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sábado, 21 de abril de 2012

Após a terceira dose - bar é poesia


Tango

(luiz alfredo motta fontana)



Os dois em moveres,

ela flutua

ele moldura

ela leve

ele suave

ela em meneios

ele atento

ela quase solta

ele contido

ela serpente

ele caule

ela floresce

ele aquece

eles...

momentos

O Tango...

permanece

Sabiá - Elis Regina

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha


Pátria Minha

Vinicius de Moraes


A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes."



Texto extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa",

Linha do Equador - Djavan



Linha do Equador - Djavan - Coisa de Acender

Luz das estrelas
Laço do infinito
Gosto tanto dela assim
Rosa amarela
Voz de todo grito
Gosto tanto dela assim

Esse imenso, desmedido amor
Vai além de seja o que for
Vai além de onde eu vou
Do que sou, minha dor
Minha linha do Equador
Esse imenso , desmedido amor
Vai além que seja o que for
Passa mais além do

Céu de Brasília
Traço do arquiteto
Gosto tanto dela assim
Gosto de filha música de preto
Gosto tanto dela assim

Essa desmesura de paixão
É loucura de coração
Minha foz do Iguaçu
Pólo sul, meu azul
Luz do sentimento nu

Esse imenso, desmedido amor
Vai além que seja o que for
Vai além de onde eu vou
Do que sou, minha dor
Minha linha do equador

Mas é doce morrer nesse mar de lembrar
E nunca esquecer
Se eu tivesse mais alma pra dar
Eu daria, isso pra mim é viver.

Céu de Brasilia - Toninho Horta - Fernando Brant

Aquarela - Toquinho



"De uma América a outra
Eu consigo passar num segundo
Giro um simples compasso
... E num círculo eu faço o mundo...

Um menino caminha
E caminhando chega no muro
E ali logo em frente
A esperar pela gente
O futuro está..."

Brasília by Google

Viram a homenagem ao aniversário de Brasília, feita pelo Google, com desenhos de Niemeyer?

Memória

Desenho de Carlos Lyra

    Amar o perdido
    deixa confundido
    este coração.

    Nada pode o olvido
    contra o sem sentido
    apelo do Não.

    As coisas tangíveis
    tornam-se insensíveis
    à palma da mão

    Mas as coisas findas
    muito mais que lindas,
    essas ficarão.


    Drummond

O Amigo da Onça

Mais Amigo da Onça
O Amigo da Onça:
... E como já vi que estou no meio de pessoas evoluídas... UP... vou contar uma do Bocage.

Brasília

O futuro já tem capital: Brasília
O Brasil, com a sua nova Capital, deixa para trás o próprio tempo. Brasília saltou por cima do Século XX. É um poema com a marca da imortalidade. É de cimento e de sonho. Eis o que traduz a cobertura dos repórteres Ubiratan de Lemos, Audálio Dantas, Luiz Carlos Barreto, José Medeiros, Ronaldo Moraes, Paulo Namorado, Geraldo Viola, Rubens Américo e Lisl Steiner.
Brasília é a nova Capital
A CHAVE da Cidade está nas mãos do Presidente. O colosso, que é Brasília, foi obra de um esfôrço quase sôbre-humano. Tudo foi construído dentro de três anos de trabalho duro e constante. O mundo inteiro voltou suas vistas para o que, no dia 20 de abril, acontecia em Brasília: uma cidade para abrigar 500 mil habitantes se inaugurava e um sonho de mais de cem anos se tornava em realidade.
A DOIS de outubro de 1956 o Presidente Juscelino Kubitschek pisou o planalto pela vez primeira. Só havia no cerrado sulcos recentes. Meia dúzia de veredas de serviço, insignificantes tatuagens vermelhas no corpo crestado do chapadão. O Presidente posava de visionário. Descreveu uma cidade encantada. Aqui um lago, lá um palácio transparente, além os 3 Podêres da República. O vidente Juscelino não viu o sorriso irônico do pequeno auditório que testemunhou êsse quadro.
Em março de 57 um trator abriu espaço para as primeiras barracas. E começaram os alicerces. A primeira estaca da Praça dos 3 Podêres foi fincada a 4 de janeiro de 58. Pois às 9.30 h do dia 21 de abril de 60, no Salão de Despachos do Palácio do Planalto, cercado por seus Ministros e Embaixadores Especiais, JK teve estas palavras curtas:
- Declaro inaugurada a cidade de Brasília, Capital dos Estados Unidos do Brasil!

