Anos 1968, a Bahia se esgueirava da sombra da ditadura e uma “jeunesse dorée” buscava abrigo e refrigério sob o manto da arte, como alternativa para uma realidade que rejeitava, Uns dedicavam-se às artes plásticas; outros ao cinema, à música popular, à poesia, ao teatro.
Foi nessa época que me aproximei mais de Antonio Lins, o Toninho, unidos pela poesia e pelos festivais de música popular. Temperamento recatado percebi logo que este jovem não era do tipo de fazer estardalhaço, nem de ser o marqueteiro de sua própria obra – desde então, Toninho Lins era mais de guardar as pérolas que recolhia de seu cotidiano de pessoa sensível – quase nada me mostrava de seus poemas ou do que viria a ser letras de sua inúmeras músicas de sucesso.
Nossa aproximação se firmou na casa de seu pai, romancista e presidente da Assembléia Legislativa, Wilson Lins, magnífica figura de ser humano que vivia praticamente numa fazenda no alto do Rio Vermelho, ornamentada de araras, rodeado de amigos, poetas, escritores, cineastas, compositores e o mundo político da Bahia.
Quando a coisa apertou, começou o êxodo. Eu fugi para os Estados Unidos e Toninho Lins foi para São Paulo, pelas mãos de Glauber Rocha e Orlando Senna, em busca de horizontes mais arejados, levando em sua bagagem sua sensibilidade aguçada para confrontar com a dura realidade da paulicéia desvairada.
Toninho Lins guardou seus poemas, do último livro, por muito tempo. Neste último que ora releio “Amores Partidos- Poemas e Canções de Amor”, segunda edição, seu oitavo livro publicado, há poemas que dormitaram durante algum tempo na gaveta, mas que ao saírem para o papel se dispuseram de uma forma depurada e densa.
O poeta sente o tempo todo. Sente o dia a dia. Sente a conjuntura política e social. Sente a realidade urbana. E reage com o compasso sensível do verso que transmigra a realidade existencial para o papel.
Ele voltou à Bahia, assumiu a presidência da Fundação Gregório de Mattos, sacou que cultura não é prioridade de governo algum, se desentendeu com o prefeito João Henrique, mandou todos às favas e retornou a paulicéia, onde é candidatíssimo a uma vaga na Academia de letras, além de ter recebido, da Assembléia Legislativa, o título de cidadão paulista.
Este é meu amigo Toninho Lins, personagem de Jorge Amado, em Tenda dos Milagres, nome de Rua em São Paulo, no Butantã, bairro de classe média, concedido pelo então prefeito Altino Lima, nos anos de 1980.
Toninho Lins não é um espectador complacente das agruras do seu tempo. Ele esta envolvido nele; ele se maquiniza: “Deixa o coração sair pela boca/partir/Deixa o coração parir outros corações/E se abrir feito lata”... Antonio Lins não é destes líricos do intelecto que celebram seus poemas no mais recôndito de seus gabinetes como mero ato masturbatório.
Ele produz poesia como sumo da vida, numa constante extração de som e sentido de momentos vividos em que, como uma lâmpada, ele ilumina estes momentos, traduzindo-os na poesia mais autêntica porque ela é mais que uma poesia escrita Ela é uma poesia vivida. Uma poesia vivida que não despreza o pensamento porque, acima de tudo, pensa a vida.
Antonio Lins
60 anos de trio elétrico
O Carnaval da Bahia é o espelho onde a cidade toda se reflete, se olha, se projeta ao mundo inteiro, se reconhece e se estranha, ano a ano. Herdeiro de muitas ancestralidades, de outros tantos festejos, equilíbrio precário e milagroso entre acordos e tensões, estados de espírito sensorialmente democráticos e espaços de exclusão e exclusividade; afro-latino, afro-barroco, uma possessão que toma conta e devora a cidade.
O Trio Elétrico é a versão eletrificada do carro de Dionísio, a levar em seu rastro a coorte de entusiasmados sátiros, faunos e bacantes, corpos semi-desnudados por abadás e pinturas neo-tribais. Rola hoje, necessariamente, sobre azeitadas estruturas apolíneas, cuidadosamente planejadas, e movimenta poderosas forças econômicas e sociais.
