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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Com Uma Dor



Eu lembro: os encontros, os risos, as certezas. Lembro a promessa. As vontades de amanhã. Lembro o conforto de saber: eu, você. Eu lembro em sépia, em fragmentos, recortes de tempo, pedaços de história. Memórias manchadas de saudade. Lembro em dor. Em vazio. Em engasgo. Lembro em vitrine borrada de chuva. Lembro em quereres. Em vida que segue.


Eu sei ser sem você. Mas não queria. Disse Leminski: um homem com uma dor é muito mais elegante. Sinto-me em traje de gala. (luciana Nepomuceno)

TIN... TIN...

sentindo falta do Norte de lá...


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá
(Tom Jobim / Chico Buarque)


Mas, enquanto não chega o dia, o Norte, que de dentro de mim não sai, guarda meus passos... 




Nada além - Custódio Mesquita & Mário Lago






Acalanto (Chico Buarque e Edu Lobo) - canta: Ivan Lins



É tão cedo, meu irmão
Abre os olhos, dorme não
Espalha os meus soldados
Estraga os meus brinquedos
Pode me odiar
Nunca mais olhar pra mim
Mas não faz
Não faz mais
Assim

Tão cedo, meu irmão
Põe a mão na minha mão
Pode fechar meus olhos
Alisa os meus cabelos
E a quem perguntar
Deus, que foi que aconteceu
Vou jurar que o teu sangue
É meu
Eu vou rasgar
Meu coração
Pra costurar o teu
Vou te soprar
Esta canção:
O meu irmão
Morreu


O VÍCIO DO AMOR

Capa romance O vício do amor
de Mario Sabino
O avesso do amor não é o ódio, é a indiferença, destaca o colunista da Folha João Pereira Coutinho na orelha deste romance de Mario Sabino. É da incapacidade de amar que trata o livro, com o qual o autor dos contos de “O Antinarciso” (2005) e “A Boca da Verdade” (2009) volta ao gênero que primeiro experimentou na literatura -a estreia foi em 2004, com o elogiado “O Dia em que Matei Meu Pai”.

Livros

Mario Sabino lança segundo romance, O Vício do Amor

Em 'O Vício do Amor', o segundo romance de Mario Sabino, um narrador atormentado e tormentoso inventa para revelar. É a cura pela escrita

Eurípedes Alcântara
Lailson Santos
Tudo, menos a indiferença - Sabino: o narrador se esquiva por meio de pseudônimos, mas não se poupa da franqueza