NO mesmo instante, o Poder Legislativo e Judiciário confirmaram a inauguração do jovem DF, que nasceu num dia de sol forte, e céu azul, a mais de 1.200 metros. Os Ministros do Supremo, com discursos do Presidente Barros Barreto e de Nelson Hungria, destacaram a tranqüilidade do planalto, como propícia ao exercício de uma Justiça de profundidade, além da dinâmica de uma metrópole eclética. E houve aplausos no palácio branco do Supremo que, como os outros, parece levitar na área dos 3 Podêres. No plenário da Câmara os congressistas, sob a arquitetura ano 2 mil de Niemeyer, também instalaram o poder que legisla sôbre os dois outros. E com vozes também quentes.
Ficaram para trás as descrenças. A melopéia do pessimismo caboclo. Quase 3 anos de grita contra o poema-cidade do nosso oeste. São hoje peça de museu até mesmo os protestos bem intencionados. Brasília está aí - como realidade e mensagem. As suas orquídeas de cimento armado podem ser apalpadas pelo olhar mais desfocado. O seu jardim de concreto e vidro, que dá à cidade impressão de chapa de Raios X, também é imoderado impulso para a conquista de claros econômicos de mais de 6 milhões de Km2 de Brasil. Ela é a cidade síntese da fala presidencial, a fôrça aglutinadora de um povo que marcou encontro com o futuro, nos longes do Brasil Central. Não discriminará Estados, porque nivelará a dinâmica do progresso, entre irmãos ricos e pobres. Mas se lhe cabe essa função histórica, levando os marcos econômicos aos limites dos políticos, não é menos verdade que criou nova mentalidade para o País. O Presidente fêz mais que construir Brasília, descobriu as energias do seu povo. Um povo que se ignorava. E que desperta com Brasília para iluminar o mundo.
O Presidente havia empenhado a palavra: Brasília seria DF no dia 21 de abril. Teria de ser acelerado o galope da sua construção. Brasília, que nunca parou, teria de bater um recorde de velocidade sôbre si mesma. Fizeram-se mais rápidos os seus 60 mil candangos. As abelhas do planalto dobraram os turnos de trabalho. Foi uma sinfonia de martelos, picaretas, pás, com background de poeira. E máquinas enormes que abriam e asfaltavam quilômetros num só dia. Havia um misto de suor e sorrisos eufóricos. Suor de candangos trepados em andaimes e sorrisos de milhares de visitantes, uns 250 mil, segundo estimativa (de ôlho) da NOVACAP. Dir-se-ia uma imensa quermesse: gente exclamando em todos os sotaques nacionais. Então, no dia 20 a festa engrossou. Mais de mil carros, com placas de todos os Estados, cruzaram, por dia, a fronteira da caçula da Federação.
Em pouco, cêrca de 20 mil ou mais viaturas rodavam confusamente nos 300 km asfaltados de Brasília. Nos 26 km de eixo a eixo da cidade, mil engenheiros (de 25 a 30 anos de idade) comandavam a corrida para o 21 de abril. Só os Institutos, em 11 meses, construíram perto de 3 mil apartamentos de luxo, sem falar nos menores, em fase de acabamento. A instalação de micro-ondas foi resumida numa semana de trabalho. A Tv Brasília (associada) fêz-se em 90 dias: instalação de 400 operários, construção (por terminar) dos estúdios e montagem de tôrres retransmissoras, no eixo Brasília - Belo Horizonte - Rio e São Paulo. Mais de 4 toneladas de material técnico, inclusive video-tape, dispararam via área dos EE.UU. para Brasília, em menos de uma semana. Vejam o balanço de trabalho do Deputado Neiva Moreira, que superintendeu a mudança do Congresso. Pois, só num dia, êle alojou 240 deputados, instalando mais de mil mudanças, incluindo a de funcionários federais. Também num só dia, o Deputado Neiva Moreira comprou e instalou 600 camas. Além disso, providenciou 100 toneladas de comida. E ainda havia 4 aviões de prontidão, no Rio, para abastecer Brasília, no caso de necessidade. Só uma firma comercial (como tantas outras) vendeu 100 mil lanches acondicionados em plástico. Conteúdo: sanduíches, maçã, bombom e refrigerante. Tudo por 120 cruzeiros. Os bares inflacionaram os preços. Um sanduíche de mortadela custava 70 cruzeiros. E 225, dois ovos com arroz, com espera mínima de duas horas. As cantinas dos Institutos foram incorporadas à rede de alimentação, com preços razoáveis.
Com o seu lago de 62 km de linhas divisórias, seu recorde mundial de terraplenagem e seu bloco de 17 viadutos (a maior obra do mundo em concreto protendido), Brasília marcha para os seus últimos retoques até setembro próximo, Ficará, pronta, até a última vírgula do plano-pilôto de Lúcio Costa e da mensagem de Niemeyer, precisamente a 12 de setembro, quando o Presidente Juscelino fará aniversário. E como é o próprio Presidente quem o afirma, é claro que não cabe dúvidas.
Brasília, que tem clima saudável, mais mínimas que máximas, depende muito da cidade livre, cuja ficha são 13 bilhões de cruzeiros em víveres estocados e um movimento mensal da ordem de 800 milhões. Mas o debutante DF, que já custou 26 bilhões e que é autofinanciável (observe-se a supervalorização dos terrenos), terá, nos próximos dois anos, absolutas condições de vida. Segue-se um quadro de suas atuais condições, de parceria com a cidade livre. Brasília tem ginásio para 1.200 alunos, escolas primárias além de suas necessidades, colégios de irmãs dominicanas, clubes de bridge, 2 lavanderias, 6 cabeleireiros, um massagista, 30 farmácias, 35 agências de banco, 5 agências de automóveis, 15 restaurantes, 50 sapatarias, 2 mercados, 50 médicos, 20 dentistas, 10 piscinas, 5 hotéis, 6 buates, vários ribeirões, uma cachoeira, 17 times de futebol - e, por que não? - o Doutor Ralph, que faz cirurgia plástica. Vinte e seis troncos telefônicos (microondas) comunicam a cidade com o mundo. E apesar de seu ritmo de 24 horas por dia de trabalho, Brasília perdeu um recorde: o de acidentes de trabalho. Sòmente 944 casos simples, com um fatal, para a maior concentração obreira do mundo de 1960! E mais duas palavrinhas sôbre o que chamaram de operação-toillete. 3 mil operários limpando a cidade, em 3 dias. Maratona de vassouras sem política, mas com fartura de poeira. E vamos concluir esta minuta, uma página da enciclopédia de Brasília, com um desmentido. Nenhum deputado, ou senador, ou mesmo jornalistas, dormiu na fôlha de jornal do samba. Os apartamentos e casas de conjunto serviram a todos, embora sem excelentes condições. O que devia predominar era o espírito pioneiro. Um impulso enxuto de patriotismo. Uma contribuição de sacrifício.

