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quinta-feira, 5 de julho de 2012

"Os pecados são todos meus"

Pasquale Cipro Neto

Cabeças engessadas, formadas pela ditadura estreita do literal estrito, sofrem para perceber...

GILBERTO PASSOS Gil Moreira acaba de completar 70 anos. Filho de médico e de professora, formou-se em administração de empresas na Universidade Federal da Bahia. Trabalhou na alfândega, na Bahia, e na Gessy Lever, em São Paulo. Um belo dia, graças ao bom Deus, largou a gravata, o paletó, a pastinha etc. e pôs os pés, as mãos, a mente, a alma e o coração na música, na poesia, na arte.
A cultura brasileira moderna deve muito a Gilberto Gil. A língua portuguesa deve muito a Gilberto Gil. Eu poderia escrever textos e textos sobre verdadeiros achados poéticos de Gil, em muitas das suas belíssimas canções, mas, como o espaço é limitado, concentro este texto em alguns de seus versos.
Começo com "Metáfora", verdadeira aula magna, que parte da prática da metalinguagem: "Uma lata existe para conter algo / Mas quando o poeta diz: 'Lata' / Pode estar querendo dizer o incontível". Sobre a elaboração dessa canção, Gil diz que "queria falar do significado da poesia, poetar o poetar". E como falou o Mestre baiano! Depois de "explicar" o sentido literal de "lata" ("existe para conter algo"), a letra de Gil diz que, na linguagem poética, a lata (recipiente) pode deixar de ser o recipiente para passar a ser o conteúdo que recipiente algum pode conter ("o incontível").
E a letra continua, cortante: "Por isso, não se meta a exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata / Na lata do poeta tudonada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha caber / O incabível". Para muita gente, é difícil entender o que dizem esses versos da letra de Gil justamente porque para essas pessoas é difícil entender algo que não seja pau, pau, pedra, pedra. Para muitos, o auge desse limite está em "tudonada cabe" ("Como assim? Existe a palavra 'tudonada'?" -pobre poeta, pobre poesia!)
Cabeças engessadas, formadas pela ditadura estreita do literal estrito, sofrem para perceber a beleza de uma imagem poética, tão necessárias (a beleza e a imagem) para que a vida flua, para que a percepção se faça, para que o entendimento e a compreensão se concretizem. Pois a essência do que diz Gil nesses versos está justamente na ideia de que cabe ao poeta (ao artista) fazer o anormal, o estranho, o incomum, ou seja, cabe-lhe fazer o que não foi feito, dizer o que não foi dito ou talvez já tenha sido dito, mas de um jeito inaudito.
Uma das canções de Gil que mais me comovem é "Drão" (apelido de Sandra, com quem Gil foi casado). Com imagens de rara beleza ("Drão / O amor da gente é como um grão / Uma semente de ilusão / Tem que morrer pra germinar"), a letra é uma verdadeira pletora de talento e de competência linguístico-literária, cujo auge, para mim, ocorre nestes versos: "Drão / Os meninos são todos sãos / Os pecados são todos meus". Como se já não bastasse a bela sequência "são todos sãos", Gil se vale do difícil e expressivo recurso da ruptura do paralelismo ao empregar como sujeito de "são" primeiro um substantivo concreto ("meninos") e depois um abstrato ("pecados") e ao terminar um verso com um adjetivo ("sãos") e outro com um pronome ("meus"). Maravilha pura!

E viva Gilberto Gil! É isso.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/52789-quotos-pecados-sao-todos-meusquot.shtml





Inventário das paixões humanas

Edição 173 - Janeiro 2012

Nelson Rodrigues, o Eterno

Com seu olhar ao mesmo tempo trágico e épico, o centenário dramaturgo nunca deixou de ser nosso contemporâneo.
 
por Marcella Franco e Valmir Santos
 
 