Tudo, menos a indiferença

Sabino: o narrador se esquiva por meio de pseudônimos, mas não se poupa da franqueza.
É com virulência e escárnio que, nos capítulos iniciais de O Vício do Amor (Record; 269 páginas; 37,90 reais), seu narrador conta as traições de que foi vítima por parte de duas de suas mulheres. Parece doer-lhe, especialmente, que as infidelidades se tenham dado com amantes judeus — embora ele mesmo pertença “a uma das doze tribos”, mas pela linhagem paterna. Enquanto acompanha o detalhamento do caráter infame daqueles dois sujeitos — um deles, lobista de empreiteiras; o outro, aliado de um saudita em um esquema para faturar em cima das tropas americanas no Iraque —, avoluma-se no leitor a surpresa diante da cegueira com que essas duas mulheres insistiram em procurar o amor em homens tão imerecedores. Parte da culpa cabe a si próprio, diz o narrador. É que ele mesmo nunca foi capaz de amá-las nem soube se fazer amado. Nem por elas, nem por ninguém. A certa altura ele dirá que do amor, esse vício, conhece apenas a abstinência.
Chamando-se ora Marco Levi, ora Ranuccio Tomassini, e por fim Mario Sabino, também esse um pseudônimo, como assegura o autor, o narrador destampa o que lhe vai na alma por meio de invenções sucessivas. A maestria narrativa está em fugir ao mesmo tempo do paralelismo e da perpendicularidade, sobrepondo camadas sob a alegação de, assim, conseguir acrescentar mais linhas ao texto que lhe foi encomendado por uma revista literária ao preço de 300 dólares, dinheiro que pode se dar ao luxo de desprezar. De jornalista pobretão, passou a milionário desocupado em virtude de uma herança. A cada camada, Levi/Tomassini/Sabino, por mais oblíquo que se acredite, exibe mais e mais verdades. Ao final, o que se terá é um doloroso, mas espetacular, panorama de como o narrador se sedimentou na forma acabada de homem com que ele caminha pela história.
Segundo romance do paulistano Mario Sabino, redator-chefe de VEJA e autor de O Dia em que Matei Meu Pai e das coletâneas de contos O Antinarciso e A Boca da Verdade, O Vício do Amor tem, como esses trabalhos anteriores, uma relação estreita — genealógica, na verdade — com a psicanálise. Não é acaso, por exemplo, que seu narrador tenha se mudado para Roma depois de receber sua fortuna. Não apenas é a cidade do pai que o abandonou pequeno, ou que guarda vestígios determinantes da conflagrada relação entre a cristandade e o judaísmo, como o Arco de Tito. Sua Roma é a colisão gloriosa entre destruição e construção, entre ruína e memória — a psicanálise feita monumento e moradia. Até as convicções da namorada romana Renata, uma judia pró-Palestina, correspondem a esse cisma interior que é a dificuldade em distinguir, nas figuras do passado, vítimas de agressores. Vivendo na casa deixada pelo pai desconhecido mas onipresente, compartilhando reminiscências da mãe ressentida e do perverso Saulo, expondo a intimidade dividida com mulheres como Isabel e Lorenza ou simplesmente correndo de manhã em Villa Borghese — e transferindo tudo para o papel —, o narrador pouco a pouco se desvencilhará do desejo narcísico (termo que lhe é tão caro) de construir-se como personagem. Deixará emergir o homem. Não mais o ser necessitado da virulência para livrar-se de seus tormentos, mas aquele reconciliado com eles. É a cura pela escrita ou, quem sabe, pela fala. Cura que, é claro, só poderia ser relativa, já que não há como cancelar um passado de embate com a própria ideia do amor. Para Levi/Tomassini/Sabino, a única coisa verdadeiramente imperdoável é a indiferença. Disso, o narrador de O Vício do Amor não padece. Mas talvez algum indiferente incurável atire a primeira pedra.


