Pesquisar este blog

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Isso


A última vez deve tirar sangue.
Unhas riscando
a palma.
Da mão. Da boca. Da alma.
O coração, acostumado ao seu vazio, espantou-se de ter visita. Hóspede? Inquilino? Dono? O coração não sabia. Sabia, apenas, que ele chegou devagar, analisando o espaço, espreitando as esquinas, mapeando os caminhos e veredas. Sabia, somente, que ele foi fincando bandeiras, deixando marcas em cada canto, tornando seu o que já nem lembrava de haver outro.
O coração se assustou. Descobriu, num rompante, que o peito era pequeno. Escutou sua própria angústia de desconhecer os amanhãs feito batucada. Tum-tum e acelerando. Até que. Não era nada. Não era festa, não era dia.
É aquela dorzinha fina de viver, a certeza da incompletude, a percepção dos limites, o desconforto comigo mesma, com o mundo. É aquela preocupação que nunca deixa desfranzir completamente a testa. É aquela compreensão de que não foi a melhor palavra, não foi o melhor momento, não foi. É aquela sensação de ter perdido alguma coisa, talvez o bonde, talvez eu mesma. Olhei pro lado errado do futuro e pensei que era um encontro. Era um abismo.
Estou cansada. Muito cansada. Cansada de tentar. De me esforçar. De não conseguir. Cansada de ser insuficiente. Cansada de não ser o bastante. Cansada de só me permitir ser feliz. Chegou o sofrer. A dor. Sou a dos olhos vermelhos. A do sorriso triste. A que não tem caminhos. Escrevo, letra a letra, para não esquecer: não sirvo, não presto, não consigo.
Eu, na palma da sua mão. Estava tudo certo, combinado: você ia partir meu coração. Nem marcamos encontro, nem decidimos hora, era o que podia ser: eu, você e a dor que viria. Nenhum lugar é nosso, você dizia e eu afiava a faca que você usaria pra me sangrar. Desde a primeira vez ficou acertado: nada. Nada não é nunca, eu brincava de roleta-russa e lhe pedia corpo e desejo. Eu só queria: tanto. Existem coisas que não podem ser ditas e coisas que não devem ser ditas, escrevo sempre o que não pode ser dito, deixo os deveres com você. Não pode ser dito o desejo correndo morno na pele, tudo se ruborizando e umedecendo. Como dizer um olhar feito sim e mais e agora?
Em lento preparo pra dor, eu deixei o querer se fazer presença. Me ocupe, era um soluço, um gemido, você todo em mim, eu sei, eu espero, eu convido, eu aceito. Não acreditamos em finais felizes, não acreditamos um no outro, não acreditamos em futuros, não acreditamos em nenhum deus que não soubesse dançar e nem nos deuses astronautas, não acreditamos em redenção, não acreditamos em nada e nos agarramos, náufragos, no corpo do outro, impossível âncora. Fui me preparando pra morrer, morrer em você, aquele prazer feito soluço, eu sabia que lhe escolher era me abandonar, eu sabia, eu queria, eu sabia. Eu me fazia em confissões e estremecimentos, colecionava relógios esperando a hora certa de ser sua e não ser mais nada. Você ia partir meu coração, não ia? Não me disse nada sobre arrancá-lo do peito, esvaziá-lo dos sonhos e perdê-lo entre serras, disse?
Mas eu ainda sei contar estrelas. Ainda sei fazer pintura a dedo com o sangue que verto. Ainda sei cantar baixinho. Ainda sei fazer panqueca. Ainda sei deixar o olhar se perder no mar como se fosse, ele todo, lágrima. Ainda sei pensar: amanhã, amanhã, amanhã e fazer de conta que sou Scarlett. Mas não sou.

http://borboletasnosolhos.blogspot.com.br

Isso - Chico César



Isso
Chico César


Isso que não ouso dizer o nome
Isso que dói quando você some
Isso que brilha quando você chega
Isso que não sossega, que me desprega de mim
Isso tem de ser assim...

Isso que carrego pelas ruas
Isso que me faz contar as luas
Isso que ofusca o sol
Isso que é você e sou sem fim
Isso tem de ser assim...