Rio, perdoa o ingrato - David Nasser

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DOU uma volta pelo Rio, agora que deixou de ser capital. Quero ver a diferença. Começo pelo Palácio Guanabara, vindo da Zona Sul. Naquela sacada, há muitos anos, um gaúcho teve a vida à mercê de um tenente invasor. O gaúcho era Vargas. O tenente, Severo Fournier. Poderia ter mudado o curso da História. Não o fêz, porque o gaúcho se mostrou corajoso. Saio do Palácio e cruzo a rua no ponto onde João Alberto teve casa. Tipo invulgar, aquêle. Quando falava, todo mundo virava auditório. Atravessou a vida brasileira em vinte e cinco anos demorados, marcando a sua presença em cada revolução, em cada aventura. Onde se mostrou mais esplêndido foi na aventura da morte. Estava em Genebra, a última vez em que o vi, e falava do Rio como de uma mulher bonita, de que não tivesse mágoa nem saudade. Aqui havia amado, vencido, e conhecera belos momentos, antes de sofrer marcas inapagáveis. Falava de Goes Monteiro, um general que muitos de vocês, guanabarinos, já esqueceram. Um general político, politizado, politizante, que guerreara os paulistas em 32, nas margens do Itararé, se é que Itararé era rio mesmo. Num prédio velho da Rua Gustavo Sampaio morava Chico Campos, a quem os estudantes daquela época apelidaram de Chico Ciência. Mineirão de óculos. Senhor de respeitável cultura jurídica. Seu vizinho, jovem pianista, também de aros de tartaruga, também mineiro, se chamava Ari Barroso. Do outro lado da rua morava por acaso - só por acaso os cariocas moram no Rio - um carioca de nome Francisco Alves. Ari Barroso ia às vêzes à sala de Chico Alves e o acompanhava ao piano, ensaiando, enquanto da varanda do lado, Chico Campos os espiava, sem saber que estava espiando, musicalmente, a história desta cidade. Havia outro bangalô, mais adiante, na mesma rua, onde morava um casal tranqüilo. Ela, Dona Santinha. Êle, Eurico Dutra, ou simplesmente, o Gaspar. Na manhã das eleições presidenciais, encontrei-o dando milho às galinhas, homem em paz com a vida. Venceu as eleições contra o Brigadeiro. O Brigadeiro era o que se pode chamar de cinzento, sombrio, fechado como o aeroporto de S. Paulo em dia de chuva. Morava no Flamengo. No Leblon, entretanto, morava Cristiano, o bom Cristiano Machado, irmão do Aníbal e de Lúcia. Fizeram maldade com o puríssimo Cristiano, acenando-lhe com uma impossível Presidência da República. O honesto mineiro, que estava pagando mensalmente o apartamento do Leblon ao Instituto dos Comerciários, atrapalhou-se todo, deixou-se embalar com o sonho durante meses.
MAIS experiente, o General Canrobert morava do outro lado da cidade, na Zona Norte, quase no Méier, precisamente na Bôca do Mato. Quiseram torrá-lo com a candidatura à Presidência, mas percebeu o jôgo. Era homem direito e patriota. Foi o primeiro a me falar de Lott, que naquele tempo todos conheciam por Duffles. - Lá em S. Paulo - disse-me Canrobert - o Duffles opinou contra a intervenção. - Duffles? - indaguei. - Duffles com um F ou dois FF?
PELAS mesmas bandas morava, por acaso, um carioca. Chamava-se Orestes Barbosa. Chama-se ainda, graças a Deus, pois está vivo. Só bastante míope. Vive na Ilha de Paquetá e ainda faz versos, mas ninguém quer musicá-los, porque são lindos.
VINDO pela Tijuca, encontramos a casa do General Etchegoyen, um Chefe de Polícia que mandou fechar a zona, prender os bicheiros e demitir os venais. Nunca vi homem dar tanto murro em faca de ponta. Morreu naturalmente, pobre e esquecido. Também na Tijuca. Lá onde vive até hoje êsse boa praça que é o Peixoto de Castro. Aos setenta anos, mandou fazer uma piscina nos fundos de casa. Não o conhecia, mas tôdas as tardes, ao voltar do trabalho, eu passava pelo casarão de muro baixo e aberto, e perguntava a quem estivesse no jardim: - Como vai o Peixoto? - Invàrialvelmente, o homem respondia: Vai bem. Um dia, o substituto respondeu: - Vou bem.
SUBO pelos flancos de Santa Teresa, o único morro do Rio que não tem samba, e não posso esquecer a figura de Oswaldo Aranha, num velho solar, rodeado de amigos, e falando a um môço que começava no jornalismo, com a mesma atenção que daria a Drew Pearson quinze anos depois. Essa esplêndida casa seria ocupada depois pelo Barreto Pinto. O mesmo Barreto Pinto que iríamos encontrar, mais tarde, em trajes de veraneio, naquela mesma Rua Gustavo Sampaio, do Dutra, do Chico Campos, do Chico Alves, do Ari. Uma rua de saudade.
