Pesquisar este blog

sábado, 24 de agosto de 2013

Aquele Abraçaço





Caetano encerra o ciclo "Cê" com o disco "Abraçaço"
(Foto: Rodrigo Sombra/www.rodrigosombra.com)


POR CLAUDIO LEAL

Você pode observar Caetano Veloso no palco e nem perceber que o homem harmonizado pelo canto retornará, em breve, à instabilidade da criação de um novo ciclo, depois de decretar o fim da trilogia "Cê", iniciada há sete anos, quando se renovou ao lado da banda formada por Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes. Muitos artistas encaram esse futuro movediço com melancolia, pânico ou auto-medicação, mas esse é o tipo de problema que parece esquentar as noites do compositor baiano. O disco "Abraçaço", transformado em show em 2013, retoma a força original de "Cê” e espalha inovações e reincidências.

É prazeroso notar que a balada de veio mais pop, "Gayana", a faixa final do disco, tenha sido composta por Rogério Duarte, o mago essencializador do legado do Tropicalismo. Mas, pelo início. Como num roman à clef, "A Bossa Nova é Foda" constrói uma mitologia repleta de chaves, a começar pelo "Bruxo de Juazeiro" (João Gilberto), o desencadeador da viravolta do caráter triste (entre aspas) do brasileiro. Num refinamento de sua posição histórica de credenciar as potencialidades do Brasil no mundo, Caetano sacode a aparente suavidade da Bossa Nova para tornar mais nítido o ato inaugural de uma nação afirmativa, traumatizada por músicos e lutadores de MMA, puxados na letra pelo peso-pesado Minotauro, o baiano Antonio Rodrigo Nogueira:

"O velho transformou o mito
Das raças tristes
Em Minotauros, Junior Cigano
Em José Aldo, Lyoto Machida
Vítor Belfort, Anderson Silva
E a coisa toda:
A Bossa Nova é foda".

O temperamento de ensaísta manifesta-se nessa canção e outra vez em sua obra: o "mito das raças tristes" conduz ao "Retrato do Brasil" (1928), de Paulo Prado, um clássico da investigação de nossa "tristeza", presente há tempos no campo de suas intervenções.

Em "Verdade Tropical", no capítulo "Back in Bahia", Caetano absorve e questiona o Retrato: "Paulo Prado atribui a 'tristeza' do nosso povo (que ele vê confundida com nossa incapacidade de organização social e progresso econômico) à luxúria que dominou a vontade dos primeiros europeus aqui chegados: os poucos portugueses deixados sem mulheres brancas ‘numa terra radiosa’ sucumbiram à complacência das nativas e geraram a prole brasileira inaugural sob o signo da mestiçagem e da permissividade". Conforme Prado, "tudo o que caracteriza aos olhos do mundo uma alegada alegria brasileira não passa de sintoma da causa de nossa tristeza". Esse Brasil mestiço (examinado pelas gerações intelectuais dos anos 20, 30 e 40) é remexido pelo compositor em seus questionamentos à política de cotas nas universidades públicas, mais detidamente ao que chama de "americanização" do debate sobre as raças.

Talvez seja o caso de alguma tristeza particular a atmosfera da música “Estou triste”, monocórdica e melancólica, adensada e desalentadora, sensorial – uma penumbra: “Estou triste tão triste/ E o lugar mais frio do Rio/ É o meu quarto”. De íntimo corte, a canção não se impõe como uma visita recente da tristeza, que é também a condutora de “London, London” (1971), “Mãe” (1978), “Ela e Eu” (1979), e “Minhas Lágrimas” (2006), em fases distintas. E na raiz irreconhecível de sua tristeza há, sobretudo, perdas e lacunas. No show, Caetano resgata “Mãe”, originalmente gravada por Gal, mas somente agora levada ao palco pelo músico, por décadas esquivo à ideia de recordar os dias de “quase depressão” em que a compôs, no final dos anos 70. Em março de 2010, superou esse temor no lançamento das obras completas de Sigmund Freud pela Companhia das Letras, em São Paulo, atendendo ao apelo do tradutor Paulo César de Souza. Ganha um significado largo por ser entoada na primeira turnê do artista após a morte de sua mãe, Canô Veloso: “Meninos, ondas, becos, mãe/ E, só porque não estás/ És para mim e nada mais/ Na boca das manhãs”.