Poliamor

Por Vanessa Rodrigues*
Sexta-feira, 27 julho, 2012



(permitido até a menores de 18)
Sou todo um harém matriarcal. Poliândrica, poligâmica, heterossexual, homossexual. Poliamor, portanto, para simplificar. Sou uma democracia lato sensu neste tipo de relação. Porém, devo exercitar o mea culpa no seguinte: sou pouco tolerante com a superficialidade. É que relação, qualquer seja, tem que ter, na matemática do mínimo denominador comum, um bom papo, risada, observação participante e até um q.b. de discordância para agregar alguma coisa no outro. Seria um saco ficar concordando o tempo todo: sim, meu amor; desliga-você-não-você-você!
Logo, para mim, isto é termômetro de irascibilidade: frases-cliché, vaidades vãs, indiferenças. Me dá uma certa urticária. Na hora de responder, viro uma fofa-blasé. E ser fofa-blasé é um problema, porque há algo em nós que delata que, para não sermos totalmente desagradáveis, estamos meio que pisando palco com cadafalso. E se a vida é um grande palanque, sabemos, então nossa máscara é molde personalizado para essa-ou-aquela pessoa, que mais cedo ou mais tarde, há de desgastar.
Às vezes, me engano e uso a máscara transparente (deve ser da idade, porque depois do retorno de Saturno, dizem, viramos máquina da verdade, piii, dando xô em frete, exercitando frontalidade): dá para ver que minha voz com sorriso está com cara de quem tomou vinagre; que meu olho não pára de piscar tentando tirar cisco, quando tento ser agradável contrafeita; e que minha ansiedade disfarçada tem a mão tremente, tentando dar um jeito de sair correndo. Fico igual a bicho tentando falar, se o houver! É uma coisa esquisita! Fast-forward, então: meu filme é outro!
Há uns tempos tive que me assumir: sou poliândrica; e outras vezes, poligâmica. É, com orgulho e sem queixume
Feito o desabafo de divã de psicanalista, posso fazer associação livre daqui em diante. E a culpa é sempre ou dos gregos, ou dos latinos. Quem manda plantar a raiz da etimologia da Língua Portuguesa, para explicar nosso comportamento? Valha a verdade, então, para dar um gás nisto: há uns tempos tive que me assumir: sou poliândrica; e outras vezes, poligâmica. É, com orgulho e sem queixume. Dá até uma certa inveja, né?
Está dito: Πολυς (polys) = vários + Γαμος (gamos)= mulher; ou andros= homem.
Mas antes que venha a brigada de censura, explico: falo de LIVROS. Sim. Não consigo ler apenas um, ir até ao fim, sem me envolver com outro. O negócio (negar o ócio, claro) é o seguinte: tem sempre aquele livro de reserva na mesa-de-cabeceira para ler à noite; aquele, mais leve, para andar passeando nos transportes públicos e outro para a Santa Porcelana. Uma tríade, portanto. E dito assim, isto bem que poderia até dar uma Irmandade blockbuster: a Trilogia da Literatura Portátil, sem profanar a santa leitura. (Pensando bem, nem por isso!)
Se há lugares que nos inspiram para criar, deve ser legítimo ter lugares certos para determinados livros, ou pelo peso e densidade, certo hermetismo; ou até mesmo, por amor à capa delicada que não queremos por aí, maculada.

E não, eu não me confundo. Não há história que se cruze, a não ser depois, em meu entendimento, tentando encontrar um sofá confortável na sala-de-visitas de meu cérebro. Elas existem por si, nesse poliamor. Quer seja homem, mulher, ambos. Sou democrática (liberou geral); não tem essa de circuito privado. Se a fibra da prosa for para enrijecer o músculo da Língua, está tudo certo. Vou pegando daqui e dali, ao ritmo de meu cotidiano. Assim satisfazendo necessidades complementares (aquele é mais político, aquele mais cerebral, aquele mais histórico; aquele mais metaliterário): um autor recente, um autor clássico, e um técnico, que Jornalismo tem esta demanda diária para ficar antenado com as Terceiras Vagas da Vida, e descobrir que o meio, enfim, pode já não ser a mensagem, qual pele da cultura.
Sou, então, poliamor literário, com certo brilho no olho e batendo no peito com pundonor, vestindo a camiseta, venha quem vier me chamando de promíscua. Folhear as páginas com fulgor é minha convicção, enquanto pego várias caronas. Pode até parecer uma overdose de relacionamento (e eles entendem, não tem que usar máscara), mas, (e agora schhh, falem baixinho!!!) posso bem ter encontrado o elixir de longevidade (qual colagênio). É que pesquisa publicada em 2008 pela conceituada revista New Scientist atestava o seguinte: culturas poligâmicas vivem mais do que culturas monogâmicas. Enquanto essa é a verdade, provada cientificamente, ainda que daqui a alguns anos, séculos, minutos, venha a ser provado o contrário, posso atestar que vivi um pouco mais, pelo menos, através dos livros.


*Vanessa Rodrigues é jornalista independente. Nasceu em 1981, em Portugal. Viveu cinco anos em São Paulo, como correspondente da rádio portuguesa TSF e jornal Diário de Notícias, para quem cobriu a FLIP desde 2006. Atualmente colabora com a TSF, Revista (jornal Expresso) e Notícias Magazine.

Poema da Noite


Afirmam que a vida é breve - António Botto



Afirmam que a vida é breve,
Engano, -- a vida é comprida:
Cabe nela amor eterno
E ainda sobeja vida.



António Tomás Botto (Casal de Concavada, Abrantes, Portugal, 17 de agosto de 1897 - Rio de Janeiro, 16 de março de 1959) - Poeta e contista português, causou polêmica nos meios religiosos conservadores em Portugal quando publicou o livro Canções. Também foi amigo de Fernando Pessoa. Mudou para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, onde morreu atropelado.


http://oglobo.globo.com/pais/noblat/