coisas feias. Eu amo o espelho, mas tem gente que não gosta. Sou um ser humano, tive momentos de desespero mas você não pode sair gritando por aí. A dor é minha e me doeu. Melhor celebrar do que sofrer. Vamos celebrar o Mané Garrincha.
Já se passaram 40 anos da Copa de 1962, quando o Garricnha conquistou a madrinha da seleção como seu maior troféu...
Parece que foi tudo agora, ainda sinto o cheiro, o calor dele. Mané era muito limpo, cheiroso e asseado. Foi uma coisa de pele, de encostar, arrepiar. Alquimia total. Muito amor. Depois da Copa, ficamos fechados vários dias na minha casa na Urca. Na época, se deixava o pão e o leite na porta. Acumulou tudo. Eu saía devagarinho, pegava uma garrafa de leite, um pão, e entrava.
Consta que a paquera no início era com o Pelé...
Deus me livre. Não estou desfazendo, mas nunca fui esse tipo de mulher. Se fosse o Mané, seria o Mané e não o Pelé. Tenho respeito, mas para mim o rei é o Mané.
Como pintou o clima?
Negócio de Pelé?
Não, Mané. Pelo que você conta, o Pelé nem chegou perto...
Se alguém chegou, não fui eu. Tinha vinte e poucos anos, sempre tive corpo muito perfeito, mas para conquistar o Mané, o negócio era fazer uma boa comida. Gozado que ele era caçador mas gostava muito de peixe. Eu fazia uma peixada na panea de barro, com pirão, muito coentro, pimenta. Ele chegava em casa e só pelo cheiro já sabia que quem tinha feito era eu. Comia com muito gosto porque depois ele tinha outro peixe para comer. Prefiro falar assim com essa ironia que era dele.
Como vocês se conheceram?
Fui ver um treino da seleção em Friburgo antes da Copa. O Mané pediu para falar comigo, disse que tinha comprado um disco meu e estava espantado com a forma como eu cantava. Também falou que tinha ganhado um disco da cantora cubana Celiz Cruz e do músico J.J Johnson, que era o maior tombonista na época. Fiquei surpresa: “Cara, você conhece J. J. Johnson?”. Ficamos conversando e na hora de ir embora ele me deu um beijo. Eu correspondi, lógico. Receber um beijo e não retribuir seria falta de educação.
E no Chile?
Quem tomava conta dos jogadores era um cara muito bravo, o Paulo Amaral, mas ele gostava de mim e me levou para fazer uma visita à concentração. Foi um auê. Eu era uma menininha, custei muito a virar mulher. Na nossa conversa, eu falei para ele da minha preocupação porque estava faltando um monte de coisa lá no Brasil, arroz, feijão, soja, e sabe o que Mané disse? “Não se importa não, tenho um sítio e quando eu voltar vou abastecer vocês, desde que você faça uma feijoada para mim”. Essa foi nossa conversa, não dá para esquecer.
Em sua primeira aparição pública, no programa de calouros de Ary Barrosso, você disse que vinha do planeta fome, mas em 1962 a escassez que te preocupava era outra?
Estava falando do povo. Eu já tinha filé mignon na geladeira. Não precisava do Garrincha para nada. Na minha casa, só não tinha cerveja porque nunca gostei de bebida. Nem sabia que ele bebia, fui descobrindo aos poucos. Ele começou a chegar bêbado, dizia que tinha vindo de uma festa. Com o tempo, essa festa passou a ser todos os dias. Ele enterrava as garrafas de cachaça na beira da Lagoa, quando a gente morava lá. Saía para pescar e voltava embriagado. É triste demais para quem viu aquele garoto no auge virar aquele cara tão acabado.
E a separação?
