Ronaldo Jacobina
Fui encontrar Maria Bethânia, 65, na sede da gravadora Biscoito Fino, numa belíssima casa na bucólica Rua Sarapuí, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Era meio-dia. Dali a dois dias, a artista, que está completando 47 anos de carreira, lançaria, ali mesmo, numa entrevista coletiva com jornalistas de todo o Brasil, o 50º álbum, batizado de Oásis de Bethânia. “Estou preparando meu colete à prova de balas”, gargalha, como, aliás, fará várias vezes durante toda a nossa entrevista, que se estendeu até o meio da tarde, sem que aparentasse qualquer sinal de cansaço. “Não se preocupe, menino, sou muito conversadeira”, diz. Aos poucos, fui me livrando do nervosismo de fã que sou, desde menino. Diante de mim, não está a grande estrela, mas uma menina que parece ter vivido sempre na sua amada Santo Amaro. Tirar seu bom humor, só quando as coisas que rodeiam seu trabalho não saem como ela quer. Aí é voluntariosa. Cuidadosa com as palavras, seu principal instrumento de trabalho e pelo qual tem verdadeira devoção, Bethânia fala da relação com a família; da juventude, época em que diz ter “pintado” muito; do amor pelo ofício; das modernidades dos tempos atuais e da falta de delicadeza do mundo. De uma leveza que a faz parecer flutuar na cadeira à minha frente, tal como quando está no palco, Bethânia ri das lembranças e diz que o sertão é o seu oásis. De bem com a vida, vai tocando em frente, espalhando poesia e encantando multidões. Definitivamente, Maria Bethânia é uma diva!
Você é muito criteriosa com seu trabalho. Com Oásis de Bethânia, lançado recentemente, você chegou à marca de 50 discos gravados. Você sofre muito com o processo de produção de um novo álbum?
Não sofro, não. É o momento que mais gosto. É quando eu sou a pessoa mais feliz. Quando estou criando alguma coisa, imaginando, querendo, pretendendo, essa hora é boa para mim, é quando eu gosto. Porque quando eu não tenho, assim, nada para me ocupar, por exemplo, quando termino um disco ou uma turnê, fico inventando alguma coisa. Trabalho acordada, dormindo, cozinhando, namorando, lendo (ri).
Tem aquela rigidez, tipo ficar escrava do projeto?
Não, porque é prazer para mim. Isso eu lhe digo, é prazer para mim.
Mas você é perfeccionista?
Sou. Insuportável. Eu gosto das coisas assim. Não é que eu seja perfeccionista, porque não gosto dessa coisa de chegar à perfeição, isso eu detesto, mas eu gosto que as coisas atinjam o que eu idealizei. Enquanto não consigo, não sossego.
Isso com sua vida pessoal também?
Não, não. Isso com o trabalho, porque o trabalho é a minha vida, eu sou assim. O que eu faço, sei aonde quero chegar na sonoridade, na interpretação, na maneira de articular a palavra, no que eu quero de peso, de suavidade. Tudo isso. Aí eu fico exigente. Enquanto não chega a isso, para mim, não está pronto.
O povo de Santo Amaro, assim como sua família, tem fama de festeiro. Você, durante anos, badalou muito. Depois ficou mais recolhida. Como é que você se relaciona com a festa hoje em dia?
Assim, eu sou santo-amarense, sou festeira, sou filha de minha mãe. A gente costuma brincar lá em casa que somos Viana Telles Velloso, Viana de minha mãe, Telles Velloso de meu pai. O lado Telles Velloso não é muito de festa; já o Viana, não adianta, porque tudo acaba em festa. Eu sempre falo que sou Viana. Em tudo eu sou Viana, é inacreditável. Eu sou muito o lado de minha mãe, de minha avó. Assim, aquela coisa bem caseira. Eu fiz uma casinha para mim em Cabuçu agora, copiei a casa de minha avó que eu tinha na memória. Simples. Para mim, tinha tudo de necessário, de bonito, de elegante. Lá na Bahia, eu frequentava muito todos os ambientes de arte. Eu participava do clube do cinema, junto com Caetano, ia para o Mercado Modelo. Eu conhecia a Bahia toda, andava a Bahia inteira, aquele Vale do Canela, a Reitoria, a Escola de Teatro, a Escola de Dança, pronto, aquilo era minha morada. Nossa morada. Gostava muito desse convívio com o mundo artístico. Quando vim para o Rio, aos 17 anos, fiz 18 aqui, fiquei maior, podia definir melhor minhas escolhas. Aí, meu amor, caí na gandaia. Aí no Rio de Janeiro não tinha lugar que sobrasse que eu não fosse. Cantava muito na noite, fiz todas as casas, boates do Rio e São Paulo. Então eu vivia muito tudo aquilo, os restaurantes… Eu nunca fui de festa, mas saía com os amigos para conversar, dar risada. Agora eu p-i-n-t-e-i, com 18, 20 anos. Aos 25, eu sapateei. Mesmo nessa época, eu já tinha fama de caseira. Tenho muitos amigos, nunca fui de frequentar a casa de ninguém, eles vêm à minha. Eu sou interiorana.
