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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Vinicius para Chico: O que nos motiva é o amor

Carta de Vinicius para Chico 1968



Finalzinho de 1968. Nelson Motta, 24 anos, assinava coluna diária no Jornal Ultima Hora. Roda viva era o nome, o mesmo da música de Chico Buarque, que tinha a mesma idade de Nelson, compusera no ano anterior. Em dezembro, ele publicou uma carta de Vinicius de Moraes, 55 anos, que fazia shows em Lisboa com Baden Powell e a cantora Márcia, para Chico Buarque. Vinicius, que se diz em lua-de-mel com Cristina Gurjão, sua sexta mulher, se delicia com o “falar” dos lusos, dá conselhos ao futuro papai Chico e conta um papo com Tom Jobim de Las Vegas e fala sobre a curva descendente dos festivais de música no Brasil: “estão se transformando em verdadeiras partidas de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais participarei, pois detesto todo gênero de competição”.

Antes de publicar a carta, Nelson Motta faz uma introdução sobre o sucesso dos "shows recitais" de Vinicius em Lisboa, no Teatro Villaret e na boate Ad Lib e diz que “Vinicius iniciou esse seu show com uma carta a Chico Buarque de Holanda seus amigo de todas as horas”. Logo abaixo vem a carta com data de 13 de dezembro. Atenção na data: é a da decretação do AI-5. A temporada, conta José Castelo conta na bio O Poeta da Paixão, começou dia 11 e no show do tal dia 13, antes de encerrar com Canto de Ossanha, Vinicius fez um discurso inflamado, e leu seu poema Pátria Minha, o que lhe causou problemas com a ditadura salarazista que reinava no País.

Abaixo, a carta de Vinicius para Chico.


Lisboa, sexta-feira, 13 dezembro

Chico querido:

Pois, pois. Aqui estamos nós, Márcia, Baden e eu, num dos teatros mais prestigiosos de Lisboa, o Villaret, para fazer um showzinho de música e poesia também, como gostamos de apresentar – bem informal, em comunicação bem íntima com as pessoas. As pessoas, pelo que pude notar, são lindas de morrer. Mas não há perigo. Cristina está presente, e nossa lua-de-mel corre mais doce que ovos moles d’Aveiro. Você já provou ovos moles d´Aveiro, Chico? É de comer em prantos. Melhor que isso só mulher, isto é, Cristina. Pena eu estar em dieta de emagrecimento. Mas felizmente não estou em dieta de Cristina.

E você, Chiquinho, como vai essa gravidez? O “miúdo” já está a se revelar um novo Pelé no ventre paterno, aos pontapés, ou tem tendências abstratas, como os poetas novos, aos quais ninguém ouve? Diga a Marietinha que não se preocupe não, porque tudo vai correr muito bem para você. Faça respiração de cachorrinho durante as contrações, como manda o método Lamase, e você não vai sentir dor alguma – ouviu, papai inchado? E por falar nisso, “miúdo” aqui é o equivalente de menino. E trem é comboio. E alô é tá. É engraçado e bonito. E quando uma pessoa é muito bacana, caindo de bossa, diz-se que tem piada, que é giro. Você aqui teria muita piada, seria “girérrimo”.

Ontem, consegui falar com o nosso querido maestro Antônio Carlos Jobim em Las Vegas, onde ele está com o Frank Sinatra, trabalhando num novo disco. Pois imagina que disse só assim à telefonista internacional – “olha aqui, minha filha, eu preciso muito falar com o maestro Tom Jobim nos Estados Unidos, sei que ele está gravando com o Frank Sinatra. Me podia fazer o favor de caçá-lo para mim?” E dez minutos depois ouvi a voz de Tom que me perguntava: “Onde está você?” E eu respondi: “Em Lisboa”. E ele disse: “Que coisa boa!” E eu lhe perguntei: - E eu lhe pergunto: - E você onde está?” E ele retrucou: “Estou em Las Vegas” E eu: “Ai não me pegas”.

E ele falou: “Que estás fazendo?” E eu respondi: “Um show com o Baden e a Marcinha”. E ele, com um profundo suspiro intercontinental: “Ah, que coisinha!” E meu parceiro sabe o que diz!

***

Fiquei contente em saber que você tirou o primeiro lugar no júri popular do IV Festival da Record. Eu acho que os festivais brasileiros estão se transformando em verdadeiras partidas de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais participarei, pois detesto todo gênero de competição. Mas gostei de conhecer o Eusébio, com quem bati um papo ameno, depois do jogo entre o Benfica e o CUF. Você sabe, Chico, que Cristina é torcedora do Flamengo tão violenta que embora nós tivessemos sido convidados para o jogo pelo CUF, em recinto privado, ela teve o topete de agitar uma flâmula do Benfica, que é o correspondente português do Flamengo, e torcer por sua vitória? Eu confesso que tive medo que os dirigentes do CUF nos chutassem para “córner”.