Dedicada ao guerrilheiro Carlos Marighella, “Um comunista” cresce em dramaticidade no show, para emergir o traço recitatório. O tributo poderia ser um corpo estranho ao conjunto do disco, não fosse ele uma outra narrativa mítica, coalhada das experiências de Caetano nas quadras da esquerda. O leitor de“Verdade Tropical” não se surpreendeu com sua admiração declarada por Marighella, morto em 1969 pela repressão militar. “Acompanhávamos de longe o que se passava no Brasil. Sem que eu estivesse certo do que poderia resultar de uma revolução armada, o heroísmo dos guerrilheiros como única resposta radical à perpetuação da ditadura merecia meu respeito assombrado. No fundo, nós sentíamos uma identificação à distância, de caráter romântico, que nunca tínhamos sentido com a esquerda tradicional e o Partido Comunista”, confessa Caetano. Entram outros componentes nesse enredo: o rompimento de Marighella com o PCB coincide, de alguma forma, com a recusa dos tropicalistas aos dogmas da esquerda cultural atrelada a Luiz Carlos Prestes. Os desvios autoritários do comunismo estão no centro do impasse: “Ó mulato baiano/ O samba o reverencia/ Muito embora não creia/ Em violência e guerrilha/ (Tédio, horror e maravilha)”. Por trás do “respeito assombrado”, havia os estilhaços do impacto da Revolução Cubana e uma crença residual no personalismo épico dos guerrilheiros latino-americanos.

Os flashes autobiográficos, jamais negados por Caetano, são pinçados em sucessivas audições de “Abraçaço”, e mais fortemente nas faixas “Vinco” e “Quando o galo cantou”, não por acaso as de aroma sexual, sendo a primeira de evocação hispânica e de musicalidade construída na letra, com versos metrificados (decassílabos), rimas internas e belíssimas aliterações (“Ásperos passos, pássaros sem fio”). Mesmo na citação ao Vinicius de Moraes de “Medo de amar”, em “Funk Melódico” (“Prova que o ciúme é só o estrume do amor”), preservou-se a quantidade de sílabas do original “perfume”, trocada por “estrume”. Esse manejo o faz incomum no território da “poemúsica”. O poeta Eucanaã Ferraz, na abertura da coletânea “Letra só” (2003) – que exige nova edição, ampliada, com as canções dos anos de “Cê” e de “Recanto” – reconhece o transbordamento das fronteiras: “As letras de Caetano davam uma medida valiosa para a poesia escrita e para a canção: versos de pulsação acelerada, colagem, cosmopolitismo, brasilidade, dança, corpo; entrada e saída rápida de desejos, fracassos e alegrias”.

“Abraçaço” estimula algum papo sobre o cromatismo das letras de Caetano Veloso, ao menos numa camada de fundo, embora seja evidente que o autor de “Trem das Cores”, “Rai das Cores” e “A Cor Amarela” (enfim, de “Cores e Nomes”), efusivamente policromático em outras travessias, agora reduz a força e a incidência de cores. Ainda intenso é o azul, quase que extraviado em “Um abraçaço” (“Nossas lentes e azuis”) e “Quando o galo cantou” (“Deixa esse ponto brilhar no Atlântico Sul/ Todo azul”); claro, há “vermelha e rosa de pétala íntima”em “Vinco”. Esse recorrente assombro com o azul, que faz qualquer um tirar da cartola poetas tão díspares quanto Mallarmé e Carlos Pena Filho, assume uma missão de imanência em Caetano, este lavrador do “azul que é pura memória de algum lugar”. Enquanto esmaecem as cores, as imagens arrombam a porta: “Ter olho no olho do jaguar,/ Virar jaguar”. A transa com a música eletrônica, na produção artística do disco de Gal Costa (“Recanto”), embute o desejo de tratar os sons como quem trata as tintas de uma pintura, reconhece Caetano.