Você continua uma menina de Santo Amaro?
Continuo não, eu sou. Cada vez, tô pior. Morro de saudades, enlouqueço. Quando tenho uma folga, vou correndo para Santo Amaro. Morro de rir com o povo. Adoro ouvir as histórias, amo, é a coisa que mais me relaxa, que mais me faz bem. As brincadeiras lá de casa… No aniversário de Clara, que nasceu num domingo de Carnaval, ao meio-dia, ela disse que nos 80 anos queria fazer um grito de carnaval como daquela época. Então Caetano e eu fizemos para ela, e foi inesquecível aquele momento, 40 convidados. Para mim, aquilo é lindo, fico apreciando, não brinco muito, não, mas fico ali contemplando aquela alegria, e isso me faz um bem danado. Tão bonito!
E Salvador, você também tem uma casa lá. Como é sua relação?
Eu tenho uma casa lá e tenho uma grande relação com Salvador. Tenho uma grande adoração pelo mar. Eu tive uma outra casa, no Morro do Gato, que era um lugar muito grã-fino, que tinha uma vista para aquele mar lindo, mas eu não tinha muita intimidade com aquela Salvador ali. Pelo contrário, achava sem clima baiano, achava uma natureza… não sei, não sentia a Bahia. Quando fui para essa casa atual, o Solar Amarelo (Contorno), ali eu sinto estar em Salvador. Primeiro, aquela baía, não é mar aberto, é a Baía de Todos-os-santos, Ponta de Nossa Senhora, Ponta de Areia, Itaparica, Mar Grande, toda a encosta do Bonfim, Ponta de Humaitá, tudo aquilo ali que, para mim, é a Bahia. Quando era estudante na Bahia, em Salvador (nós de Santo Amaro chamamos Bahia, em vez de Salvador), era ali que eu vivia. Conceição da Praia, o Mercado Modelo ainda era cá, mas você vê, foi uma feliz coincidência, eu adoro, eu olho a cidade dali, da minha janela, gosto muito…
Você acompanha a cidade?
Acompanho até um pedaço, já acompanhei mais. Também chorei muito. Pergunto, me informo, conheço pessoas que têm decisões na prefeitura, no governo, mas são coisas que já estão definidas, que você, no meu caso, não tem muito o que fazer. O que posso fazer é cantar. A minha casa hoje, o Solar Amarelo, é uma ilha, está tudo vendido ao redor. Está tudo muito perdido, sem controle…
Quando está na Bahia, você sai muito?
Eu vou muito para Santo Amaro, Cabuçu, e passeio muito de barco, que adoro. Porque restaurantes, eu não gosto. Gosto de comida de casa, de estar com as pessoas. Eu tenho família muito grande, muitos sobrinhos, com seus namorados, suas namoradas. Aí vai ampliando, chegando gente, ficando simpático. Mabel mora perto, Clara mora perto, Jota (Velloso), todo mundo vai a pé. Tem o Largo 2 de Julho, que é a minha paixão. Os anos que vivi na Bahia, foi no Anjo Azul, que era naquele beco lá. O lugar era um sonho. De dia no mercado, de noite no Anjo Azul (risos).
Você faz ginástica, dieta, cuida do corpo?
Não. Eu como de tudo, não tenho frescura. Digo frescura porque nunca fui assim, tenho o corpo do jeito dos Velloso, desde menina. Gosto de comida boa. Como feijão todos os dias. Gosto da comida de todo dia, feijão, arroz, carne ou peixe, assim. A comida baiana tem uma coisa que é gostosa demais. Não como vatapá porque é bom demais, mas tem um gosto muito pronto, não dá para imaginar, e eu gosto de pensar, ficar imaginando coisas. E gosto de comer bem, sou chata. Sou filha de dona Canô, gostamos de comer (ri).
Você é do candomblé e é devota de Nossa Senhora. Como vê essa questão do sincretismo religioso?