Foi muito doída, tinha que fazer se não ele matava o meu filho. Pegava o menino pelos pés na beira da piscina e ficando gritando: “vou soltar”. Quando bebia ficava agressivo. É aquele negócio de o médico e o monstro. Depois, vinha cabisbaxo. Vivemos entre a dor e o desejo até o fim. Mané era um grande amante, um puta amante, só dizendo assim. Essa fama não é à toa. Era habilidoso até demais
Numa crônica, o Hermínio Bello de Carvalho tornou público o mito da virilidade ao revelar seu espanto diante da queda da toalha de Garrincha no vestiário do Botafogo...
Tudo que o povo queria era que o Mané deixasse cair a toalha. Todo mundo queria ver aquele índio criado a Toddy, livre, ao vento. O Mané tinha muito humor. Era uma pessoa linda de se lidar, que tem a cara do Brasil. Sumia para o mato, vivia sem camisa, com aquela sunga, as pernas tortas... Dizia: “Criola, tô indo”. Se enfiava no sítio do Chico Anysio e desaparecia. Trazia só passarinho. Era a paixão dele, conversar com os pássaros. Era gentil, sabia tirar a cadeira para uma mulher sentar, como já não se faz mais hoje. Se fizer, a mulher cai de bunda no chão. Nunca ouvi um palavrão da boca dele.
Em meio às dores, é preciso preservar a delicadeza.
Perdi três filhos, dois foram embora porque não tinham o que comer. Nem por isso, deixei de ser o que sou. Acordo todo dia com esperança de que vai ser melhor. Se está difícil, não briga. Brinca. Usei muita maquiagem, muito curativo para esconder as feridas. Tenho a minha medicina que é a música. Graças a Deus estou com um show maravilhoso, “Deixa a nega gingar”, vou para a Europa e muita gente por lá ainda pergunta por ele. As vezes, é preciso dar uma beliscada. Tudo que acontece hoje no futebol começou com ele. Gosto de passar naquele muro do Botafogo para ver a caricatura dele e apontar: olha lá o cara. Tenho camisas 7 que compro nas Copas do Mundo. É esquisito, você sofre dobrado, suspira fundo porque é muito frágil. Toda alegria do povo é sofrida, são momentos, um bom carnaval, um bom réveillon. Natal não sei se é muito bom, fica todo mundo contando dinheirinho para comprar presente. A gente não controla nada. Ninguém é de ninguém, fica tudo aí.
Para quem veio do planeta fome, a vida lhe ofereceu um rodízio completo de emoções.
As vezes foi pesado, mas teve de tudo. Só quem veio do planeta fome sabe dar valor a um banquete. Tento sair e levar muita gente mas tem quem adore o planeta fome, quem não faça nada para sair dele, é pao e circo mesmo. Não adianta ficar de vítima. A vida dá chance e você tem que aproveitar. Cantando o espírito fica livre, lindo e maravilhoso, mas evito algumas músicas do passado, como “Se acaso você chegasse”, a primeira que gravei, porque me lembram muito dele.
Você sobreviveu literalmente a um tiroteio por ficar ao lado dele, não?
Em 1970, lembro que ele foi me buscar num show e o nosso carro foi cercado por homens armados. Como o trânsito parou e as pessoas começaram a nos reconhecer, eles foram para a porta da nossa casa, no Jardim Botãnico. A gente já tinha subido para o quarto quando os vidros começaram a pipocar. Tinha um piano na sala que foi partido ao meio. O segurança perdeu parte do braço. Nunca soubemos o motivo, apenas que tínhamos que sair do Brasil. Vimos a final da Copa de 1970 num quarto em Roma, com o Mané chorando.
Ficou na sua conta o fim do primeiro casamento e da carreira que o proprio Garrincha não conseguiu conservar...