VENHO pela Urca onde estão hoje em dia os estúdios do Canal 6, e lembro o Cassino, um cassino bipartido, pois passava uma avenida no meio. Na entrada, pareço estar vendo um homem magro e trigueiro, Joaquim Rolla. Em Minas fôra tropeiro. Levara mulas pela serra acima, trouxera mulas pela serra abaixo. Aqui, na Urca, arrancava com tôda a dignidade as rendas de outras mulas, fazendo melhor redistribuição de riquezas. Para isso, organizava shows monumentais. Lucienne Boyer, Pedro Vargas, Carmen Miranda e, nascendo profissionalmente, Grande Otelo, Linda Batista, Emilinha. Um falso maestro regia a orquestra: Carlos Machado. Vinha de Paris, dos braços de Mistinguette, e ninguém imaginava a sua carreira fabulosa.
DEPOIS, a guerra. O Rio hospedando, abrindo os braços, recolhendo náufragos da catástrofe, sem se importar com a origem, a raça, a condição social. Um príncipe polonês, outro romeno, um carpinteiro francês. Do navio desce um homem gordo e estranho. Seu nome é Bernanos. Noutro dia, desembarcam dois jovens franceses: Jean Manzon e Pierre Daninos. Manzon traz uma carta de Alberto Cavalcanti, carioca exilado em Londres, para Lourival Fontes, sergipano. A guerra passa. Nova gente começa a aparecer. A estrêla, a velha estrêla de Valadares brilha sempre. Êle traz pela mão um môço deputado, de muito futuro. Seu nome é Juscelino Kubitschek de Oliveira.
FIGURAS antigas se misturam com figuras recentes, lá dentro. Flôres da Cunha parece relíquia. Mas, quando fala, impõe silêncio e respeito. O potiguar Café Filho é o deputado mais trabalhador: apresenta um projeto por dia. Desponta um novo sol, Carlos Lacerda. Na Presidência, ainda Gétulio. Já não há mais cassinos. Dutra fechou. Surgem rótulos novos para a política nacional. Jango, Jânio, Armando Falcão e Vieira de Mello. De vez em quando, emergem dos sarcófagos os fantasmas de Capanema, Mangabeira, Mello Franco. O Sr. Adhemar de Barros visita a cidade, mas todos percebem ressentimento quando fala no figurino da época, Jânio Quadros. Logo aparece Ferrari com a legenda das mãos limpas. Os Brizola, os Eloy Dutra, os Silveira, os Jurema passam a fazer história e a cidade olha os Mendes de Moraes, Ruy Carneiro, Filinto Müller, Capanema, Bias Fortes, Gilberto Marinho, como gente da Idade Média.
NISTO, surge Brasília. De repente, cresce a possibilidade de o Rio de Janeiro deixar de ser a capital, o centro nervoso de uma República. Brasília é estruturada. Não importa, agora, discutir como. Passou o tempo em que podia ser discutida. Vem o dia. A mudança. O Rio, nesta manhã, deixou de ser a capital brasileira.
O CARIOCA, que é o objeto mais difícil de ser encontrado nesta cidade, ou mesmo o forasteiro que aqui chegou, aqui mora e aqui fica, não sabe exatamente o que acontecerá, agora, depois da mudança. Fica à espera, como quem espera o dilúvio ou o eclipse. Não consola a idéia de que o corpo aqui ficará, enquanto a cabeça irá para Brasília. Apenas quer saber como se portará o Rio, depois que a Côrte se transferir realmente para longe.
O DIA amanhece igual. O Rio também. O Distrito Federal vira Estado da Guanabara, o Prefeito passa a ser Governador, o Chefe de Polícia é Secretário de Segurança. Alguma confusão a princípio, muito natural, numa cidade que se enviúva de repente. Os jornais não mudam de fisionomia, mas passam a falar de certas pessoas como de gente que está longe. Faço a minha ronda de saudade. O Palácio Tiradentes está no mesmo lugar, do mesmo jeito. Que farão do Palácio Tiradentes? E do Senado, no fim da Avenida? Espio aquêle monstro que é o Palácio da Fazenda. De que servirá, depois que todo o Ministério se transferir realmente para Brasília? Terei saudade do Sebastião? E o Ministério da Guerra, o Palácio da Guerra, que acontecerá ao edifício comprido, depois da mudança? O Catete, já se sabe, vira museu. O Ministério do Trabalho, o da Educação que Portinari ilustrou como um livro de azulejos? Qual será o destino disso tudo? Quem irá ocupar o austero Supremo Tribunal? Haverá gente para ocupar o Ministério da Marinha?