Estou contente porque vamos passar o Natal juntos em Roma e tomar um porre firme e cantar juntos e dar muitos “manguitos” (que é o correspondente de banana) para as estátuas dos imperadores romanos. Foi em Roma que eu conheci você menino, e você, seu safadinho, enquanto eu bebia com seu pai, ficava no alto da escada, no meio da madrugada, só para nos ouvir cantar.

***
Marcinha chegou hoje. Agora nós vamos começar nosso “show” naquela base simples de amor e comunicação como você, Baden e eu gostamos de fazer – e Marcinha de interpretar. O que nos motiva é o amor. Não é o amor que move o Sol e outras estréias, como disse Dante Aligheri?

Outro dia minha mulher riu-se muito quando eu lhe disse que o amor cura o câncer. E cura mesmo! E não é outra a razão porque Márcia veio de São Paulo, Baden de Paris e eu do Rio, para esta comunicação linda e indispensável à nossa vida de artistas. E ao levar a vocês nossa poesia e nossas canções, nós o fazemos – insisto mais uma vez em dizê-lo – só por amor. Só amor.










 

Canção de Exílios


Uma outra canção de exílios

Uma canção pode ter várias encarnações. Composta ou gravada num determinado contexto histórico, pode voltar à tona anos depois, num contexto diferente, ou correlato, na mesma gravação ou em outra que a releia e posicione perante o novo cenário. Em alguns casos, datada a princípio, tem uma segunda chance de mostrar perenidade para além da especificidade que a motivou. E em outros a canção já tinha em si esta capacidade de ultrapassar a significação imediata, mas precisou desta segunda exposição para isto ficasse mais claro a mais gente.
O período da ditadura militar brasileira foi pródigo em canções assim. Muitas serviram a seu tempo dignamente com metáforas e alusões que se esforçavam ao mesmo tempo por se fazer compreender e passar despercebidas. Tratavam do tempo presente, dos homens presentes, da vida presente, como disse Drummond em tempos de guerra, bem antes. E não se preocupavam muito com a própria sobrevivência como canções. No entanto outras, abaixo da casca de decifração direta, guardavam sementes de outras leituras, porque não se limitava a tratar do drama de sua época, que já era tremendo, mas o identificavam com questões ainda mais amplas, que dizem respeito a qualquer época, qualquer país, qualquer homem.
Vapor Barato, de Jards Macalé e Waly salomão, foi composta em 1970 e gravada por Gal Costa em 1971, no álbum Fa-tal – Gal a todo vapor, correspondente ao show de mesmo nome dirigido por Waly, que marcou a carreira da cantora. A canção foi feita em circunstâncias políticas e culturais muito difíceis, de repressão política duríssima, no período que foi intitulado Anos de Chumbo e que teve como resposta de uma parte da juventude o desbunde, uma reação de quem não suportava o que via à volta e voltava-se para valores espirituais; não se encontrava na cultura vigente e inventava uma contracultura.
A canção está impregnada destes fatos. Mas ela sobrevive a eles, recusando-se a ser um mero documento de uma época. De maneira quase casual, ela ressurgiu aplicada a uma nova circunstância histórica, e assim evidenciou-se a sua transcendência a estas circunstâncias. Vapor Barato trata da busca humana de um lugar no mundo, e do exílio deste lugar. Como o escritor italiano Primo Levi, que no título do livro que conta sua experiência no campo de concentração nazista de Auschwitz, pergunta: É isso um homem?, transformando num questionamento existencial sua vivência pessoal, Wally Salomão (á época Sailormoon), antes de falar de sua experiência objetiva, fala do seu exílio interno, de um país que o abandonava em vez de ser abandonado. Ele conta:
Começamos a trabalhar exatamente naquele período que marcava um vazio depois do AI-5, depois de tudo o que foi o tropicalismo em 1968 e que foi cortado violentamente no final daquele ano. 69 começava como um período de esmagamento total, vindo de cima, do poder. A gente conversava muito e eu ficava incitando Macalé a quebrar os vínculos com remanescentes da bossa nova ou então com a música de concerto, com aquele perfeccionismo. Insistia na necessidade dele criar um espaço próprio. Isso era fundamental naquele momento – uma voz que continuasse cantando e mantivesse acesa a chama. Nessa época escrevi e Macalé musicou Vapor Barato, de letra oposta à tendência liricista e nebulosa que predominava. Era direta, frontal, dizendo o que era possível naquele momento de desencanto.
Waly não conta, mas Macalé sim, que Waly foi preso e torturado no presídio de Carandiru. Vapor Barato nasceu daí. Os lancinantes oito minutos e meio da gravação de Gal Costa são o lamento de quem se perde de um país. É fácil buscar mensagens (nem tão) cifradas na letra: calças vermelhas, casaco de general, o recado é óbvio. E no entanto, está longe de explicar tudo.
Gal – 1971, álbum Fa-tal