Peguei ele já em declínio. Eu estava lá em cima e ainda era acusada de me aproveitar. Tinha uma coisa meio absurda, um falso moralismo, porque ninguém falava que eu saía para cantar pelo Brasil em cima de caminhão para dar de comer às meninas deles, porque ele não tinha como pagar a pensão. Quem ganhava dinheiro era eu. Abri minha vida para ele, engravidei para lhe dar um filho. Moramos na Urca, Ilha do Governador, Lagoa, Jardim Botânico e ainda mandei fazer a casa de Jacarepagua para trazer as filhas dele, sete meninas. Queria dar o melhor para ele, tínhamos mordomo, governanta. O Mané se incomodava com a presença do mordomo sempre atrás dele e mandava que fizesse um prato para sentar na mesa e comer com todo mundo.
Você tinha a ilusão de que poderia transformá-lo num homem da sociedade?
Eu achava que um dia ele ia ser isso. Um vez, fiz um jantar incrível para que não se falasse apenas da bebedeira. Consegui botar um blazer no Mané, comprei naquela casa mais chique de Copacabana. Quando desceu a escada, era um lorde, estava lindo. Eu achava que ele iria virar um lorde. Para mim, sempre foi. Depois, teve o bar naquela casa que comprei da família do Nelson Rodrigues em Vila Isabel. Minha intenção era o Mané receber times que viessem jogar no Rio, mas foi pior porque havia muita garrafa nas prateleiras. Quando procurava por ele, estava dormindo atrás dos sacos de feijão, completamente embriagado. Perdi o bar, tinha que perder.
Você também tentou completar a escolaridade dele?
Depois que parou de jogar, contratei um professor particular, o Sebastião Filgueiras, de uma família de advogados fortíssimos. Foi uma decepção logo na pimeira aula. O Mané não deu uma palavra e ainda ficou bravo comigo, que eu o estava chamando de analfabeto. Foi uma lição. Garrincha dificilmente lia um jornal, o negócio dele era caçar, era natureza. Também caçava muito rabo de saia. Sabia caçar muito bem, era macho, tinha essa necessidade. Eu sabia, mas a casa dele estava lá. Ele voltava.
Garrincha fazia planos, tinha ambições?
Não. Mané era hoje. Gostava muito de olhar o céu, as estrelas e se espantava: “Meu Deus, como essa gente é boba, não sabe que vai viver por um tempo tão curto, para que ficar preso a tanta coisa, não vai levar nada..” Tinha uma filosofia de vida que também é a minha.
Espiritualmente, ainda tem alguma conexão com ele?
Tenho não. É muito dificil. Rezo muito, converso com ele, peço ajuda, mas não tenho esse poder. Nós nos separamos.
Você consegue rever o Garrincha no futebol de hoje?
Vejo o Neymar querendo fazer um pouco do Mané. Espero que um dia ele faça, rezo muito por ele, pode ficar tranquilo, como rezei muito para o Romário, para o Ronaldo. Tem que tomar conta do menino. Neymar usa a camisa 11 que o Garrincha usou em 58, tomara que chegue lá. É um menino leve, sem problemas, feliz. Torço para que não se machuque. Também gosto muito do Ronaldo e espero que agora como dirigente ele possa fazer da Copa uma homenagem ao Garrincha. Os jogadores de hoje não sabem quem ele foi. Nem citam. Quero fazer um museu para o Messi e o Cristiano Ronaldo conhecerem o Mané.
Pela sua capacidade de driblar a vida com arte, você é uma herdeira legitima de Garrincha.
A gente improvisa muito, Na vida e na musica também. Estrou sempre dando meu olé para cá e para lá. Mas com toda a brincadeira, levo a vida a sério, é linda demais, exige cuidado. Sou agradecida a tudo, até às criticas. Sem elas talvez não soubesse valorizar o que ganhei e o significado da palavra amor.
Entre o apogeu e a derrocada, qual a imagem que fica do Garrincha?
Do futebol feliz, daquele homem alegre, que entrava em campo e acabava com qualquer tristeza e monotonia. Esquece o outro lado, já tem muita gente por aí fazendo besteira. Se soubesse por que ele foi esquecido já tinha corrido atrás como fiz para evitar que tirassem o nome dele do estádio de Brasília. E ganhei. Fui lá na Câmara e falei: “o que sobrou para ele foi isso”.