Da precoce carreira jornalística nos anos 30 à fama que lhe renderá homenagens neste ano, em que se comemora seu centenário, a vida e a carreira de Nelson Rodrigues percorreram a história brasileira no século 20. Foi ele quem criou o teatro moderno nacional, com Vestido de Noiva, em 1943, quem mais exaltou o futebol da geração de Pelé nos anos 60, quem conquistou inimizades por se alinhar à ditadura dos anos 1970.
Com sua obra, suas controvérsias e a própria biografia, Nelson Rodrigues inscreveu-se como um dos polemistas mais bem-humorados do país, o hiperbólico cronista do futebol e nosso maior dramaturgo. Só depois de sua morte, no entanto, em 1980, passaria a ser um raro caso de unanimidade inteligente (o que, para ele, era um oxímoro), com montagens do diretor Antunes Filho para suas peças, o estudo de sua obra pelo crítico Sábato Magaldi e, em 1992, o lançamento da biografia O Anjo Pornográfico, do jornalista Ruy Castro. Desde então, Nelson foi rediscutido, remontado, relançado.
No primeiro mês de 2012, BRAVO! dá início ao “ano Nelson Rodrigues”, que prevê diversas atividades, como espetáculos teatrais, relançamentos e tradução de parte de sua obra, exposição em São Paulo e Recife, cidade-natal de Nelson, e a divulgação de um curta-metragem antes considerado desaparecido: Fragmentos de Dois Escritores, do dramaturgo João Bethencourt, em que Nelson aparece.
Influência para dramaturgos e cronistas, Nelson Rodrigues comemora 100 anos sem ter envelhecido. Nos momentos transcendentais que pontuam suas histórias, no retrato cru que fez da sociedade brasileira, nos temas e personagens que povoam sua obra, a única marca do tempo é a da eterna atualidade.
Era outro tempo, em um Brasil imemorial. Era a época em que as mães e as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt, a célebre atriz francesa do século 19. As moças na rua, as datilógrafas, as colegiais andavam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. No futebol, a bola tinha um instinto clarividente e infalível que a fazia acompanhar o verdadeiro craque. O próprio tempo era uma convenção que não existia nem para o craque, nem para a mulher bonita.
Nelson Rodrigues considerava a época em que viveu trágica e épica. Como cronista, desenhava contornos de duelo em uma simples briga e revestia, como costumava dizer, a mais sórdida pelada de futebol de uma complexidade shakespeariana. Nas crônicas que escreveu nos anos 60, Nelson carregou o século passado para fora do tempo; transformou o cotidiano óbvio em momentos transcendentais.
O olhar aguçado, Nelson desenvolveu desde cedo, quando deu início a sua carreira de jornalista aos 13 anos e meio, em A Manhã. No jornal de seu pai, recheava de drama as histórias com mortes mais banais e tornou-se perito em recriar os enredos dos namorados que se matavam por amor. Vinte anos depois, na década de 1950, o doce amargo das ruas faria com que sua fama explodisse na coluna diária A Vida Como Ela É..., no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.
Em paralelo às crônicas, as pinceladas breves e expressionistas inspiradas no dia a dia carioca pintaram também outros quadros. Em 1953, dois anos depois de estrear sua famosa coluna, Nelson escreveu A Falecida, que dá início à fase das tragédias cariocas em sua obra teatral. As oito peças que integram esse conjunto delimitado pelo estudioso Sábato Magaldi estão coladas nos tipos e nas situações suburbanos de então, circunscritas à Zona Norte do Rio, à semelhança de A Vida Como Ela É.... Os saltos transcendentais se evidenciam tanto nas falas dos personagens quanto nas rubricas para os atores.