Prefácio de O vício do amor


ONDE ESTÁ A MINHA CARA METADE? Boa pergunta. Velha pergunta. Desde Platão que os homens a fazem. Tempos houve em que éramos perfeitos e perfeitamente esféricos. Mas a ira dos deuses perante tamanha soberba terminou com a festa. Fomos brutalmente divididos em dois.
O amor, ou a busca de amor, não é mais do que a tentativa de encontrar em vida o que nos foi roubado no princípio dos princípios.
Eis a história mitológica que contramos no Banquete pela boca de Aristófanes e que praticamente determinou a discussão amorosa nos séculos seguintes. Amar é procurar. Amar é encontrar. E, quando finalmente encontramos a metade que nos falta, seremos unos e felizes para sempre.
Não vale a pena dissertar sobre as mil obras, e os mil equívocos, que se fizeram à sombra desse ideal. Prefiro formular a questão inversa sobre ele: e se esse ideal não passa de uma construção falaciosa dos homens para embelezarem a sua própria natureza bestial? A vida como quimera incessante de um coração apaixonado: haverá forma mais narcísica de mostrarmos ao mundo que temos um?
Os personagens de O Vício do Amor acreditam que sim: vaidade, tudo é vaidade. Por isso eles se situam no extremo oposto das versões idealizadas do amor romântico. E esse extremo não é marcado pelo ódio. O ódio é sempre uma forma distorcida de amor.
O avesso do amor é a indiferença. E não existe nada de mais anti-civilizacional do que a ideia bem perversa de que “a indiferença pelo outro é nosso estado natural por excelência”.
Os personagens de Mario Sabino habitam esse estado natural, feito de tédio e suave inumanidade. Na definição de Fernando Pessoa, não são poetas porque não são fingidores. São vingativos, narcísicos, escrotos. Sem desculpa, sem desculpas.
E se a história romântica da Humanidade é essa busca incessante (e apaixonante) da metade que nos falta, o livro de Sabino ocupa-se do lado lunar da nossa condição: o lado dos que não procuram nada, dos que não amam ninguém. Porque não precisam de. Porque não são capazes de.
O Vício do Amor é um livro sobre ruínas, escrito entre ruínas. As ruínas físicas estão em Roma, a cidade onde o narrador revisita o seu passado sentimental com o método paciente de um arqueólogo profissional: camada a camada, despojo a despojo, labirinto por labirinto.
Mas as ruínas principais não são tangíveis; são feitas de memórias e povoadas por mulheres que partilham entre si o mesmo código de ausência, fraqueza e traição. E, claro, uma incapacidade estrutural para amar.
A mãe. Isabel. Lorenza. Três mulheres. E, das três, poderia ser dito o que o narrador afirma sobre a última delas: são ocas por obra do amor dos mal-amados. São ocas como putas depois do programa. Na verdade, nem são mulheres. São estátuas. E não é por acaso que Isabel termina os seus dias literalmente como uma.
E nesse rastro de desolação, o que resta, afinal?
Curiosamente, restam as palavras. Ou, sem pompa nem maiúscula, resta a literatura. Mas não a literatura como forma de transformar o mundo e redimir os homens da sua irredimível condição. Depois do fracasso das grandes narrativas histórias, a ingenuidade ideológica, como diria Talleyrand, não seria apenas um crime; seria um erro.
O fim último das palavras é serem exatas sobre nós e sobre os outros. Sem máscaras ou eufemismos.
Repetidamente, obsessivamente, o narrador retorna ao mesmo tema: a imperiosa necessidade de ser exato no que diz e na forma como diz. Ou, como o próprio afirma, “me recuso a trancafiar as palavras num lager e esperar que morram à míngua”.
A verdade do que dizemos, por mais intolerável que seja; a verdade com que o fazemos, por mais dolorosa que se apresente – eis a única forma de nos confrontarmos com a “infelicidade do mundo” e, apesar de tudo, aceitarmos o nosso lugar nele sem a “miséria neurótica” que nos persegue.
Uma forma de reconciliação? Talvez. A reconciliação imperfeita que o narrador recebe no final, ao ler as palavras exatas, brutais e desapaixonadas de Renata, a última e a mais importante das mulheres deste livro. Não apenas por ser a única que, desde o início, sempre recusou a versão do amor como manifestação narcísica das nossas humanas vaidades.
Mas porque, através dela, encontramos a única declaração de amor que interessa: a declaração dos que prometem nada prometer; e que, apesar disso, ou talvez por causa disso, são os únicos que cumprem realmente.



João Pereira Coutinho
Lisboa, Julho de 2011
Visite o site do autor: www.mariosabino.com.br

Novo fado da severa - Dulce Pontes

 Dulce Pontes cantando o Novo fado da Severa (letra aqui - Dulce não canta a segunda estrofe)

O Fado da Severa original é de 1848, de autoria de Sousa do Casacão, e refere-se à própria Maria Severa, que falecera um ano antes (veja a letra aqui). Este é de Júlio Dantas e Frederico de Freitas e já se refere ao lugar, ao Largo da Severa, na Rua do Capelão, na Mouraria (outra vez a passagem de pessoa a território). Júlio foi o autor, em 1901, do romance A Severa, que em 1931 tornou-se o primeiro filme falado de Portugal, com esta canção na trilha sonora. Outra dificuldade da conciliação surge nos versos finais, que expressam um desejo supremo: Viver abraçada ao fado, morrer abraçada a ti. Ou o fado, ou o homem amado, nunca na vida os dois juntos, sempre uma falta, uma ausência.

Minha música - Chico Buarque acompanhado ao piano por Arrigo Barnabé!