O Brasil não gosta de olhar para suas mazelas?
É como dizia o Cazuza: “Brasil, mostra a sua cara, quero ver quem paga para a gente ficar assim...” O espelho às vezes mostra coisas feias. Eu amo o espelho, mas tem gente que não gosta. Sou um ser humano, tive momentos de desespero mas você não pode sair gritando por aí. A dor é minha e me doeu. Melhor celebrar do que sofrer. Vamos celebrar o Mané Garrincha.
Já se passaram 40 anos da Copa de 1962, quando o Garricnha conquistou a madrinha da seleção como seu maior troféu...
Parece que foi tudo agora, ainda sinto o cheiro, o calor dele. Mané era muito limpo, cheiroso e asseado. Foi uma coisa de pele, de encostar, arrepiar. Alquimia total. Muito amor. Depois da Copa, ficamos fechados vários dias na minha casa na Urca. Na época, se deixava o pão e o leite na porta. Acumulou tudo. Eu saía devagarinho, pegava uma garrafa de leite, um pão, e entrava.
Consta que a paquera no início era com o Pelé...
Deus me livre. Não estou desfazendo, mas nunca fui esse tipo de mulher. Se fosse o Mané, seria o Mané e não o Pelé. Tenho respeito, mas para mim o rei é o Mané.
Como pintou o clima?
Negócio de Pelé?
Não, Mané. Pelo que você conta, o Pelé nem chegou perto...
Se alguém chegou, não fui eu. Tinha vinte e poucos anos, sempre tive corpo muito perfeito, mas para conquistar o Mané, o negócio era fazer uma boa comida. Gozado que ele era caçador mas gostava muito de peixe. Eu fazia uma peixada na panea de barro, com pirão, muito coentro, pimenta. Ele chegava em casa e só pelo cheiro já sabia que quem tinha feito era eu. Comia com muito gosto porque depois ele tinha outro peixe para comer. Prefiro falar assim com essa ironia que era dele.
Como vocês se conheceram?
Fui ver um treino da seleção em Friburgo antes da Copa. O Mané pediu para falar comigo, disse que tinha comprado um disco meu e estava espantado com a forma como eu cantava. Também falou que tinha ganhado um disco da cantora cubana Celiz Cruz e do músico J.J Johnson, que era o maior tombonista na época. Fiquei surpresa: “Cara, você conhece J. J. Johnson?”. Ficamos conversando e na hora de ir embora ele me deu um beijo. Eu correspondi, lógico. Receber um beijo e não retribuir seria falta de educação.
E no Chile?
Quem tomava conta dos jogadores era um cara muito bravo, o Paulo Amaral, mas ele gostava de mim e me levou para fazer uma visita à concentração. Foi um auê. Eu era uma menininha, custei muito a virar mulher. Na nossa conversa, eu falei para ele da minha preocupação porque estava faltando um monte de coisa lá no Brasil, arroz, feijão, soja, e sabe o que Mané disse? “Não se importa não, tenho um sítio e quando eu voltar vou abastecer vocês, desde que você faça uma feijoada para mim”. Essa foi nossa conversa, não dá para esquecer.
Em sua primeira aparição pública, no programa de calouros de Ary Barrosso, você disse que vinha do planeta fome, mas em 1962 a escassez que te preocupava era outra?
Estava falando do povo. Eu já tinha filé mignon na geladeira. Não precisava do Garrincha para nada. Na minha casa, só não tinha cerveja porque nunca gostei de bebida. Nem sabia que ele bebia, fui descobrindo aos poucos. Ele começou a chegar bêbado, dizia que tinha vindo de uma festa. Com o tempo, essa festa passou a ser todos os dias. Ele enterrava as garrafas de cachaça na beira da Lagoa, quando a gente morava lá. Saía para pescar e voltava embriagado. É triste demais para quem viu aquele garoto no auge virar aquele cara tão acabado.