“Nelson Rodrigues não fica démodé porque fala sobre a vida, e a vida não é datada”, diz Arnaldo Jabor, cineasta que nos anos 70 filmou de Nelson a peça Toda Nudez Será Castigada (1965)e o romance O Casamento (1966). E as remontagens de seus diversos textos por alguns dos grupos mais relevantes de hoje não cessam, apenas comprovando sua atemporalidade. Desde os anos 90, já levaram Nelson para os palcos os diretores Eduardo Tolentino, com o Grupo Tapa, o encenador Rodolfo García Vázquez, dos Satyros, o mineiro Gabriel Villela, Cibele Forjaz, com sua Companhia Livre, a carioca Armazém Companhia de Teatro, com o diretor Paulo de Moraes, e a mineira Yara de Novaes, entre outros.
“Por que você não escreve sobre pessoas normais?” Se tivesse vindo de qualquer pessoa, que não Manuel Bandeira, a pergunta não teria doído tanto. Mas foi o poeta, que desde a primeira peça de Nelson, A Mulher sem Pecado (1941), não lhe poupava elogios, quem jogou um grande balde de água fria no dramaturgo logo após a leitura de Senhora dos Afogados, de 1947. Esse texto teve o mesmo destino de Álbum de Família, do ano anterior – sina de que Anjo Negro, escrita entre uma e outra, escapou por pouco: a censura. A incompreensão de Bandeira ecoava o incômodo do “teatro desagradável” que Nelson vinha fazendo. “São obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia”, descrevia o próprio autor – que no entanto achava que estava, justamente, falando de pessoas normais em sua obra.
Inventário das paixões humanas
“Nelson fez um trabalho de visualização humana único. Sua obra é o tratado mais completo sobre as classes médias brasileiras, sobre seu comportamento psicológico, sexual e linguístico”, diz Jabor. Os instantâneos do grande retratista acabam por superar a efemeridade e conquistar o status de um “rico inventário das paixões humanas”, nas palavras de Magaldi. “Em qualquer réplica, ou frase de efeito, à primeira vista, apenas escandaloso, o dramaturgo esconde uma verdade psicológica mais sólida que a percebida pelo verniz social”, postula o estudioso. A alta voltagem sexual vem romper uma capa de inocência, hipocrisia e moralismo de fachada da classe média.
Os sacrifícios da família de Os Sete Gatinhos (1958) para que a caçula se case de véu e grinalda ou a aspiração maior de Zulmira, de A Falecida (1953), de ter um enterro de luxo decupam os desejos persistentes da classe média, emoldurados em sexo reprimido e deformado por costumes morais, sociais e religiosos. Os desvios do lar são belamente sintetizados por Peixoto, genro e funcionário de um empresário milionário em Otto Lara Resende ou Bonitinha, Mas Ordinária, de 1962. Conversando no bar com um colega, Peixoto sentencia: “Toda a família tem um momento em que começa a apodrecer. Percebeu? Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. E lá, um dia, aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo”.
Homofobia e racismo
“A sensação que tenho é que Nelson anda reescrevendo as peças em cima das notícias dos jornais”, diz, brincando, o diretor paulistano Marco Antônio Braz, devoto fervoroso do evangelho rodriguiano. Na sua mais recente montagem de O Beijo no Asfalto (1960), em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo, ele vê saltar da trama discursos latentes da homofobia ou do bullying que estão na pauta do dia.