A estrutura de Vapor Barato é franciscana. Tom menor, quatro acordes descendentes em direção à dominante, e é tudo. Jards diz que todo mundo tocava a canção à época. A melodia segue a direção dos acordes, descendente, linear, cansada, quase falada, subindo apenas no último acorde para preparar o retorno à tônica e a frase seguinte, num passo a passo desalentado, extenuado. Até chegar ao refrão.
O refrão, de duas palavras. O refrão, elementar, cru, estrangeiro, rompendo a barreira do agudo e despejando dor. Todo o desalento da letra da canção aqui se transforma em torrente, como um uivo para a lua – e Gal, efetivamente, no fim da música abandona a letra e se lança em vocalizes que são quase uivos, contrastando com os scats nasais, comedidos do início. Como também ao cantar eu quero esquecê-la / eu preciso, em que o quase grito da segunda frase contradiz a primeira e mostra o esforço violento deste esquecimento forçado, contra a vontade, necessário como forma de sobrevivência. Gal canta a canção duas vezes, a primeira acompanhada apenas por um violão batido com fúria, da maneira mais elementar, o contrário do Jards Macalé profundamente influenciado por João Gilberto. E na segunda vez um trio bluesly passa a soar. Blues, canto de exílio. Toda a solidão do mundo ressoa.
Corta para 1995. O cineasta Walter Salles filma Terra Estrangeira, com a atriz Fernanda Torres. Fernanda, num intervalo das filmagens, começa a cantarolar uma canção. Walter Salles decide incorporá-la ao filme, daquele jeito mesmo, cantada à capela pela personagem dela. E nos créditos pôs a gravação integral de Gal Costa.
O enredo de Terra Estrangeira se passa em 1990, logo após a ascenção de Collor à presidência, e o confisco do dinheiro das cadernetas de poupança, as economias e a esperança de boa parte da população. No momento maior da volta da democracia, uma fraude tinha lugar, e o país adiava o encontro consigo mesmo. No filme, personagens premidos pela crise econômica emigram para Portugal. Os versos de Vapor Barato voltam a fazer sentido quase literal: eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus.
Em 1996, a canção é gravada pelo grupo O Rappa, em seu primeiro álbum, Rappa Mundi.

A versão do Rappa segue por um caminho diverso ao de Gal. A quase lassidão da primeira gravação dá lugar a um vigor condizente com a postura combativa do grupo. Até dentro da mesma frase, a ênfase muda: antes, eu estou tão cansado. Agora, mas não pra dizer que eu não acredito mais em você. Falcão se permite menos voos vocais que Gal, amarra mais a melodia, calca o pé na levada da bateria de Yuka, base da música do Rappa. Sob a sintaxe do reggae em substituição ao blues, mudam também as significações imediatas: o discurso pode ser de um filho que sai de casa, aquele velho navio adquire possibilidades diversas. O título, que fora citado por Caetano na canção Fora de ordem nomeando um mero serviçal do narcotráfico, integra-se também à letra de formas inesperadas.
A visão do Rappa não se compara com a de Gal. Nem deve. Pois o que torna possível a gravação do Rappa, de certa forma, é o retorno da gravação de Gal em Terra estrangeira. A atualização histórica de Vapor Barato no filme de Walter Salles foi mais que isso – pois o filme é menos uma crônica histórica que uma busca existencial -, foi o reconhecimento da permanência da canção para além de contextos particulares, ou aplicável a inúmeros contextos, gerais ou pessoais, como as boas obras de arte. Zeca Baleiro, pouco depois, a mesclou com a sua À flor da pele, com a familiaridade de quem relê uma carta antiga.
A sobreposição de contextos e significados em Vapor Barato, no lugar de esconder sua universalidade subjacente, a expõe. Vapor Barato não precisava do resgate de Walter Salles (ela tinha sido sequestrada? detesto esta expressão) para ser a soberba canção que é. Não foi ela a beneficiada, e sim nossa escuta que se renovou e se renova a cada momento histórico ou pessoal, ao reconhecer a polissemia que torna rica uma obra de arte. Este segundo olhar sobre ela permite vislumbrar a possibilidade de ainda muitos olhares. Que venham outros.

Brinde: aqui e aqui, uma interessantíssima interpretação astrológica de Vapor Brato, relacionando-a inclusive com o mapa astrológico do Brasil.

http://tuliovillaca.wordpress.com/


NOTA: Gratissima, Túlio Villaça , por escrever exatamente o que eu gostaria de ter dito.....regina