E a separação?
Foi muito doída, tinha que fazer se não ele matava o meu filho. Pegava o menino pelos pés na beira da piscina e ficando gritando: “vou soltar”. Quando bebia ficava agressivo. É aquele negócio de o médico e o monstro. Depois, vinha cabisbaxo. Vivemos entre a dor e o desejo até o fim. Mané era um grande amante, um puta amante, só dizendo assim. Essa fama não é à toa. Era habilidoso até demais
Numa crônica, o Hermínio Bello de Carvalho tornou público o mito da virilidade ao revelar seu espanto diante da queda da toalha de Garrincha no vestiário do Botafogo...
Tudo que o povo queria era que o Mané deixasse cair a toalha. Todo mundo queria ver aquele índio criado a Toddy, livre, ao vento. O Mané tinha muito humor. Era uma pessoa linda de se lidar, que tem a cara do Brasil. Sumia para o mato, vivia sem camisa, com aquela sunga, as pernas tortas... Dizia: “Criola, tô indo”. Se enfiava no sítio do Chico Anysio e desaparecia. Trazia só passarinho. Era a paixão dele, conversar com os pássaros. Era gentil, sabia tirar a cadeira para uma mulher sentar, como já não se faz mais hoje. Se fizer, a mulher cai de bunda no chão. Nunca ouvi um palavrão da boca dele.
Em meio às dores, é preciso preservar a delicadeza.
Perdi três filhos, dois foram embora porque não tinham o que comer. Nem por isso, deixei de ser o que sou. Acordo todo dia com esperança de que vai ser melhor. Se está difícil, não briga. Brinca. Usei muita maquiagem, muito curativo para esconder as feridas. Tenho a minha medicina que é a música. Graças a Deus estou com um show maravilhoso, “Deixa a nega gingar”, vou para a Europa e muita gente por lá ainda pergunta por ele. As vezes, é preciso dar uma beliscada. Tudo que acontece hoje no futebol começou com ele. Gosto de passar naquele muro do Botafogo para ver a caricatura dele e apontar: olha lá o cara. Tenho camisas 7 que compro nas Copas do Mundo. É esquisito, você sofre dobrado, suspira fundo porque é muito frágil. Toda alegria do povo é sofrida, são momentos, um bom carnaval, um bom réveillon. Natal não sei se é muito bom, fica todo mundo contando dinheirinho para comprar presente. A gente não controla nada. Ninguém é de ninguém, fica tudo aí.
Para quem veio do planeta fome, a vida lhe ofereceu um rodízio completo de emoções.
As vezes foi pesado, mas teve de tudo. Só quem veio do planeta fome sabe dar valor a um banquete. Tento sair e levar muita gente mas tem quem adore o planeta fome, quem não faça nada para sair dele, é pao e circo mesmo. Não adianta ficar de vítima. A vida dá chance e você tem que aproveitar. Cantando o espírito fica livre, lindo e maravilhoso, mas evito algumas músicas do passado, como “Se acaso você chegasse”, a primeira que gravei, porque me lembram muito dele.
Você sobreviveu literalmente a um tiroteio por ficar ao lado dele, não?
Em 1970, lembro que ele foi me buscar num show e o nosso carro foi cercado por homens armados. Como o trânsito parou e as pessoas começaram a nos reconhecer, eles foram para a porta da nossa casa, no Jardim Botãnico. A gente já tinha subido para o quarto quando os vidros começaram a pipocar. Tinha um piano na sala que foi partido ao meio. O segurança perdeu parte do braço. Nunca soubemos o motivo, apenas que tínhamos que sair do Brasil. Vimos a final da Copa de 1970 num quarto em Roma, com o Mané chorando.
Ficou na sua conta o fim do primeiro casamento e da carreira que o proprio Garrincha não conseguiu conservar...