Meu berço é católico. Depois de adulta, escolhi o candomblé. Eu acho muito bonito, muito nobre, tanto o catolicismo quanto a religião africana. Cada um do seu jeito, com seus rituais diferentes, suas cantigas bonitas, lá e cá, gosto de comungar, como gosto de comer um omolokum, você entende? Acho tudo bonito, sagrado, Bahia…
Como lida com o assédio de fãs? Isso a incomoda?
Eu não tenho muito assédio de fã, não. As pessoas que gostam de mim falam comigo com um certo cuidado, porque não sou muito de aparecer. As pessoas chegam a mim, reverenciam o meu trabalho. Tudo lindo, com respeito.
E você gosta disso?
Gosto. É o que quero. O artista tem que chegar levando o melhor que puder. Para abrir a cabeça, botar para pensar, para sentir, lembrar que tem sentimento, que tem dor, amor, prazer, que tem dificuldades… O artista deve fazer isso.
E aqui no Rio de Janeiro, você tem vida normal, vai a shopping, compra as próprias roupas?
Vou, vou. Eu tenho algumas facilidades, afinal são 47 anos de carreira. Algumas lojas são gentis, mandam roupas para eu escolher em casa, mas vou a shopping, sim. Não aqueles enormes, que não gosto. Vou aqui em São Conrado, onde eu moro. Sinto falta das lojas nas ruas.
Você tem acompanhado o que acontece, atualmente, com a música baiana?
Vejo, impossível não ver (gargalha), tem que ver. Vejo mais no Carnaval, quando fico procurando a hora que Ivete (Sangalo) vai aparecer na TV, para dar risada com as coisas que ela vai dizer, acho engraçado. Daniela faz sempre aquelas coisas diferentes, teatrais, está sempre inovando. Ela me convida, mas digo: não vou não, meu amor. Eu admiro isso. Acho interessante as brincadeiras do (Carlinhos) Brown, de ir no chão; da Timbalada; dos blocos negros, acho lindo. Aquilo é muito bonito!
E o pagode baiano, você conhece?
Pois é, nos carros, o volume é sempre muito alto. Vi que tem uma lei antibaixaria, achei interessante a ideia de que toda banda que fizer letra depreciando a mulher não pode ter patrocínio do governo. Acho isso bom, faz diferença, porque fica feio. Eu não ouço, só o que passa em alto volume.
Você diz que seu trabalho nunca lhe trouxe aborrecimentos, mas os periféricos, sim. O que são esses periféricos?
Não, não, no meu trabalho em si, não. Mas a periferia do meu trabalho, sim. Compromissos… Tudo na vida tem chateação, e é bom que tenha.
Entrevista, por exemplo?
Não, não, de jeito nenhum. Eu sou muito conversadeira. Maysa é que dizia que não gostava de dar entrevistas, eu não. Mas tem coisas que eu não gosto. Eu sou exigente, se o cenário está enviesado, só sossego quando fica bom. Isso vem de tudo o que rodeia todo tipo de serviço. A exposição, no meu caso, tem horas que é insuportável para mim. A coisa da vitrine, você estar em cena. Talvez por isso tenha tanto essa coisa reservada, porque preciso. Tem horas que me enche o saco. Eu estar dormindo e me lembrar que tem alguém me vendo, eu falando, eu cantando, na televisão. Me estremece toda, isso eu detesto.
Por isso você faz tão pouco televisão?
Eu não faço televisão. Eu faço algumas coisas fora da televisão que depois passam na televisão (risos).
E você costuma se ver depois no ar?
De jeito nenhum. Me cansa. A exposição na vida artística é difícil. Isso é uma coisa periférica que não gosto.
Você diz que não gosta de ler jornal, de ver televisão, mas você está sempre informada. Como é que você se informa?
TV aberta eu não suporto, vejo, às vezes, telejornal. TV por assinatura eu vejo. Mas não leio jornal. O Wally (Salomão) dizia que eu ficava em São Conrado com a parabólica ligada o tempo todo. Eu sou antenada e falo muito com pessoas que me interessam. Todos os dias.
São elas que a atualizam?
Eu tenho diálogo. Eu falo sobre teatro, sobre música, política, falo de tudo. Essa massificação de notícia, eu detesto. Me estressa também.
E a internet, você usa?
Pouquíssimo. Não tenho intimidade. Meu trabalho exige que eu diga sim ou não para uma coisa, então eu resolvo ali. Só.
Facebook, redes sociais, nem pensar.