No enredo, o jovem protagonista Arandir presencia o atropelamento de um homem e corre para acudi-lo. Ajoelha-se, segura a cabeça do sujeito e beija-o, compadecido, antes do último suspiro. O beijo se transforma em uma acusação escandalosa de homossexualismo, que evoluirá para desconfiança dentro de sua própria família e, por fim, seu assassinato.
Anjo Negro, de 1946, foi o ponto de partida para a discussão sobre racismo que retornou à ordem do dia em 2006, na montagem do diretor alemão Frank Castorf, do Teatro Volksbühne, que juntou Nelson Rodrigues ao compatriota Heiner Müller. Ismael e Virgínia, que no texto de Nelson vivem uma relação de violência permeada por infanticídios motivados pela cor da pele dos filhos, foram mergulhados no contexto de uma revolta de escravos na Jamaica.
Para além de temas ainda contemporâneos como esses que pontuam a obra de Nelson, ­­a “meditação sobre o amor e morte”, questão fundamental, circunscreve seu teatro. Tão eterno quanto esse tema, o universo do chamado “Flor de obsessão”, como Nelson foi definido pelos seus amigos, era delimitado por outras questões recorrentes nos textos, como o tabu desnudado, a obsessão pela pureza, e a ambivalência do mundo familiar e do mundo público. Os temas vinham regidos por procedimentos também marcados, como os personagens que transformava em caricaturas, as máximas e a fala coloquial. Tudo para expressar uma verdade interior, sem sutilezas, sem censura, com “gosto em devassar a intimidade do indivíduo, libertando-o da carga censora que disciplina o convívio social”, comenta Magaldi.
Derrubar as máscaras para destrinchar o homem por trás do verniz social, cavoucar sua essência por entre os acontecimentos do dia a dia. Esses procedimentos já eram, na primeira metade do século passado, associados a um nome que seria entronizado nos anos seguintes: Sigmund Freud (1856-1939). Suas ideias eram na década de 1930 vulgarizadas pelos jornais, explica Ruy Castro, e ele era então “o tarado oficial”.
Nelson não leu os preceitos que fundariam a psicanálise, mas foi e seria muito mais com o passar do tempo associado a ela. Tanto pelos tabus que trazia à tona quanto pelas estruturas de alguns textos que faziam do palco quase um divã – nos planos da realidade e do delírio em que se passa Vestido de Noiva (1943), por exemplo, ou no monólogo Valsa Nº 6 (1951), em que a autorreflexão de uma adolescente destila angústias, delírios e abstrações em busca de sua identidade.
Inconsciente coletivo
No quesito inconsciente, Antunes Filho prospectou mais fundo e trouxe à baila outras camadas da obra. Nas montagens que reúnem diversas peças do dramaturgo – Nelson Rodrigues: O Eterno Retorno (1981), Nelson 2 Rodrigues (1984) e Paraíso Zona Norte (1989) –, Antunes Filho apoiou-se na teoria dos arquétipos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung e nas teorias simbólicas do mitólogo romeno Mircea Eliade. Recentemente, na montagem de A Falecida Vapt-Vupt (2009), recorreu também ao psicanalista francês Jacques Lacan. “Eu fui para o inconsciente estrutural, coletivo: a cultura que foi imposta a todos”, explica o diretor do Centro de Pesquisa Teatral.
As camadas mais profundas que se revelam nos textos de Nelson estabelecem entre estudiosos a ideia de uma obra que jamais será datada. Como diz Antunes Filho, Nelson está sempre na esquina, esperando alguma coisa acontecer. “A gente ouve o rumor permanente daquelas vozes que saltam como se fossem explosivos, pólvoras. São as frases objetivas, altissonantes, derradeiras. Os personagens falam aquilo, mas há um rumor por baixo, por fora.” Um ruído de fundo que, seja no silêncio pré-unanimidade, seja no alvoroço dos eventos centenários, não esmorece.

