O avesso do amor não é o ódio, é a indiferença, destaca o colunista da Folha João Pereira Coutinho na orelha deste romance de Mario Sabino. É da incapacidade de amar que trata o livro, com o qual o autor dos contos de “O Antinarciso” (2005) e “A Boca da Verdade” (2009) volta ao gênero que primeiro experimentou na literatura -a estreia foi em 2004, com o elogiado “O Dia em que Matei Meu Pai”.
Livros
Mario Sabino lança segundo romance, O Vício do Amor
Em 'O Vício do Amor', o segundo romance de Mario Sabino, um narrador atormentado e tormentoso inventa para revelar. É a cura pela escrita
Eurípedes Alcântara
Lailson Santos
Tudo, menos a indiferença
Sabino: o narrador se esquiva por meio de pseudônimos, mas não se poupa da franqueza.
É com virulência e escárnio que, nos capítulos iniciais de
O Vício do Amor (Record; 269 páginas; 37,90 reais), seu narrador conta as traições de que foi vítima por parte de duas de suas mulheres. Parece doer-lhe, especialmente, que as infidelidades se tenham dado com amantes judeus — embora ele mesmo pertença “a uma das doze tribos”, mas pela linhagem paterna. Enquanto acompanha o detalhamento do caráter infame daqueles dois sujeitos — um deles, lobista de empreiteiras; o outro, aliado de um saudita em um esquema para faturar em cima das tropas americanas no Iraque —, avoluma-se no leitor a surpresa diante da cegueira com que essas duas mulheres insistiram em procurar o amor em homens tão imerecedores. Parte da culpa cabe a si próprio, diz o narrador. É que ele mesmo nunca foi capaz de amá-las nem soube se fazer amado. Nem por elas, nem por ninguém. A certa altura ele dirá que do amor, esse vício, conhece apenas a abstinência.
Chamando-se ora Marco Levi, ora Ranuccio Tomassini, e por fim Mario Sabino, também esse um pseudônimo, como assegura o autor, o narrador destampa o que lhe vai na alma por meio de invenções sucessivas. A maestria narrativa está em fugir ao mesmo tempo do paralelismo e da perpendicularidade, sobrepondo camadas sob a alegação de, assim, conseguir acrescentar mais linhas ao texto que lhe foi encomendado por uma revista literária ao preço de 300 dólares, dinheiro que pode se dar ao luxo de desprezar. De jornalista pobretão, passou a milionário desocupado em virtude de uma herança. A cada camada, Levi/Tomassini/Sabino, por mais oblíquo que se acredite, exibe mais e mais verdades. Ao final, o que se terá é um doloroso, mas espetacular, panorama de como o narrador se sedimentou na forma acabada de homem com que ele caminha pela história.
Segundo romance do paulistano Mario Sabino, redator-chefe de VEJA e autor de
O Dia em que Matei Meu Pai e das coletâneas de contos
O Antinarciso e
A Boca da Verdade, O Vício do Amor tem, como esses trabalhos anteriores, uma relação estreita — genealógica, na verdade — com a psicanálise. Não é acaso, por exemplo, que seu narrador tenha se mudado para Roma depois de receber sua fortuna. Não apenas é a cidade do pai que o abandonou pequeno, ou que guarda vestígios determinantes da conflagrada relação entre a cristandade e o judaísmo, como o Arco de Tito. Sua Roma é a colisão gloriosa entre destruição e construção, entre ruína e memória — a psicanálise feita monumento e moradia. Até as convicções da namorada romana Renata, uma judia pró-Palestina, correspondem a esse cisma interior que é a dificuldade em distinguir, nas figuras do passado, vítimas de agressores. Vivendo na casa deixada pelo pai desconhecido mas onipresente, compartilhando reminiscências da mãe ressentida e do perverso Saulo, expondo a intimidade dividida com mulheres como Isabel e Lorenza ou simplesmente correndo de manhã em Villa Borghese — e transferindo tudo para o papel —, o narrador pouco a pouco se desvencilhará do desejo narcísico (termo que lhe é tão caro) de construir-se como personagem. Deixará emergir o homem. Não mais o ser necessitado da virulência para livrar-se de seus tormentos, mas aquele reconciliado com eles. É a cura pela escrita ou, quem sabe, pela fala. Cura que, é claro, só poderia ser relativa, já que não há como cancelar um passado de embate com a própria ideia do amor. Para Levi/Tomassini/Sabino, a única coisa verdadeiramente imperdoável é a indiferença. Disso, o narrador de
O Vício do Amor não padece. Mas talvez algum indiferente incurável atire a primeira pedra.