A junção do Chico com o Arrigo na mesma faixa tem mais de simbólico até do que de musical propriamente. Chico canta sem praticamente nenhuma entonação extra, completamente econômico (maldosos diriam inexpressivo, o que é redondamente errado). Ao contrário do Arrigo ao piano, que pode ser tudo, menos econômico. A canção ganha pelo tremendo contraste, que também é entre a melodia muito tonal (pressente-se a harmonia nela) e o piano – que apesar de parecer, não é atonal, como o Careqa diz bem. Na primeira parte especialmente, a mão esquerda faz os acordes quase normais, enquanto a direita pira.
Contraste que é também dos dois músicos, que surgem como representantes da tradição e da quebra desta tradição. Minha música foi composta em 2003 para a Ópera de Arrigo O homem dos crocodilos. Mas agora, os versos Mataste minha música / Quebraste todos os meus discos / Fugiste com todas as canções ganha novas possibilidades de significado cantados pela pessoa que, de forma quase incidental, trouxe à baila o furioso debate sobre o fim da canção, ou seja, a exaustão do formato canção para a criação musical. A canção ganha ares proféticos ao lado da leitura romântica óbvia, ainda mais acompanhada de forma totalmente fragmentada por um músico que investiu e investe fortemente justo nas possibilidades advindas da desagregação deste formato. Como uma canção de Fim dos Tempos, em que gênesis e nêmesis se encontram. E, para que não se pense que não foi algo intencional, cabe destacar o diálogo entre Careqa e Chico, no final do vídeo, em que eles comentam o assunto.
A participação de Chico nos leva à gravação por Careqa das canções de Brecht: Chico também reletrou canções da dupla, ao adaptar a Ópera dos Três Vinténs, da dupla Brecht/ Weil, na sua Ópera do Malandro – sendo que a primeira já era uma parória da Ópera dos Mendigos, de John Gay. Um certo uso da ironia liga os três. A própria frase recitada ao encerramento da canção título por Careqa é tirada da boca do personagem Macheath (Mac Navalha, correspondente ao Max da Ópera do Malandro), e mesmo o título do álbum tem relação com a peça de Brecht A alma boa de Set-Suan.
Mas é possível ir um pouco mais fundo (ainda que a partir da Wikipedia):
Um dos pressupostos do teatro épico é o efeito de distanciamento ou de estranhamento por parte do espectador. O ator não busca identificação plena com a personagem. O cenário expõe toda sua estrutura técnica, deixando claro que aquilo é teatro, e não a realidade. O enredo se desenvolve sem um encadeamento linear cronológico entre as cenas, de modo a poder misturar presente e passado, procurando evitar o envolvimento do ator e do espectador na trama, sempre com o intuito de provocar a reflexão e de despertar uma visão crítica do que se passa, sem levar ao desfecho dramático e natural. ‘Estranhar tudo que é visto como natural’, segundo Brecht
A escola épica de teatro, em contraposição à escola dramática, foi uma criação de Brecht. Em vez de “mergulhar” dentro da história, o espectador tem a chance de enxergar “de fora”, sem perder sua capacidade crítica. A forma de interpretação do ator leva esta idéia adiante, como se lembrasse continuamente que ele não é o personagem, e que pode ter opiniões muito diferentes das dele (veja mais informações aqui). Esta visão do teatro tem a ver, de alguma forma, com a postura de Careqa em muitas de suas canções. É quase impossível dizer se são a sério versos como: vou cortar minha orelha, vou abrir o escapamento, que é pra ver soprar o vento e me levar pro altar, ou vou fazer uma chacrinha, vou comprar um automóvel, vou fazer um teatrinho que é pra ver se te comove. São, e não são. São a representação de uma representação. Do mesmo modo, em vários momentos Careqa canta como uma persona, como a interpretação brechtiana derivada da escola do teatro épico, ou mesmo abandona o canto e declara a um hipotético repórter (provavelmente da Caras): este ano eu pretendo ter uma chácara, um apartamento no Rio e outro em São Paulo, crítica implícita mas escancarada de uma visão de arte que exclui a própria arte.
Comecei o artigo com a frase Carlos Careqa é um compositor profundamente simples. Poderia ter dito que é um compositor simplesmente profundo, mas a primeira frase é mais apropriada porque a simplicidade é o resultado final de seu trabalho, e as muitas camadas de leitura ficam no percurso de escuta e não pesam no ouvido. O sumário deste estilo pode estar em Simplesmente, cujos versos mudam aos poucos de significado pela alteração do prefixo e sua associação com a palavra seguinte, perfeitamente realçados pelo desenho melódico:
Seja simples, simplesmente mente aberta
Abertamente mente doce, docemente mente certa
Certamente mente rara, raramente mente doida
Doidamente mente clara
 http://tuliovillaca.wordpress.com/