http://bravonline.abril.com.br/materia/nelson-rodrigues-o-eterno#image=173-td-nelson-1

Nelson humanista

Edição 173 - Janeiro 2012

Tarado e Reacionário

Rótulos simplistas como esses escondem um homem tão contraditório quanto qualquer mortal
 
por Marcella Franco e Valmir Santos
Ilustração Rafael Quick
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Querem me chamar de reacionário, chamem. Querem me pichar como reacionário, pichem. Querem me pendurar num galho de árvore como ladrão de cavalo, pendurem.” Em uma exaltada retórica que terminaria obviamente por afirmar o contrário do que sugeria no início – “Realmente, eu sou um libertário” –, Nelson Rodrigues assume, ironicamente, o epíteto que lhe reservaram para o final da vida. Apoiador declarado da ditadura militar brasileira e anticomunista ferrenho, o “reacionário” Nelson provocava arrepios na esquerda. Mas, durante boa parte de sua vida, quem fazia o sinal da cruz à menção de seu nome eram os que resistiam a uma época de mudanças constantes nos padrões de comportamento e que, por sua vez, lhe cunharam o apelido de “tarado” por causa de suas peças e folhetins recheados de adultérios e incestos. Atacado pelo flanco esquerdo na política e pelo direito na área dos costumes, o tarado de suspensórios, o reacionário amigo do general Emílio Garrastazu Médici, que presidiu o Brasil no auge da tortura, era bastante mais complexo e contraditório do que os rótulos podem cravar.
Longe, por exemplo, do fervor sexual de uma Engraçadinha, a fogosa adolescente capixaba do folhetim Asfalto Selvagem (1960), Nelson Rodrigues conduzia a vida de maneira a estar sempre nos conformes do compêndio da moral e dos bons costumes – em termos rodriguianos, naturalmente, mas de qualquer forma bem longe do que se podia imaginar de um tarado. Com dois casamentos em seu currículo e alguns pares de casos extraconjugais, Nelson era machista com a época em que viveu – ao mesmo tempo que marcava encontros vespertinos com amantes, adulava com flores e bombons a Amélia que o aguardava em casa. E ai de Elza, sua primeira mulher, se ousasse uma roupa mais curta ou pintura no rosto. Enquanto isso, o “tarado” declarava acreditar no amor eterno e lamentava a banalização da nudez pelo biquíni.
Acreditar que sua obra seja uma cartilha de pecados e tabus é também apenas uma leitura rasa dos homens universais que Nelson punha em movimento no subúrbio carioca. Ele mesmo afirma que suas peças são obras morais, que “deveriam ser encenadas na escola primária e nos seminários”, ao que os estudiosos, em uníssono, respondem relativizando qualquer moralidade nos textos, para o bem ou para o mal. “Ao chamar-se de tarados os personagens, arquétipos de Nelson Rodrigues, cai-se no mesmo e profundo ridículo que corresponderia a uma acusação desse tipo feita a Édipo, do Édipo Rei, de Sófocles”, escreveu o psicanalista e escritor Helio Pellegrino em texto do volume Teatro Completo – Nelson Rodrigues.
Matizes
Com a política era diferente. Sua posição era bem clara: ele abominava a ditadura comunista da então União Soviética e de Cuba, ao mesmo tempo que apoiava a ditadura no Brasil, aproximando-se de maneira pessoal dos militares. É famoso o episódio em que Nelson volta de uma partida de futebol a que foi assistir em São Paulo no avião particular do general Médici. Nessa ocasião, relata Ruy Castro, ao questionar o general sobre a existência de tortura no Brasil, ouviu dele um “dou-lhe a minha palavra de honra que não se tortura”. Foi justamente a tortura, no entanto, que abalou sua grande certeza política. Após um período de militância no grupo revolucionário MR-8, seu filho Nelsinho caiu nas mãos da polícia. Ao encontrá-lo pela primeira vez após a prisão, o pai quis saber se Nelsinho havia sido torturado. “Muito”, o rapaz respondeu.
O preto no branco dos rótulos já vinha sendo matizado por um Nelson humanista, que usava de sua proximidade dos militares para libertar jovens de esquerda que caíam prisioneiros do regime. Descobrir a tortura foi o ponto final de uma carreira de defesa do regime, que para ele se igualou à versão comunista da ditadura no que ele mais combatia: a falta de liberdade. “Nelson Rodrigues foi reacionário apenas na medida em que não aceitou a submissão do indivíduo a qualquer regime totalitário”, escreve o estudioso Sábato Magaldi. “Quando a pessoa humana for revalorizada, também desse ponto de vista ele será julgado revolucionário.”
Compatíveis com essa visão humanista são as posições de Nelson a respeito de racismo e homossexualismo. O esperado do “reacionário” seria que ele reforçasse qualquer preconceito? Pois Nelson criou todo um enredo trágico em torno de um beijo gay, em O Beijo no Asfalto. E, irmão do Mário Filho que em 1947 publicou o ensaio interpretativo O Negro no Futebol Brasileiro, depois de celebrizar os craques mulatos em crônicas, escreveu em 1946 a peça Anjo Negro para colocar no centro do palco o racismo velado do país. E brigou – e perdeu – para que o protagonista fosse representado não por um ator branco com o rosto pintado de preto, como era comum na época, mas por um ator negro, Abdias do Nascimento, para quem havia escrito o texto. “Retratando e levando às últimas consequências os estereótipos racistas cultivados pela nossa ‘democracia racial’, Nelson demolia as absurdas pretensões à harmonia racial”, declarou Nascimento.
“Junte o maio de 68 francês, a chegada da pílula, canção popular e festivais, a corrida espacial que foi o auge da Guerra Fria, tudo agravado pelo Golpe de 64. É nesse ambiente que Nelson se apresenta como reacionário”, pondera o escritor e professor de literatura brasileira Luís Augusto Fischer. Em um mundo que avançava cada vez mais rápido, Nelson talvez possa ser mais bem retratado pela definição do artista plástico, escritor e ensaísta Nuno Ramos, que vê na obra do dramaturgo um eterno retorno ao arcaico: Nelson é “como uma má notícia ambulante a assombrar a velocidade do mundo lá fora”.

Marcella Franco é jornalista, escritora e autora do blog elatatuoupalavra.blogspot.com.
Valmir Santos é jornalista e editor do site teatrojornal.com.br