Não, nem sei o que é isso. Não está me fazendo falta. Outro dia eu estava com minha mãe e uma amiga me ligou dizendo ter visto uma foto minha com mãe chegando a Cabuçu. Eu quase morri. Porque isso é uma invasão muito grande na intimidade das pessoas. Esse negócio de internet, o acesso é livre, todo mundo pode, todo mundo gosta, todo mundo quer. Não tem mais o privado, é tudo público. E não é. Uma vez, no meu camarim, no Canecão, eu estava fazendo Amor, festa e devoção, e Caetano chegou com muitos amigos no meu camarim, que é arrumado, eu levo muitas horas no meu camarim. Antes e depois do show. E o meu camarim tem uma linha (ri), segue-se um roteiro ali, muito bem guardado. Eu recebo as pessoas na porta. Entrar no meu camarim, onde eu trabalho, onde eu estudo meu show, minha interpretação, só alguns. Claro que entrando com um amigo meu, com meu irmão, naturalmente eu imagino que são pessoas que têm nível e limites. Então, lá entrou Caetano, com umas pessoas lindas. De repente vi pelo espelho uma dessas pessoas fotografando tudo no meu camarim. Eu virei para ele, tomei o telefone, joguei no chão e comecei a pisar. Não sabia o que sobraria daquele aparelho. Ele disse: eu só estava fotografando. Bia Lessa estava lá e disse assim: ‘Essa é a diferença entre o privado e o público, você entrou porque estava acompanhado’. As pessoas parecem que não têm mais limite. O outro não existe. Não aprendi assim e não quero aprender. Com isso eu sou rigorosa.
No ano passado, houve uma polêmica com o seu nome sobre a criação de um blog de poesia, que seria submetido às leis de incentivo para a captação de recursos. O que você sentiu com aqueles ataques a você?
Na época, nem entrei nesse debate, não quis falar. Dois queridíssimos amigos meus, o Vianna (Hermano) e o Andrucha (Waddington), duas pessoas que só fazem ao Brasil muitíssimo bem, me convidaram para ler poesia. Fiquei muito honrada. Eles enviaram o projeto para a lei e foi aquela situação. Desde que me entendo por gente, sou muito séria, faço meu trabalho, faço minha vida sossegada, não sou de turma, não me dou, minha praia é minha praia… Isso, há anos, vem causando muita reverência, muito respeito, muito reconhecimento… Fiquei triste porque usaram meu nome, me usaram para me bater, mas isso faz parte da vida. Eu sou como Chico (Buarque): “Não me quebro porque sou macia”.
Sua mãe diz que você liga tanto para ela que chega a enjoar…
(Gargalhada) Ai de mim que não ligue. Eu ligo todo dia. Às vezes ela está tomando café, se arrumando, aí Clara ou outra irmã atende, e eu digo: dê um beijo e diga que eu liguei. Um, dois, dias depois, ligo e consigo falar com ela, aí ela dispara: ‘andou sumida, hein?’ Eu digo: mãe, liguei todos os dias, e ela de pronto: ‘mas aqui ninguém dá seus recados, não’ (gargalhada). É um espetáculo!
E você obedece a sua mãe até hoje?
Lógico, é minha mãe.
E Caetano, vocês se veem muito?
Não, mais no verão, na casa de minha mãe. Ele tem ido mais assiduamente à Bahia, Moreno estava morando lá, não está mais. Ele tem ido mais lá ver minha mãe, os netos. Eu soube que ele declarou que está querendo ir morar na Bahia. Alguém me disse isso. Ele é louco por Salvador. E ele está muito mais assim, família, mais ligado à minha mãe.
E Gal (Costa), vocês se veem, se falam?
Não, não. Gal, eu perdi contato há muitos anos. A última vez que estive com ela foi naquela festa (show) em homenagem a Mãe Menininha, na Concha Acústica. Faz tempo. Ela falou comigo agora, quando minha mãe foi internada. A gente se fala assim, quando tem alguma coisa.
Você nunca deixou de ousar. Mesmo com o mercado retraído grava o que quer, aposta em canções inéditas…
Ah! Esse é simplesmente o luxo da minha vida. Se tem luxo nela, é esse: fazer o que quero, o me interessa, o que me comove, o que me atrai e ponto. Sem pensar na periferia, no que isso atrai. E tem uma casa que confia na minha intuição e que me permite gravar o que eu quero, que é a Biscoito Fino. Isso é um luxo.
Você abandonou uma multinacional, criou seu selo, o Quitanda. Foi uma forma de ter controle total de sua carreira?
Eu sou autora. Isso foi para fazer cada vez mais como eu quero.
Como vê novidades como o iTunes?
Não conheço nada disso. Isso é com a Biscoito Fino. Gosto de cantar.
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