Peguei ele já em declínio. Eu estava lá em cima e ainda era acusada de me aproveitar. Tinha uma coisa meio absurda, um falso moralismo, porque ninguém falava que eu saía para cantar pelo Brasil em cima de caminhão para dar de comer às meninas deles, porque ele não tinha como pagar a pensão. Quem ganhava dinheiro era eu. Abri minha vida para ele, engravidei para lhe dar um filho. Moramos na Urca, Ilha do Governador, Lagoa, Jardim Botânico e ainda mandei fazer a casa de Jacarepagua para trazer as filhas dele, sete meninas. Queria dar o melhor para ele, tínhamos mordomo, governanta. O Mané se incomodava com a presença do mordomo sempre atrás dele e mandava que fizesse um prato para sentar na mesa e comer com todo mundo.
Você tinha a ilusão de que poderia transformá-lo num homem da sociedade?
Eu achava que um dia ele ia ser isso. Um vez, fiz um jantar incrível para que não se falasse apenas da bebedeira. Consegui botar um blazer no Mané, comprei naquela casa mais chique de Copacabana. Quando desceu a escada, era um lorde, estava lindo. Eu achava que ele iria virar um lorde. Para mim, sempre foi. Depois, teve o bar naquela casa que comprei da família do Nelson Rodrigues em Vila Isabel. Minha intenção era o Mané receber times que viessem jogar no Rio, mas foi pior porque havia muita garrafa nas prateleiras. Quando procurava por ele, estava dormindo atrás dos sacos de feijão, completamente embriagado. Perdi o bar, tinha que perder.
Você também tentou completar a escolaridade dele?
Depois que parou de jogar, contratei um professor particular, o Sebastião Filgueiras, de uma família de advogados fortíssimos. Foi uma decepção logo na pimeira aula. O Mané não deu uma palavra e ainda ficou bravo comigo, que eu o estava chamando de analfabeto. Foi uma lição. Garrincha dificilmente lia um jornal, o negócio dele era caçar, era natureza. Também caçava muito rabo de saia. Sabia caçar muito bem, era macho, tinha essa necessidade. Eu sabia, mas a casa dele estava lá. Ele voltava.
Garrincha fazia planos, tinha ambições?
Não. Mané era hoje. Gostava muito de olhar o céu, as estrelas e se espantava: “Meu Deus, como essa gente é boba, não sabe que vai viver por um tempo tão curto, para que ficar preso a tanta coisa, não vai levar nada..” Tinha uma filosofia de vida que também é a minha.
Espiritualmente, ainda tem alguma conexão com ele?
Tenho não. É muito dificil. Rezo muito, converso com ele, peço ajuda, mas não tenho esse poder. Nós nos separamos.
Você consegue rever o Garrincha no futebol de hoje?
Vejo o Neymar querendo fazer um pouco do Mané. Espero que um dia ele faça, rezo muito por ele, pode ficar tranquilo, como rezei muito para o Romário, para o Ronaldo. Tem que tomar conta do menino. Neymar usa a camisa 11 que o Garrincha usou em 58, tomara que chegue lá. É um menino leve, sem problemas, feliz. Torço para que não se machuque. Também gosto muito do Ronaldo e espero que agora como dirigente ele possa fazer da Copa uma homenagem ao Garrincha. Os jogadores de hoje não sabem quem ele foi. Nem citam. Quero fazer um museu para o Messi e o Cristiano Ronaldo conhecerem o Mané.
Pela sua capacidade de driblar a vida com arte, você é uma herdeira legitima de Garrincha.
A gente improvisa muito, Na vida e na musica também. Estrou sempre dando meu olé para cá e para lá. Mas com toda a brincadeira, levo a vida a sério, é linda demais, exige cuidado. Sou agradecida a tudo, até às criticas. Sem elas talvez não soubesse valorizar o que ganhei e o significado da palavra amor.
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