O Medo é Branco

 

"Para a tarefa do artista,
a cegueira não é
totalmente negativa,
já que pode ser um instrumento."
Borges


E daqui, eu só posso alegrar-me não pretender nenhuma literatura além do blog nosso de cada dia. Porque ficar cega é o meu medo mais presente. Medo de todos os dias, aquele que põe gelo na veia. Porque o medo é frio. O medo pede agasalhos, lareiras, amigos. Pede café, vinho, chocolate e pede companhia. O medo é frio e sem arauto, levanta-se, repentino e precisa de espaço para as suas nevascas.

Há os medos que são brisa, frescos, quase esquecendo de ser: medo de chegar atrasada, de esquecer algo importante, medo de insetos, de desenvolver alergia a camarão, de coisinhas miúdas que não me pediriam galhardia e sim empenho.

Há os medos mais refrigerados, talvez com climatização externa: medo de ruas escuras, de fazer dívidas, de perder-me na estrada, de túneis e garagens subterrâneas. Esses medos, cultivados na história, alimentados por dizeres, eu os reinvento em calor de dentro pra fora, um grande sorriso é bafo nas mãos.

E chegam os medos frios, que dão dormência e preguiça no corpo, comprometendo o riso e o andar: de perder pessoas queridas, de uma cultua adolescente absoluta, da relativização acirrada pelo narcisismo das pequenas diferenças. Medos do que não posso evitar, do que escapa ao controle, do que me dá a exata medida da minha irrelevância.

A seguir, o medo de garras geladas: de dormir sempre sozinha, de perder a memória, de desinteressar-me do mundo a ponto de não querer mais reinventá-lo, de uma tristeza que me acampasse no peito e de lá já não saísse. É frio, branco, deserto de gelo esse medo já não de todos os dias mas de dias todos.

E há o medo de completo frio e desamparo, o medo que me paralisa, que me define por contradição: ficar cega. Quando não enxergo, perco meus outros sentidos. Se não vejo, não escuto. Não sinto sabores, cores e ruídos.


Eu já fui míope. Creio que, na alma, serei sempre. Ser míope é um jeito de se estar no mundo. Chega-se mais perto, bem perto. Ser míope deu-me cheiros, por precisar do juntos para saber-me. Ser míope deu-me esperas e nuvens. Vida de tempo nublado, mesmo na transparente alegria e iluminados caminhos. Ser míope constrói isolamentos. Muros de não ver. De não ver-se. Ser míope é um franzir a testa que alimenta as idades antigas nas jovens testas. O míope não se sabe com precisão - como de resto, todo o resto - e reconhece isso. O míope tem saudades do que não viu. O míope saberá ver-se por dentro, quando há tão pouco perto pra ele ver(se).

Mas um dia, ah, um dia quando eu de-crescer, hei de ter uma biblioteca que se leia sem olhos, dedos, sentidos. Quando eu for do meu exato tamanho, viverei nessa biblioteca.Quando eu for exatamente eu, hei de ter uma biblioteca, hei de ser minha biblioteca. Sem olhos. E já não terei medo e já não haverá gelo em meus olhos de míope. Só letras e danças livres. E, talvez, lá haja um Minotauro jogando xadrez com Borges.

Tales of Mere Existence: receba sua dose cavalar de ironia com essa série de animações

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Ja se sentiu meio sem propósito? Bem vindo ao clube!

Tales of Mere Existence (“contos da mera existência”) é uma série animada criada por Lev Yilmaz e que já acumulou mais de 30 milhões de exibições no youtube. A série surgiu em 2002 apresentada em festivais de cinema independente e hoje já conta com DVDs vendidos no site do autor, um livro publicado e o já citado canal de youtube.



Os vídeos são bastante peculiares, mostrando uma série de desenhos parados que são desenhados no decorrer das cenas pelo autor. Tratando situações extremamente banais com humor ácido e muita ironia, Tales Of Mere Existence deve agradar qualquer cínico bem humorado. Afinal, quem nunca enrolou o dia inteiro remoendo as próprias tarefas que procrastinava? Ou teve um abriga esdrúxula por um motivo insignificante com o(a) namorado(a)?