Extraordinário engenho tecno-estético em cima do qual literalmente vêm se configurando os rumos do carnaval baiano, com ecos por micaretas e carnavais de outras cidades, estados, países. Dos anos oitentas para cá, foliões entusiasmados caem no transe de sua magia, mundo afora.
Ao final dos anos quarentas, numa Bahia ainda modorrenta e auto-referente, o radiotécnico Adolfo Antônio Nascimento – o Dodô - violonista nas horas vagas, e o engenheiro Osmar Álvares de Macêdo – o Osmar, exímio tocador de cavaquinho, se encantaram ao ouvir o violão elétrico de Benedito Chaves nos palcos do Tabaris.
Em 1950 o governador Octávio Mangabeira promoveu um pré-momo no trajeto Campo-Grande — Praça da Sé, ao som da orquestra de frevo pernambucana “Os Vassourinhas”, levando a população ao delírio. Estavam lançadas as sólidas bases do duo marketing político e Carnaval.
Uma coisa leva a outra,”tudo se transforma”: Dodô e Osmar amalgamam, então, o frevo, a guitarra elétrica, tudo isso e o céu também. A partir da idéia dos carros de corso, a “dupla elétrica” restaurou um velho Ford Bigode-29 e saiu às ruas, no carnaval do mesmo ano com seus “paus elétricos” ligados aos alto-falantes, com imenso sucesso.
Convidaram Temístocles Aragão , já instalados numa picape Chrysler com duas placas laterais que anunciavam :
“O trio elétrico”, patrocinado pela saudosa Fratelli Vita. Tocavam um frevo baiano instrumental.
Com a chegada de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Moraes Moreira, a música do trio passa também a ser cantada, com letras de grande qualidade literária, como as de Antonio Risério, inesquecíveis, sem perder com isso uma gota de popularidade ou animação.
Na tradição antropofágica, o trio segue, fiel ao seu início, na devoração sincrética de novos elementos, acompanhando a evolução do próprio carnaval e as transformações da sociedade baiana. A “cultura afro”, o orgulho em ser negro, movimento que cresceu geometricamente entre a juventude baiana dos anos setentas, foi incorporado tanto do ponto de vista sonoro, com o casamento do frevo com os ijexás, quanto do ponto de vista das artes visuais, em figurinos e decorações. Num corte para os anos oitentas, o Olodum , com seu “Faraó”, encorpa a epítome da música afro de tendência antropológica. Também a partir dos oitentas, com a chegada dos ritmos caribenhos e da lambada, Luiz Caldas e Gerônimo apontam novas direções.
O trio estava definitivamente consolidado como a grande plataforma da música baiana. Ponto de encontro de todas as vertentes e possibilidades estéticas, o palco ambulante de maior poder conclamatório da cidade do Salvador. Dele, tudo é possível dizer. A coisa é como dizer.
Com a capacidade de renovação artística de Carlinhos Brown; a qualidade da antenada Daniela Mercury; a beleza da voz e da própria Ivete, bela e generosa mulher, que lança tantos talentos; Margareth Menezes e seus Mascarados, o borbulhar de Cláudia Leite, a alegria azul do Araketu, o arrastão de entusiasmo do Chiclete, a teatralidade cômica de Lélis, entre tantos outros talentos que fazem o Carnaval da Bahia.
Da fubica ao Chrysler, daí aos pequenos caminhões, a trajetória vertiginosa chega às máquinas futuristas com capacidade para gerar iluminação a uma cidade de 50 mil habitantes. A arte do trio é indissociável de sua técnica. Seu desenvolvimento técnico, indissociável da sua transformação em uma bilionária maquinaria de geração de negócios com cruciais repercussões sociais, éticas e estéticas.
O entusiasmo em excesso, sabemos, é limítrofe à violência. A presença física dos carros e seu poder ilimitado de amplificação sonora, claro, ensejam cuidados urgentes. O mesmo podemos dizer quanto a seu modelo estético e econômico. Há que se preservar manifestações artísticas e culturais de uma trioeletrização compulsória e macaqueada, de baixa qualidade e nenhum significado artístico ou social. Todo grande poder e privilégio gera, ou deveria gerar, grandes responsabilidades, para as quais a sociedade civil, os poderes executivos e legislativos, os artistas, toda sociedade , enfim, e os próprios dirigentes de trios devem estar muito atentos.
Antonio Lins é poeta e jornalista