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sábado, 20 de julho de 2013

França Teixeira encarnou os ficcionais paradoxos baianos





No início da década de 1960, a poetisa Lina Gadelha disse para um deslumbrado Sartre, recém-desembarcado na Cidade da Bahia, que o dendê simbolizava a alma de Salvador. É pouco provável que o ateu existencialista, sempre reticente para com as coisas invisíveis, tenha caído na culhuda oleaginosa da moça – até porque esta província lambuzada de exclusão nunca teve alma. Aliás, urbe alguma possui qualquer tipo de espírito – a não ser o de porco.

Mas derivo.

O fato é que, neste mesmo início da década 1960, estreava na rádio de Soterópolis um sujeito que conseguiu dialogar com a alma da capital baiana, independentemente de ela existir ou não. Antônio França Teixeira, eis o nome do cristo-exu, soube, como nenhum outro, captar a alma citadina, esta entidade etérea e intangível.

E o fez de modo absolutamente radical. Em apenas um bordão, ele abraçou todos os dialetos soteropolitanos, conseguindo criar uma saudação ao mesmo tempo anárquica e reverente. Ouçam: “É ferro na boneca, minha cara e nobre família baiana”.

(E a cara e nem tão nobre família baiana, testemunharia, algum tempo depois, “o ferro na boneca” ser escolhido como título do primeiro disco de estúdio de uma certa banda chamadaOs Novos Baianos).

Assim sempre foi França Teixeira: uma contradição ambulante. Conseguiu parecer anti-carlista ao mesmo tempo em que lançava um dos epítetos que mais agradariam a ACM: “O Pelé branco das construções”. E acabou arrumando uma sinecura no Tribunal de Contas do Estado exatamente pelas mãos de Waldir Pires, maior adversário político do Cabeça Branca.

PUTAQUEPARIU A MALEMOLÊNCIA!!!

Aliás, talvez tenha sido exatamente por conta destes insanos paradoxos que França Teixeira e a Bahia conseguiram se entrelaçar de forma inexorável. Afinal, o sobrenome desta terra é oximoro. É uma utopia de lugar, tristemente alegre, onde estúpidos são confundidos com gênios, retrógrados com revolucionários e viva o vice-versa.

E ninguém, como nosso anti-herói, foi tão pródigo em circular entre os extremos desta besta (e ainda bela) província. Inclusive, o refrão de sua campanha a prefeito na década de 80 pregava esta, digamos assim, totalizante elasticidade: “De Itapuã a Ribeira o voto é de França Teixeira”.

Porém, foi na área do Ludopédio que ele conseguiu ser mais baiano, com toda a beleza, perversidade e ousadia possíveis. Durante sua conservadora e vanguardista atuação, inovou, correu riscos e fez bobagens em doses cavalares.

Eis abaixo quatro exemplos, nos quais ele trafega da mais ampla e irrestrita irresponsabilidade até a galhofa pura e genuína.

1- No auge da ditadura militar, se é que ditadura tem auge, o indigitado teve o desplante de propagar o terror, inventando que a Fonte Nova, que seria reinaugurada, não suportaria a multidão.

No dia da reabertura do estádio, um refletor ou outro objeto não identificado pipocou e a velha Fonte foi o palco de uma das maiores tragédias do futebol brasileiro. (Esta triste história tem poucos relatos porque vivíamos sob a pesada farda de Médici, que, inclusive, estava no estádio. Até hoje não se sabe a quantidade exata de vítimas. O jornal A Tarde relatou na ocasião que “nem todos os casos atendidos pelo HPS foram registrados, em vista da balbúrdia reinante. Na porta do ambulatório do Hospital, soldados da Polícia Militar vedavam a passagem de jornalistas”).

2- O ex-preparador físico da seleção brasileira, Paulo Amaral, tentava implantar no Bahia um novo sistema, privilegiando a força física. Como não concordava, França, então, colocou no ar relinchos de cavalos afirmando que era o treinamento do Esquadrão de Aço. Antes do final do programa, o musculoso e careca treinador entrava por uma porta na emissora e o apresentador fugia por outra.

3- Romântico inveterado, França Teixeira defendia uma tese anti-europeia, meio que impedimentística. Ele entendia que, mesmo o maior craque, se tivesse atuando no exterior, não deveria jogar na seleção brasileira. Aliás, nem ser convocado. “Jogou fora, tá fora”, dizia, acrescentando que isso iria melhorar o nível do futebol brasileiro e contribuir para a diminuição das negociatas.

4- Apesar de se auto-proclamar torcedor do Ypiranga (time que só lhe dava alegria, pois “não treinava, não jogava e não perdia”), a verdade é que França Teixeira sempre torceu pelo Bahia, inclusive interferindo na administração do clube. Tal fato, porém, não impedia de armar sacanagens, como no dia em que inventou uma fictícia contratação de Pelé, contando com a participação do próprio Edson Arantes e do então presidente do Bahia Alfredo Saad na consecução da farsa. (Recentemente, em entrevista, França Teixeira afirmou que quem o ajudou nesta presepada foi o presidente Osório Vilas-Boas, mas se equivocou, pois nesta época Osório não comandava mais a agremiação).

Pouco importa. O fato é que o cidadão nunca sossegou, ao contrário dos hodiernos radialistas escrotos baianos (desculpem a redundância), que se acomodaram e se acostumaram a armar falsas polêmicas apenas para incrementarem o holerite. É óbvio que França também agiu pensando no contracheque, mas não somente. Era uma genuíno adepto do fuzuê dos 600 DEMÔNHOS.

Porém, baiano e paradoxal ao extremo, o homem que revolucionou os meios de comunicação da província, especialmente o rádio e a TV, acabou passando os últimos 20 anos numa repartição pública, como um simples burocrata. Simples, vírgula, pois mesmo na Corte de Contas, ele achava um jeito de polemizar, seja lendo os relatórios governamentais como se estivesse narrando uma partida de futebol ou usando uma démodé gravata borboleta, que ele classificava como vanguardista.

Enfim, o fato é que com a morte de França na última quinta-feira, dia 18, morre também uma parte da paradoxal alma da cidade, mesmo que ela nunca tenha existido.

A Bahia perde um pouco de sua ficção.

Franciel Cruz

P.S França Teixeira foi também pioneiro na nova linguagem da TV. Muito antes da Rede Globo, ele fez um programa chamado França Teixeira – Profissão Repórter. Porém, em entrevista ao jornalista Nelson Rocha na Tribuna da Bahia, ele conta que “A Globo patenteou o Profissão Repórter, e eu ganho o que Inês ganhou na roça”.

Na TV, França também criou a seguinte expressão que intimidava os entrevistados “Câmera nos olhos dele”. Um dia, ele mandou a câmera fixar nos olhos de Luís Melodia – e estava uma brasa, mora?


http://impedimento.org/franca-teixeira-encarnou-os-ficcionais-paradoxos-baianos/