Para quem tiver curtido os vídeos deste post, aqui fica o canal de youtube do autor, com mais um monte deles. Para os mais apaixonados ainda, aqui vai o site oficial, onde poderão comprar o ótimo livro em quadrinhos e os DVDs da série.

para os fãs de quadrinhos

Hellblazer Origens – Veja as geniais primeiras histórias do mago John Constantine

Hellblazer Origens Volume 1
Dave McKean destruindo nas capas, como de costume.


Um sobretudo meio velho, camisa e um inseparável cigarro Silk Cut na ponta dos dedos. Difícil um fã de quadrinhos que não reconheça o mago britânico John Constantine por essa breve descrição. Nascido da imaginação de Alan Moore, como um coadjuvante das histórias do Monstro do Pântano, em 1987, o personagem se tornou um dos maiores ícones dos quadrinhos adultos.
Mas não foi Moore que consolidou o conterrâneo dos Beatles como personagem independente. O trabalho coube, em 1988, ao roteirista Jamie Delano e ao desenhista John Ridgway, os primeiros a assumir Hellblazer, o título solo de Constantine.
São estas primeiras histórias que estão reunidas em John Constantine, Hellblazer – Origens, série que está chegando às bancas nacionais pelas mãos da Panini e pretende publicar toda a fase de Delano à frente do título. Até agora, saiu o Volume 1: Pecados Originais, que reúne as edições 1 a 6 da série em 180 páginas de histórias do mago, além das capas dos originais feitas por Dave McKean.
O preço, de R$ 19,00, é meio salgado, mas como tem sido praxe dizer para os lançamentos da Panini, vale pela qualidade – e, neste caso, também pela quantidade. Foi feita a opção de utilizar papel jornal, igual ao das edições originais e que deve ter barateado um pouco. Se quiserem lançar tudo nesse modelo, aliás, eu topo.

Hellblazer Origens - Papa Midnite
Constantine sofre com Papa Midnite em sua primeira história solo

Os desenhos de John Ridgway são excelentes. Dão a expressividade necessária aos rostos para transmitir o clima de uma história de horror e não perdem a chance de estourar imagens chocantes, como o viciado Gary Lester coberto em moscas da cabeça aos pés. A composição das páginas é criativa sem ser exagerada, acompanhando bem o clima da narrativa. O artista usa bastante alterações no rebordo dos quadrinhos para enfatizar os efeitos e criar suspense.
O texto de Delano, que os seguidores mais fiéis dessa Horda já conhecem de outros carnavais, mantém o altíssimo nível de sempre. As histórias são geniais e misturam aos banais demônios, satanistas, maldições, magos e etc alguns temas mais assustadores: guerra do Vietnã, Margaret Thatcher, neoliberalismo, neo-nazistas estúpidos e fundamentalistas religiosos. Constantine escancara nesse começo de jornada suas origens na classe operária, preocupações sociais e sua ojeriza por moralismos de todo tipo.
É interessante ver a personalidade do mago tomando corpo conforme avançam as histórias. O primeiro arco, “Fome”, em que Memoth, o demônio da dita cuja, assola Nova Iorque, traz um mago um pouco mais preocupado, triste, assombrado pelos fantasmas de amigos perdidos em tragédias passadas e presentes. Esconde uma clara insegurança sobre as opções que toma com o cinismo que nos acostumamos a ver. Aqui, aparece Papa Midnite, feiticeiro vudu conhecido de quem assistiu à tosquinha versão cinematográfica.

Hellblazer Origens - Margaret Thatcher
Participação especial de Margaret Thatcher, mais assustadora que qualquer demônio
A segunda história, “Correndo atrás”, mostra o alvoroço causado entre os demônios especuladores do mercado de almas com a expectativa de uma nova vitória do Partido Conservador da Dama de Ferro, Margaret Thatcher. “Meu Deus. Condenado a viver numa sociedade individualista, em que os fortes ficam à vontade para pegar o que bem entendem e os fracos se veem entregues à própria sorte”, lamenta o herói. Nada mais atual.
Em “À Espera do Homem”, aparece a família de Constantine,sua irmã Cheryl, a sobrinha Gemma e o cunhado Tony, que arrastou a família para o culto fundamentalista cristão Cruzados da Ressurreição. Constantine já começa a soar mais como o que conhecemos: arrogante e autoconfiante, esculachando os santarrões.
Há ainda mais duas histórias, tão pesadas, criativas e bem feitas quanto. Em resumo, John Constantine, Hellblazer – Origens é uma excelente publicação, que mostra os primórdios de um dos personagens mais legais que surgiram nos anos 1980, uma época pra lá de fértil nos quadrinhos. Leitura fundamental para quem diz que gosta de quadrinhos. Aguardo ansioso pelo volume dois.

