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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Um jeito baiano de viver...

O CORREDOR DA VITÓRIA SEGUNDO JOLIVALDO

27/05/2010
Foto de CLÁUDIO NIEDERAUER
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O REINO DE SHANGRILÁ
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texto de JOLIVALDO FREITAS*
(especial para o Jeito Baiano)
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Mais de 99 por cento da Bahia não sabe que existe uma praia chamada Shangrilá, em Salvador, e que nem está no mapa, nem no roteiro turístico e nem em nada. A não ser na cabeça dos maconheiros e dos pescadores que a frequentaram nos anos 60 e 70.
Todo mundo sabe da praia da Ribeira, Porto da Barra, Itapuã e até as do Litoral Norte, que já nem pertencem à capital, mas ignoram a lúdica e única praia da cidade que está localizada numa falésia.
Para quem não sabe e nem tem mesmo a obrigação de saber, justamente por não ser tão importante assim ou algo que vá impedir a hora do Harmagedon, a praia fica no logradouro com o metro mais caro da cidade. Está abaixo do Corredor da Vitória, onde hoje estão os mais caros apartamentos e os mais altos edifícios da moderna metrópole.
O Corredor da Vitória foi para onde, no período colonial e principalmente no limiar do século XX, os grandes fazendeiros de cana-de-açúcar, que não queriam passar a vida eternamente de forma bucólica, decidiram montar seus casarões. No final do século vieram os comerciantes franceses, italianos, ingleses e outros alienígenas e montaram casarões coloniais, fugindo das ruas irregulares do centro da cidade.
Ainda restam alguns casarões de importância histórica, mas a maioria absoluta, mesmo se tratando de um importante acervo, um patrimônio histórico, foi destruída pela sanha dos construtores.
Um exemplo recente é o do casarão neocolonial, parecendo daqueles americanos do filme E o Vento Levou, que pertencia ao reputado jornalista Jorge Calmon, que, segundo dizem as más-línguas, foi vendido para uma construtora com a garantia de que a casa seria preservada e o prédio construído na parte de trás. Ainda, segundo dizem por aí, a construtora derrubou o casarão nas madrugadas de um final de semana, decidindo pagar a multa pela nefasta ação, coisa que seria pouco em relação ao faturamento com o projeto. Foi-se a memória, ficaram os granitos da fachada do arranha-céu.
O Corredor da Vitória, que ganhou seu nome de batismo durante o período da guerra da Independência da Bahia – por onde as forças nativas marcharam quando da vitória contra o Exército Português de Madeira de Mello –, sempre foi o sonho de consumo da classe mais abastada da cidade, por sua posição privilegiada.
Fácil acesso às praias da área sul da cidade e próximo ao Centro Histórico. Também com uma paisagem privilegiada, debruçado sobre a Baía de Todos os Santos e com vista para a Ilha de Itaparica, Ilha de Maré, Madre de Deus e subúrbio ferroviário. Uma dádiva.
Abaixo, um imenso paredão de pedras de fogo e vegetação rasteira, com águas límpidas que dá até para ver os cardumes passando. Hoje o acesso para as praias abaixo das escarpas é fácil. Os prédios milionários fizeram piers e montaram chariots que descem sobre trilhos.
Antigamente ninguém tinha coragem de descer. Para chegar lá era preciso vir de barco, saindo do Solar do Unhão, na zona do Comércio ou do Porto da Barra.
Nos anos 60, quando a repressão aos hippies era imensa e fumar maconha dava com a polícia batendo de cassetete de borracha ou “fanta” (cassetete de madeira de lei) no lombo, os chincheiros encontraram o lugar perfeito e foram para lá se juntar a grupos de artistas que já frequentavam o lugar pela sensação de estar fora do burburinho da cidade.
A lenda urbana reza que quem batizou a área de Shangrilá foi o compositor baiano Caetano Veloso.
Carlito Mau Mau, Zé Diabo e Arquimedes Maluco frequentavam a área, descendo pela rua e se arranhando todo nas pedras e nos feixes de tiriricas. Naquele dia Mau Mau levava em sua bolsa de couro curtida e pintada com o símbolo de Paz e Amor um novo tipo de cogumelo que um argentino mais doido ainda tinha dado de presente no Porto da Barra, para fazer chá. Fizeram e provaram. Tirando umas luzes piscantes, uma sensação de dormência na língua e uma comichão que não parava nas pernas, nada demais aconteceu.
Os três moravam no Edifício Apolo XXVIII (o nome em homenagem aos foguetes norte-americanos), na época o maior da cidade com 28 andares, cheio de problemas como elevador que não funcionava e o cara tinha de subir a pé até o último andar para chegar em casa; faltando água, luz cortada e limpeza zero. Saíram do Sahngrilá e decidiram subir a montanha de escadas para apreciar a paisagem do telhado do Apolo.
Talvez pelo esforço, foram chegando e recebendo a rebordosa. O chá começava a fazer seu efeito. O sol, na ótica de Mau Mau, estava parecendo se dissolver como tinta a óleo: escorrendo no horizonte após a Ilha.
Zé Diabo viu passar uma revoada de araras e Arquimedes Maluco decidiu voar atrás. Jogou-se. Deu sorte de cair sobre uma plataforma poucos metros abaixo e ficou lá com o braço quebrado. Pelo susto o efeito passou em todos. Os moradores chamaram os Bombeiros.
Os soldados subiram todos os andares, cheios de equipamentos, retiraram o maluco do local de risco e foram descendo com os três. Os moradores tinham se alinhado nas escadas. Cada degrau um morador.
Os três drogados descendo e levando cascudos, piparotes, piabas, telefone sem fio, cusparadas, chutes, beliscões, ofensas e dedadas no toba, e os bombeiros fazendo de conta que não estavam vendo. Chegaram roxos até o andar onde moravam.
Por coincidência, depois disso nunca mais o Shangrilá voltou a ser frequentado. A loucura deles chamara a atenção da imprensa e a polícia passou a dar batidas e colocar para correr qualquer um que não fosse morador da área.
Hoje, os três, pessoas bem situadas na sociedade baiana, garantem que não lembram da história. Juram por Senhor do Bonfim que não foi com eles.
E ninguém, no edifício, se lembra do caso. A praia de Shangrilá não é mais a mesma. Está cercada de edifícios cujos apartamentos valem milhões de dólares.
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*Jolivaldo Freitas – Jornalista e escritor

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