Prefácio de O vício do amor
ONDE ESTÁ A MINHA CARA METADE? Boa pergunta. Velha pergunta. Desde Platão que os homens a fazem. Tempos houve em que éramos perfeitos e perfeitamente esféricos. Mas a ira dos deuses perante tamanha soberba terminou com a festa. Fomos brutalmente divididos em dois.
O amor, ou a busca de amor, não é mais do que a tentativa de encontrar em vida o que nos foi roubado no princípio dos princípios.
Eis a história mitológica que contramos no
Banquete pela boca de Aristófanes e que praticamente determinou a discussão amorosa nos séculos seguintes. Amar é procurar. Amar é encontrar. E, quando finalmente encontramos a metade que nos falta, seremos unos e felizes para sempre.
Não vale a pena dissertar sobre as mil obras, e os mil equívocos, que se fizeram à sombra desse ideal. Prefiro formular a questão inversa sobre ele: e se esse ideal não passa de uma construção falaciosa dos homens para embelezarem a sua própria natureza bestial? A vida como quimera incessante de um coração apaixonado: haverá forma mais narcísica de mostrarmos ao mundo que temos um?
Os personagens de
O Vício do Amor acreditam que sim: vaidade, tudo é vaidade. Por isso eles se situam no extremo oposto das versões idealizadas do amor romântico. E esse extremo não é marcado pelo ódio. O ódio é sempre uma forma distorcida de amor.
O avesso do amor é a indiferença. E não existe nada de mais anti-civilizacional do que a ideia bem perversa de que “a indiferença pelo outro é nosso estado natural por excelência”.
Os personagens de Mario Sabino habitam esse estado natural, feito de tédio e suave inumanidade. Na definição de Fernando Pessoa, não são poetas porque não são fingidores. São vingativos, narcísicos, escrotos. Sem desculpa, sem desculpas.
E se a história romântica da Humanidade é essa busca incessante (e apaixonante) da metade que nos falta, o livro de Sabino ocupa-se do lado lunar da nossa condição: o lado dos que não procuram nada, dos que não amam ninguém. Porque não precisam de. Porque não são capazes de.
O Vício do Amor é um livro sobre ruínas, escrito entre ruínas. As ruínas físicas estão em Roma, a cidade onde o narrador revisita o seu passado sentimental com o método paciente de um arqueólogo profissional: camada a camada, despojo a despojo, labirinto por labirinto.
Mas as ruínas principais não são tangíveis; são feitas de memórias e povoadas por mulheres que partilham entre si o mesmo código de ausência, fraqueza e traição. E, claro, uma incapacidade estrutural para amar.
A mãe. Isabel. Lorenza. Três mulheres. E, das três, poderia ser dito o que o narrador afirma sobre a última delas: são ocas por obra do amor dos mal-amados. São ocas como putas depois do programa. Na verdade, nem são mulheres. São estátuas. E não é por acaso que Isabel termina os seus dias literalmente como uma.
E nesse rastro de desolação, o que resta, afinal?
Curiosamente, restam as palavras. Ou, sem pompa nem maiúscula, resta a literatura. Mas não a literatura como forma de transformar o mundo e redimir os homens da sua irredimível condição. Depois do fracasso das grandes narrativas histórias, a ingenuidade ideológica, como diria Talleyrand, não seria apenas um crime; seria um erro.
O fim último das palavras é serem exatas sobre nós e sobre os outros. Sem máscaras ou eufemismos.
Repetidamente, obsessivamente, o narrador retorna ao mesmo tema: a imperiosa necessidade de ser exato no que diz e na forma como diz. Ou, como o próprio afirma, “me recuso a trancafiar as palavras num lager e esperar que morram à míngua”.
A verdade do que dizemos, por mais intolerável que seja; a verdade com que o fazemos, por mais dolorosa que se apresente – eis a única forma de nos confrontarmos com a “infelicidade do mundo” e, apesar de tudo, aceitarmos o nosso lugar nele sem a “miséria neurótica” que nos persegue.
Uma forma de reconciliação? Talvez. A reconciliação imperfeita que o narrador recebe no final, ao ler as palavras exatas, brutais e desapaixonadas de Renata, a última e a mais importante das mulheres deste livro. Não apenas por ser a única que, desde o início, sempre recusou a versão do amor como manifestação narcísica das nossas humanas vaidades.
Mas porque, através dela, encontramos a única declaração de amor que interessa: a declaração dos que prometem nada prometer; e que, apesar disso, ou talvez por causa disso, são os únicos que cumprem realmente.
João Pereira Coutinho
Lisboa, Julho de 2011
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