http://www.ahorda.com.br/quadrinhosmanga/hellblazer-origens-veja-as-geniais-primeiras-historias-do-mago-john-constantine

O Preço do Amanhã - In Time

O Preço do Amanhã: ótimo filme de ação, reflexão brilhante.



Quando alguém é responsável pelas idéias perturbadoras e fascinantes de Gattaca e Show de Truman já fica muito claro que vale a pena prestar atenção nos passos dessa pessoa. Some ao curriculum o interessante Senhor das Armas e o esquisito porém simpático Simone e você tem uma idéia da criatividade de Andrew Nicol, roteirista e diretor de O Preço do Amanhã.
O filme apresenta um futuro indefinido em que todas as pessoas são geneticamente criadas para envelhecerem somente até os 25 anos, se mantendo no auge da forma física. O problema é que dpeois dos 25 cada pessoa só tem mais um ano de vida consigo e deve conseguir os outros em forma de moeda. Todo o dinheiro do mundo foi substituído por tempo, fazendo com que os ricos vivam indefinidamente e os pobres caiam mortos no meio da rua.
Um relógio implantado no antebraço marca o seu tempo restante de vida e, como aluguel, comida e roupas são pagas em tempo, a vida dos mais pobres é uma constante angústia de não saber se vão terminar o dia vivos.
Justin Timberlake faz o papel de Will Salas, um trabalhador de fábrica relativamente comum de uma região muito pobre que, sob circunstâncias que não vale a pena revelar, acaba conseguindo uma quantidade enorme de tempo. Depois de perder a mãe devido à crueldade do sistema, Will decide fazer algo para acabar com a desigualdade absurda. O elenco ainda conta com a lindíssima Amanda Seyfried, muito bem num papel simples – de menina rica que aprende que o mundo é injusto – e Cilian Murphy, sempre genial, no papel de um dos agentes policiais encarregados de manter o fluxo do tempo nas mãos e regiões certas.

O filme é feito de surpresas maravilhosas. Justin Timberlake parece ter deixado o ‘NSync e o beatbox para trás de vez e se mostra um ator convincente o bastante para um filme que, além de cheio de ação, é repleto de momentos sensíveis e reflexões profundas. Cada novo detalhe da ambientação nos deixa de queixo caído com o quão simples são as mudanças e extrapolações em relação ao nosso mundo e o quão efetivas são as metáforas para criar consciência sobre a desigualdade inerente da nossa sociedade.
Andrew Nicol repete em O Preço do Amanhã o que já havia realizado em Gattaca e O Show de Truman: mostrar uma afiadíssima sensibilidade para as questões polêmicas do avanço irrefletido da técnica no nosso mundo. Em Truman, a discussão era sobre os limites da Indústria Cultural; em Gatacca, sobre a obsessão pela perfeição genética. Mesmo no bobinho Simone, há uma reflexão interessante sobre o conceito de real e imaginário com o avanço de tecnologias gráficas e computacionais.


Quem quiser ver um filme ação vai se deliciar com sequências ágeis e um trio de personagens ótimos no centro da narrativa de O Preço do Amanhã. Quem quiser se aprofundar nas idéias de Nicol, vai encontrar uma enorme teoria sobre exploração, desigualdade e privilégios de classe mais sóbria do que muita gente. O filme parece aprender principalmente com Gattaca, de quem empresta as idéias sobre engenharia genética, mas também mostra uma dose impressionante de unidade nas idéias abordadas pelo autor.

AVISO: O trailer tem uma quantidade meio incômoda de spoilers, incluindo algumas das cenas mais legais do filme. Assista por conta e risco.