No intervalo entre a produção de Gal e a feitura de "Abraçaço", achegou-se à obra do cantor e compositor britânico de música eletrônica, James Blake. Numa conversa realizada depois do lançamento do último disco, em dezembro de 2012, Caetano repassou a experiência com "Recanto" e analisou em específico a canção "Autotune autoerótico", que se refere ao processador de áudio Auto-Tune, corretor de deslizes na voz: "O que a letra daquela música quer dizer é que o Auto-Tune não basta, o que você precisa é usar todos os recursos de uma maneira inspirada… O Auto-Tune é uma dessas coisas que vieram mais depois da captação digital, então você pode controlar a afinação e mexer nas notas. Agora, você pode trabalhar a partir de um pensamento que conta com isso, e sua inspiração já contar com isso é você criar coisas maravilhosas, entendeu? Por isso, na gravação da Gal, a gente usa um pedaço propositadamente. E o James Blake faz isso divinamente. Ele já canta assim. A minha ideia não é naturalista, de que a pessoa só é verdadeira se cantar com a voz. Assim, você vai ter que chegar perto da pessoa sem nem um microfone, para ser a voz da pessoa. Não se trata disso”.

“Se você ouvisse (a gravação de um artista) nos anos 50, 60 e 70 ainda, dizia: 'Fulana é afinada, canta muito afinado'. Hoje em dia você não tem certeza se a pessoa canta afinado mesmo ou se foi corrigido no Auto-Tune”, desdobrou o compositor, avançando na definição do uso das novas tecnologias de áudio no instante criador: “A gente tem que se virar com os problemas que aparecem e isso traz também uma nova vantagem de poder fazer como James Blake faz. E ter inspiração no modo de interpretação, de cantar, contando com os efeitos. Mas tem que saber fazer. Já ouvi muitas gravações em que o Auto-Tune é usado. A voz fica afinada, mas não tem beleza nenhuma. Não tem inventividade nenhuma. Outras têm. E têm porque contam com o Auto-Tune".

A trilogia “Cê” é uma nítida intervenção crítica de Caetano Veloso na música brasileira. Pode-se ressaltar que o conceito dessa fase se manifesta melhor no princípio e no fim, quer dizer, nos discos de 2006 e de 2012. Dos “transrocks” aos diálogos com o pagode e o funk, insiste em percorrer caminhos hostilizados pela “inteligência” (classificação vaga, mas cabível aos ortodoxos pregadores do bom gosto) e re-existe entre forças destinadas a confrontar o nicho em que tentam cristalizá-lo – a ele e a sua geração. É Tropicália e além. Nesses mergulhos, Caetano vira um contraponto de uma cena de “Blow Up”, de Michelangelo Antonioni, na sequência em que o personagem de David Hemmings cruza de olhar mortiço uma apresentação dos Yardbirds e, apesar de tragado por um tumulto, dela consegue escafeder-se sem arranhões. Dentro e fora da canção, Caetano se embrenha e se arranha; desde Glauber Rocha, não há artista brasileiro tão disposto a expor seu itinerário mental em entrevistas, farpas e artigos, arriscando-se a mancadas, aulas de gramática, acertos e opiniões corajosas, fiéis a uma complexidade mais incômoda do que indecifrável, honestamente julgando-nos adultos. “Abraçaço”, show e disco, antes que me esqueça: o prazer de cantar.


http://terramagazine.terra.com.br/bobfernandes/blog/2013/05/17/aquele-abracaco/