http://bravonline.abril.com.br/materia/tarado-e-reacionario

Elegância bem-humorada

Edição 173 - Janeiro 2012

O Senhor da Galhofa

Nelson Rodrigues esgrimia com um de seus traços mais fortes – o humor
 
por Paulo Nogueira
 
Ilustração Rafael Quick
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Nelson Rodrigues foi um polemista absolutamente único entre os brasileiros. Suas bordoadas, quase sempre nas mesmas pessoas e pelos mesmos motivos, eram, paradoxalmente, delicadas como broncas de mãe amorosa – mas convicta e dura. Isso conta muito sobre ele. Nelson Rodrigues, nos combates que travou no campo das palavras, jamais pareceu interessado em destruir seus alvos e nem sequer em batê-los nos argumentos – mas, sim, em fazer os leitores pensarem, de preferência com um sorriso no rosto. Nelson Rodrigues, e este é um traço seu pouco valorizado, foi um dos melhores humoristas do país.
O humor estava presente em todas as polêmicas que travou – e também nas provocações que fez. Como toda a elite intelectual do Rio de Janeiro de seu tempo, tinha pelos paulistas uma mistura de desprezo, despeito, raiva e admiração. Traduziu tudo isso numa de suas numerosas frases memoráveis. “O pior tipo de solidão é a companhia de um paulista”, escreveu. Só um paulista muito tacanho poderia se sentir agredido por Nelson Rodrigues. Como sempre, a vergastada estava envolta num humor tão fino que subtraía quase toda a contundência – sem minar a essência da mensagem.
Essa grande tirada sobre os paulistas, ele, como de hábito, repetiria muitas vezes, quase que obsessivamente. Nelson Rodrigues produziu um número extraordinário de frases memoráveis nas polêmicas que travou e nas provocações que fez e para ampliar sua força usava a estratégia da repetição. Se ele fosse apenas um autor de frases, como o francês La Rochefoucauld, já teria conquistado um lugar destacado nas letras brasileiras. Suas máximas abarcaram virtualmente todos os campos, da política à religião, do futebol à psicologia – isso para não falar do amor.
Não era um polemista que se movimentava conforme as circunstâncias. Isso o distinguiu, por exemplo, de Paulo Francis. Francis foi de esquerda quando era chique ser de esquerda, nos anos 60 e 70. Na década de 1980, em que o conservadorismo galvanizou boa parte do planeta na figura da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, Francis virou um polemista de direita (hoje, em que o receituário thatcherista é apontado por muitos como uma das razões da presente crise econômica mundial e por isso perdeu grande parte do brilho, Francis provavelmente retornaria à esquerda).
Elegância bem-humorada
Nelson Rodrigues não tinha problema nenhum em ser chamado de “reacionário” numa época em que isso era um dos maiores insultos que um intelectual poderia receber. Era um homem convicto não das virtudes do capitalismo, mas dos defeitos para ele insolúveis do socialismo. Os símbolos da esquerda de seu tempo foram uma formidável inspiração para ele. Do cardeal dom Helder Câmara, um expoente da Teologia da Libertação – corrente esquerdista da igreja que pregava o ativismo em prol dos pobres –, ele dizia, por exemplo, que “só olhava para o céu para ver se ia chover”. O fascínio erótico que Che Guevara despertava nas mulheres da alta sociedade carioca também foi objeto de análises espirituosas, ferinas e divertidas.
A elegância bem-humorada com que ele esgrimia contrasta intensamente com as armas de outro célebre polemista brasileiro, Carlos Lacerda. Lacerda, que na juventude foi comunista e depois na idade adulta viraria anticomunista, tinha uma agressividade destrutiva que você jamais encontra em Nelson Rodrigues. Em seu melhor e ao mesmo tempo pior momento como polemista, Lacerda comandou um ataque sangrento ao presidente Getúlio Vargas, cuja administração era segundo ele um “mar de lama”. Compare isso com a resposta clássica de Nelson aos jovens rebeldes que nos anos 60 o acusavam de ser mentalmente e ideologicamente senil. “Jovens: envelheçam.” Mais uma vez, o tom firme mas doce de uma mãe que deseja o melhor para seus filhos.
Diferentemente de tantos polemistas, Nelson Rodrigues não fez barulho simplesmente sendo do contra, mesmo sabendo da fraqueza do chamado pensamento convencional. Ele expressou isso numa de suas frases mais citadas: “Toda unanimidade é burra”. Se é possível traçar uma linha de Paulo Francis a Diogo Mainardi entre os polemistas, Nelson Rodrigues, lamentavelmente, não deixou sucessores. Arnaldo Jabor, que filmou algumas das histórias de Nelson e é um de seus mais conspícuos discípulos, bem que tentou, mas acabou ficando a uma distância considerável do mestre. Principalmente naquilo que foi talvez a marca maior de Nelson Rodrigues como polemista: o humor fino, suave, que leva o leitor a refletir com uma risada, e não a imprecar, seja contra ou a favor, com uma carranca.

Paulo Nogueira é jornalista e colaborador da Abril Mídia em Londres.

http://bravonline.abril.com.br/materia/o-senhor-da-galhofa#