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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

À deriva


À deriva



de Aninha Franco em Trilhas, Revista Muito, A Tarde, 20.10.2013:


Meu anarquismo de nascença está à deriva. Com a voz do poeta Cazuza na cabeça, que morreu jovem e não pode arrepender-se do que disse ou fez, eu também quero e preciso de uma ideologia pra viver. É anacronismo, eu sei, mas sou dependente delas. Em crise de abstinência, projeto um saldo, um sale como preferem os comerciantes brasileiros, das cinco edições de Calabar que possuo, o livro de Chico Buarque com o texto do musical censurado no dia da estréia, em 1973. Uma das edições, a primeira, que me custou caríssimo, entrego pelo preço das outras.

Cedo, também, os dois vinis com as capas em branco, substitutas das capas originais proibidas pela ditadura. Nos vinis, lembro, há a execução instrumental de Vence na vida quem diz sim, porque a letra, proibida, estava no livro, e há o corte de “nós duas” em Bárbara, outra obra vitimada pelo autoritarismo ignorante e puritano que vitimou o Brasil de 1964a1989, que censurou Antígona e expediu mandado de prisão contra Sófocles (497 ou 496 a.C.a 406 ou 405 a.C.)

Quem comprar o pacote Calabar no sale, leva, de bônus, dois vinis de Julinho de Adelaide, que, num tempo dos Anos 1970, foi Chico Buarque em estratégia brilhante para escapar à censura que o perseguia, implacável. A composição Acorda, amor nos falava dos seqüestros relâmpagos da repressão que caçavam militantes como Dilma Rousseff, e com este subterfúgio pedia Chame o ladrão, chame o ladrão, porque chamar a polícia poderia dar em morte. Amarildo que o diga!

Em Jorge Maravilha, Chico compôs para a filha do ditador Ernesto Garrastazu, dizem, o você não gosta de mim, mas sua filha gosta, ela gosta do tango, do dengo, do mengo, domingo e de cócegas, ela pega e me pisca, belisca, petisca, me arrisca e me enrosca, obra prima poética e de sacanagem com a ditadura. Foi consumindo obras como essas que eu fortaleci meu anarquismo de nascença, que assobiava a composição de Cálice,– aquela que desligou os microfones de Chico e Gil no Phonogram de 1973 – perto dos homens fardados, quando o silêncio nos atordoava, mas existiam ideologias para despertar a nossa vontade de sobre.viver.

O que há





O que há em mim é sobretudo cansaço

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos