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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

I Got Lost In His Arms - Terri Lyne Carrington

o que é ser mulher?

Simone de Beauvoir: o que é ser mulher?

Hoje é o aniversário de Simone de Beauvoir. Se estivesse viva, ela faria 104 anos. É dela uma das principais frases do movimento feminista: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” A mulher não tem um destino biológico, ela é formada dentro de uma cultura que define qual o seu papel no seio da sociedade. As mulheres, durante muito tempo, ficaram aprisionadas ao papel de mãe e esposa, sendo a outra opção o convento. Porém, a própria Simone rompe com esse destino feminino e faz de sua vida algo completamente diferente do esperado para uma mulher.
Simone de Beauvoir. Foto de Rex Features/Sipa Press
Nascida em uma família da alta burguesia francesa, Simone era a mais velha de duas filhas. Durante sua infância a família faliu e, por considerar que as filhas não conseguiriam bons casamentos, pois não havia dinheiro para um bom dote, George de Beauvoir se convenceu de que somente o sucesso acadêmico poderia tirar as filhas da pobreza. De fato, Simone de Beauvoir teve mais poder de escolha que muitas mulheres de sua época. A educação e o desenvolvimento acadêmico são até hoje maneiras de forjar mulheres mais independentes, que rompem com os padrões de sua época. Ela faz uma crítica aos valores burgueses nos quais foi criada no livro “Memórias de uma moça bem comportada”.
Simone de Beauvoir tinha 41 anos quando publicou “O Segundo Sexo”, em 1949. Já naquela época a obra levantou inúmeras polêmicas. Uma das principais acusações é que Simone ridicularizava os homens. Isso é uma acusação que muitos usam contra o feminismo. Porém, as pessoas parecem não querer compreender o que realmente se passa na vida das mulheres e como todo o poder está concentrado nas mãos dos homens. “O Segundo Sexo” não é uma fonte historiografica para conhecer a história da mulher desde a antiguidade. É uma obra de inspiração, fundamental para descortinar a maneira pela qual as mulheres são criadas justamente para serem menos que os homens. Você pode baixar “O Segundo Sexo” em .pdf no blog Livros Feministas.
Lendo algumas das críticas que foram feitas a “O Segundo Sexo”, muitas parecem absurdas, mas ainda lemos opiniões conservadoras e moralizantes em diversos cadernos de opinião da mídia brasileira, especialmente quando se trata da sexualidade feminina. Entre seus críticos estava François Mauriac, escritor francês, que em uma de suas enquetes no Figaro Littéraire perguntou: “Estaria a iniciação sexual da mulher no seu devido lugar no sumário de uma revista literária e filosófica séria?” A questão dividiu os intelectuais. Para muitos “O Segundo Sexo” é um “manual de egoísmo erótico,” recheado de “ousadias pornográficas”; não passa de “uma visão erótica do universo”, um manifesto de “egoísmo sexual.” Jean Kanapa insiste: “Mas sim, pornografia. Não a boa e saudável sacanagem, nem o erotismo picante e ligeiro, mas a baixa descrição licenciosa, a obscenidade que revolta o coração.” A polêmica mistura tudo. A contracepção e o aborto são ligados nas mesmas frases às neuroses, ao vício, à perversidade, e à homossexualidade. Segundo uma carta da enquete, “a literatura de hoje é uma literatura de esnobes, de neuróticos e de impotentes.” Claude Delmas deplora “a publicação por Simone de Beauvoir dessa enjoativa apologia da inversão sexual e do aborto.” Pierre de Boisdeffre em Liberté de l’ésprit assinala “o sucesso de O Segundo Sexo junto aos invertidos e excitados de todo tipo.” Leia mais em O Auê do Segundo Sexo de Sylvie Chaperon, publicado no Cadernos Pagu 12, de 1999.
Capa da edição brasileira de 2009 do livro O Segundo Sexo.
Nenhuma obra, literária ou acadêmica, de Simone de Beauvoir foi recebida com indiferença. Sua principal contribuição é sempre propor a discussão democrática e as rupturas das estruturas psíquicas, sociais e políticas. Por ser escrito por uma mulher e para mulheres, “O Segundo Sexo” levanta diversas questões, até mesmo no meio literário. Há muito tempo a literatura classificada como feminina é sinônimo de textos sem grande aprofundamento teórico. Além disso, não era comum tratar de assuntos como sexualidade, maternidade e identidades sexuais, mesmo na França do pós-guerra.
Em 2009, Fernanda Montenegro estreou a peça “Viver Sem Tempos Mortos”, baseada nas cartas autobiográficas de Simone de Beauvoir. A temporada de 2011 foi encerrada em dezembro, mas há a possibilidade da peça reestrear novamente no futuro. Em entrevista a Revista Bravo, Fernanda Montenegro respondeu algumas perguntas sobre sua relação com a obra de Beauvoir:
Qual o primeiro livro dela que você leu?
Foi O Segundo Sexo, que saiu em 1949 e se transformou num clássico da literatura feminista, sobretudo por apregoar que as mulheres não nascem mulheres, mas se tornam mulheres. Ou melhor: que as características associadas tradicionalmente à condição feminina derivam menos de imposições da natureza e mais de mitos disseminados pela cultura. O livro, portanto, colocava em xeque a maneira como os homens olhavam as mulheres e como as próprias mulheres se enxergavam. Tais ideias, avassaladoras, incendiaram os jovens de minha geração e nortearam as nossas discussões cotidianas. Falávamos daquilo em todo canto, nos identificávamos com aquelas análises. Simone, no fundo, organizou pensamentos e sensações que já circulavam entre nós. Contribuiu, assim, para mudar concretamente as nossas trajetórias.
De que modo alterou a sua?
Sou descendente de italianos e portugueses, um pessoal muito simples, muito batalhador, e me criei nos subúrbios cariocas. Desde cedo, conheci mulheres que trabalhavam. E reparei que, entre os operários, na briga pela sobrevivência, os melindres do feminino e as prepotências do masculino se diluíam. Era necessário tocar o barco, garantir o sustento da família sem dar bola para certos pudores burgueses. Nesse sentido, a pregação feminista de que as mulheres deviam ir à luta profissionalmente não me impressionou tanto. Um outro conceito me seduziu bem mais: o da liberdade. A noção de que tínhamos direito às nossas próprias vidas, de que poderíamos escolher o nosso rumo e de que a nossa sexualidade nos pertencia. Eis o ponto em que o livro de Simone me fisgou profundamente. Lembro-me de quando vi pela primeira vez a cena da bomba atômica explodindo. Ou de quando me mostraram as imagens dos campos de concentração nazistas. O impacto negativo que aquilo me causou foi parecido com o impacto positivo que O Segundo Sexo exerceu sobre mim. Garota, já suspeitava que não herdaria o legado de minha mãe e de minhas avós, que não caminharia à sombra masculina. O livro de Simone me trouxe os argumentos para levar a suspeita adiante. Continue lendo em A vida é um demorado adeus.
Justamente por ter uma lógica própria de se colocar no mundo, Simone decidiu escrever “O Segundo Sexo” ao perceber que nunca havia se perguntado: o que é ser mulher? Essa continua sendo uma pergunta atual, que deve ser feita por todas nós em algum momento da vida.

http://blogueirasfeministas.com/author/srta-bia/

All I really want is love - Lisa Ekdahl (With Henri Salvador)

Na Cama Com Simone

 


Hoje temos duas mulheres especiais fazendo a festa no nosso Clube. Nosso GUEST POST dessa segunda é da Biscate Convidada Srta. Bia, autora do Groselha News, moderadora e autora do Blogueiras Feministas. Divertida, antenada e lambateira tropical, a Srta. Bia pinta e borda no twitter. E como Biscate adora celebrações, nada mais apropriado que lembrar a aniversariante ilustre do dia: Simone de Beauvoir – que, aliás, não recusaria um brinde: tim-tim.
Na Cama Com Simone, por Srta. Bia
Em 1952, Simone de Beauvoir estava dando uns amassos com seu peguete, o escritor Nelson Algren. Os amassos evoluíram para um je t’aime moi non plus e no fim do dia Simone precisava de um banho. Simone tinha 44 anos e Nelson tinha um apartamento alugado sem chuveiro. A solução foi levá-la até a moradia do fotógrafo Art Shay, um amigo que tinha um chuveiro e uma câmera na mão, exatamente na hora em que Simone se arrumava no espelho.
Simone foi uma biscate intelectual, que nunca deixou de exprimir suas dúvidas e de conhecer profundamente seus desejos. Sabia que seu casamento racional com Sartre era eterno, mas seu corpo sempre precisou de novos sabores, que vinham ou não com o tempo, e permaneciam ou não com o momento. Na Chicago dos anos 50 lá estava ela, nua em um banheiro de alguém. Liberta e relaxada, decidindo como prender o cabelo.
Como seria bom se todos pudéssemos nos despir do conservadorismo e do medo de se entregar ao corpo. Um corpo que pulsa, está vivo e tem desejos, que sucumbe aos pormenores de uma fungada no cangote, que está pronto para decidir o que os lábios não precisam falar. Simone está despida de seus medos e pudores, pronta para arrancar mais um pêlo na sobrancelha, ou pronta para mais uma noite em meio a braços e pernas sedentos. A foto pode ter sido roubada, mas não havia nada a esconder. Há uma mulher viva, corpórea, e sensual. Uma mulher entregue a espontaneidade de sua liberdade.
A biscate não esconde por pudor, ela está inteira e transparente no momento em que joga o cabelo suado para trás depois de horas sambando. O sorriso transborda em cada gesto. Tirem quantas fotos quiserem, ela está estampada nos murais da vida, Aproveitando cada dia como uma dádiva. Um momento que escolheu viver, sem fechar portas para quem quiser compartilhar esse clique de intimidade.
Ela nasceu em 09 de janeiro de 1909. E em 1952, mantinha o ímpeto de se entregar a quem ela desejasse, sem receios, sem compromissos e sem pensar no que os outros dizer. Uma mulher que atravessou seu tempo, sem nunca perder l’ésprit de la biscatage.

A tua presença

MAR



A primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de
meninos. Nós tínhamos viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que e menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia idéia de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vasava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava ainda mais a imagem. Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.
Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito o mar! Era qualquer coisa de larga, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar...
Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer - como aquela caravela de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mão... Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava boa-noite... Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer - que ainda não sabe dizer. Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mar das festas, mar terrível daquela marte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangue... A primeira vez que sai sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulha de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água batia na minha cana e a corrente do “arrieiro" me puxava para fora, não gritei nem fiz gestas de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e oleoso, lambendo o batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a. vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homem...
Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam - um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar...

RUBEM BRAGA 
Julho, 1938

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Literatura

 

"Queremos tanto o Blue Jeans quanto a cultura islâmica”

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O romancista turco Orhan Pamuk reflete sobre as contradições que cada protagonista da Primavera Árabe enfrenta ao lutar pela democracia em países muçulmanos
por Marcelo Musa Cavallari

Minha literatura não é do tipo que se preocupa com o que acontece no próximo capítulo”, diz o escritor Orhan Pamuk. “O que importa não é o que vem em seguida, mas, sim, do que se trata a vida.” Aos 59 anos, com mais de 15 milhões de livros vendidos em cerca de 60 países, consagrado com o Nobel de Literatura de 2006, Pamuk continua vivendo na cidade em que nasceu: a Istambul turca. Meio Europa e meio Ásia, muçulmana e secular, meio Ocidente e meio Oriente Médio, ex-império e país emergente, a Turquia que o autor costuma retratar é o cenário para personagens à procura da própria identidade – uma busca que também move o romancista.
E é com os olhos de quem escreve sob o compromisso de “entender as pessoas, colocar-se no lugar delas, compreendê-las sem as julgar”, que Pamuk assistiu, pela TV, como quase todo mundo, à derrubada de regimes ditatoriais do norte da África, O fenômeno teve início há pouco mais de um ano, em dezembro de 2010, e logo recebeu o nome de Primavera Árabe. Para o escritor, o fundamental nesse evento eminentemente político é, mais uma vez, a busca da identidade – ou como acomodar tendências tradicionais e modernizantes no coração de cada habitante desses países de cultura islâmica que, agora, tentam abraçar a democracia.
De passagem por São Paulo, onde proferiu uma palestra e lançou o livro O Romancista Ingênuo e o Sentimental, compêndio de aulas ministradas na Universidade Harvard (Estados Unidos), Pamuk conversou com BRAVO!.
BRAVO!: Como você reagiu ao saber dos primeiros acontecimentos que dariam origem à Primavera Árabe?
Orhan Pamuk: Fiquei muitíssimo feliz, especialmente no dia em que (o presidente egípcio Hosni) Mubarak caiu. Quando todas as TVs internacionais mostraram a praça Tahrir, no Cairo, e a imensa alegria da multidão, havia quase lágrimas nos meus olhos. Em primeiro lugar, por ver que os árabes estavam retomando sua dignidade. Depois, por algo que afeta todo o Islã. Os povos árabe, turco e persa são povos diferentes, mas estão entre as principais nações da cultura islâmica. Mesmo sendo uma pessoa secular, fiquei bem contente em ver destruído o preconceito orientalista de que os povos islâmicos são obedientes, de que cultuam a autoridade. Pena que, mais tarde, tive algumas suspeitas em relação ao movimento. Já vi tanta coisa acontecer do mesmo jeito na Turquia ao longo dos últimos 50 anos que comecei a identificar certos problemas no Egito também.
Que problemas?
Depois da derrocada de Mubarak, a elite governante egípcia está usando a mesma chantagem junto ao Ocidente e às classes médias secularizadas que o próprio Mubarak usou: “Por favor, apoiem-me ao governar este país por meio do totalitarismo. Do contrário, ele cairá no inferno e nas mãos do Islã político”.
Mas os partidos islâmicos são fortes e se revelaram importantes na Primavera Árabe. Não há realmente o risco de que assumam o poder?
Talvez. Esse é um dilema ético de uma situação política. Nós queremos a democracia porque ela é a escolha ética, e não porque legitima o Ocidente ou porque é boa para a economia. A democracia é para as pessoas, deve estar a serviço das pessoas. Não é algo para mostrar ao Ocidente. Os grupos políticos islâmicos têm uma conexão com o povo, e eles sabem prestar serviços. Essa é uma das razões de estarem em ação na Primavera Árabe. A segunda razão é que eles são mártires, são reprimidos. Por isso, podem fazer pose, se apresentar como vítimas e, assim, despertar a simpatia das pessoas. O pior dessa situação é que intelectuais liberais, pró-Ocidente, semimodernos, seculares, ficam confusos. Vi tanto disso na Turquia... Na esquerda turca, alguns ainda põem a esperança em golpes militares, em prender pessoas para que a nação seja secular. Outros, e estou ao lado desses, avaliam que se deve criticar ambos os lados: o governo (atualmente em mãos de um partido islâmico), por não ser democrático o bastante, e os militares, que posam de defensores do secularismo, mas agem de maneira brutal e radicalmente nacionalista.
Nos últimos anos, o Islã político ganhou força na Turquia, ainda que adaptado à democracia. Você acha isso possível no Egito?
Parece-me fútil fazer previsões. Há tantas variações de sombras e cores interessantes... No fim das contas, é preciso ver como os dilemas de que falei se refletem na mentalidade de cada um. Eu exploro e dramatizo essa tensão no meu romance Neve, em que um personagem tem os dois lados: ele faz parte da nação, de seus valores, não quer parecer um agente ocidental, mas também defende a democracia, os direitos das mulheres, a liberdade de expressão e o respeito pela diversidade, o que aparenta estar em contradição política com a comunidade islâmica conservadora. Devemos encarar isso não como dois partidos da Primavera Árabe, mas como dois sentimentos no espírito de uma única pessoa. No fundo, todos nós queremos modernidade, sofás confortáveis, água quente encanada e blue jeans – à semelhança da juventude soviética, que queria blue jeans. No entanto, também gostamos de nossas casas e de roupas antigas. Queremos abraçar o passado cultural de nossa nação. São desejos contraditórios, que cada um de nós carrega no coração.
Se a democracia, como você diz, é uma escolha ética e a religião é, para muita gente, a principal fonte de escolhas éticas, pode-se considerar que o Islã seja uma fonte para a democracia?
Sim. Muitas pessoas começam a entender e discutir o que chamamos de shura (“consulta”, em árabe, um conceito presente no Corão que aconselha governantes islâmicos a ouvir aqueles que serão afetados por suas decisões). Tornar o Islã compatível com a democracia é também uma questão de interpretação. A interpretação torna qualquer coisa possível. Não sou uma pessoa religiosa, mas prefiro argumentar a favor da democracia para um país islâmico por meio da shura, ou de qualquer outro mecanismo que se encontre na cultura clássica. Melhor isso do que Bush nos mandando aviões e bombas sob o pretexto de que trarão a democracia.
O que é de fato real na maneira como o mundo está vendo a Primavera Árabe e a celebrando?
Há muita coisa com que se pode ficar feliz. Os ditadores caíram e o mais importante é que, agora, o povo está claramente no jogo. Isso é o suficiente por um ano. Vamos ver o que acontece daqui para a frente.