Carta de Vinicius para Chico 1968
Finalzinho
de 1968. Nelson Motta, 24 anos, assinava coluna diária no Jornal Ultima
Hora. Roda viva era o nome, o mesmo da música de Chico Buarque, que tinha
a mesma idade de Nelson, compusera no ano anterior. Em dezembro, ele publicou
uma carta de Vinicius de Moraes, 55 anos, que fazia shows em
Lisboa com Baden Powell e a cantora Márcia, para Chico Buarque.
Vinicius, que se diz em lua-de-mel com Cristina Gurjão, sua sexta mulher, se
delicia com o “falar” dos lusos, dá conselhos ao futuro papai Chico e conta um
papo com Tom Jobim de Las Vegas e fala sobre a curva descendente dos
festivais de música no Brasil: “estão se transformando em verdadeiras partidas
de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais
participarei, pois detesto todo gênero de competição”.
Antes de publicar a carta,
Nelson Motta faz uma introdução sobre o sucesso dos "shows recitais" de Vinicius
em Lisboa, no Teatro Villaret e na boate Ad Lib e diz que
“Vinicius iniciou esse seu show com uma carta a Chico Buarque de Holanda seus
amigo de todas as horas”. Logo abaixo vem a carta com data de 13 de dezembro.
Atenção na data: é a da decretação do AI-5. A temporada, conta José
Castelo conta na bio O Poeta da Paixão, começou dia 11 e no show do tal
dia 13, antes de encerrar com Canto de Ossanha, Vinicius fez um discurso
inflamado, e leu seu poema Pátria Minha, o que lhe causou problemas com a
ditadura salarazista que reinava no País.
Abaixo, a carta de
Vinicius para Chico.
Lisboa,
sexta-feira, 13 dezembro
Chico
querido:
Pois, pois. Aqui estamos
nós, Márcia, Baden e eu, num dos teatros mais prestigiosos de Lisboa, o
Villaret, para fazer um showzinho de música e poesia também, como gostamos de
apresentar – bem informal, em comunicação bem íntima com as pessoas. As pessoas,
pelo que pude notar, são lindas de morrer. Mas não há perigo. Cristina está
presente, e nossa lua-de-mel corre mais doce que ovos moles d’Aveiro.
Você já provou ovos moles d´Aveiro, Chico? É de comer em prantos. Melhor que
isso só mulher, isto é, Cristina. Pena eu estar em dieta de emagrecimento. Mas
felizmente não estou em dieta de Cristina.
E você, Chiquinho, como
vai essa gravidez? O “miúdo” já está a se revelar um novo Pelé no ventre
paterno, aos pontapés, ou tem tendências abstratas, como os poetas novos, aos
quais ninguém ouve? Diga a Marietinha que não se preocupe não, porque tudo vai
correr muito bem para você. Faça respiração de cachorrinho durante as
contrações, como manda o método Lamase, e você não vai sentir dor alguma –
ouviu, papai inchado? E por falar nisso, “miúdo” aqui é o equivalente de
menino. E trem é comboio. E alô é tá. É engraçado e bonito. E quando
uma pessoa é muito bacana, caindo de bossa, diz-se que tem piada, que é giro.
Você aqui teria muita piada, seria
“girérrimo”.
Ontem, consegui falar
com o nosso querido maestro Antônio Carlos Jobim em Las Vegas,
onde ele está com o Frank Sinatra, trabalhando num novo disco. Pois imagina que
disse só assim à telefonista internacional – “olha aqui, minha filha, eu
preciso muito falar com o maestro Tom Jobim nos Estados Unidos, sei que ele está
gravando com o Frank Sinatra. Me podia fazer o favor de caçá-lo para mim?” E
dez minutos depois ouvi a voz de Tom que me perguntava: “Onde está você?” E eu
respondi: “Em Lisboa”. E ele disse: “Que coisa boa!” E eu lhe perguntei: - E eu
lhe pergunto: - E você onde está?” E ele retrucou: “Estou em Las Vegas” E eu:
“Ai não me pegas”.
E ele falou: “Que estás
fazendo?” E eu respondi: “Um show com o Baden e a Marcinha”. E ele, com um
profundo suspiro intercontinental: “Ah, que coisinha!” E meu parceiro
sabe o que diz!
Fiquei contente em saber
que você tirou o primeiro lugar no júri popular do IV Festival da Record.
Eu acho que os festivais brasileiros estão se transformando em verdadeiras
partidas de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais
participarei, pois detesto todo gênero de competição. Mas gostei de conhecer
o Eusébio, com quem bati um papo ameno, depois do jogo entre o Benfica e o
CUF. Você sabe, Chico, que Cristina é torcedora do Flamengo tão violenta que
embora nós tivessemos sido convidados para o jogo pelo CUF, em recinto privado,
ela teve o topete de agitar uma flâmula do Benfica, que é o correspondente
português do Flamengo, e torcer por sua vitória? Eu confesso que tive medo que
os dirigentes do CUF nos chutassem para
“córner”.
Estou contente porque
vamos passar o Natal juntos em Roma e tomar um porre firme e cantar
juntos e dar muitos “manguitos” (que é o correspondente de banana) para as
estátuas dos imperadores romanos. Foi em Roma que eu conheci você menino, e
você, seu safadinho, enquanto eu bebia com seu pai, ficava no alto da escada, no
meio da madrugada, só para nos ouvir
cantar.
***
Marcinha chegou hoje. Agora
nós vamos começar nosso “show” naquela base simples de amor e comunicação como
você, Baden e eu gostamos de fazer – e Marcinha de interpretar. O que nos
motiva é o amor. Não é o amor que move o Sol e outras estréias, como disse
Dante Aligheri?
Outro dia minha mulher
riu-se muito quando eu lhe disse que o amor cura o câncer. E cura mesmo! E
não é outra a razão porque Márcia veio de São Paulo, Baden de Paris e eu do Rio,
para esta comunicação linda e indispensável à nossa vida de artistas. E ao levar
a vocês nossa poesia e nossas canções, nós o fazemos – insisto mais uma vez em
dizê-lo – só por amor. Só amor.
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