GANHAMOS todos êsses prédios Ganhamos a liberdade de ser município sem os ônus de Capital da República. Somos ao mesmo tempo cidade, município e capital de município. Um pedacinho de terra, feliz, do Joá a Santa Cruz. Ficamos com o nosso Corpo de Bombeiros valente e mal pago, com a nossa policiazinha mambembe viajando de bonde, com a nossa falta de água, com a nossa falta de telefones, com as nossas enchentes. Mas os nossos problemas são, de agora em diante, inteiramente nossos. Não precisamos transferi-los ao Arquiprefeito, que era, nesta cidade, o Presidente da República. As levas de nordestinos, famintos, explorados, irão para Brasília, a nova meca, onde há trabalho. Aqui haverá apenas paz de criança dormindo, como diria Dolores. Não mais os Itas, os trens da Central, os aviões desembarcando aventureiros em busca de empregos. No lugar onde se espremia uma cidade-pardieiro, uma espécie de metrópole-cortiço, surge uma boa casa, de varanda para o mar. Rachel pode voltar à Ilha, apesar da ponte, Pongetti voltará a passear de madrugada pelas ruas da Lapa, ouvindo trechos de conversa, pedaços de vida, que cantará em prosa, como o poeta da cidade, onde Castro Alves não mais desembarcará. Nem Gonçalves Dias virá do Maranhão. O caminho é Brasília. Vão todos para Brasília. Perco um amigo, Geraldo Carneiro.

OBRIGADO, Juscelino, por fazer disto uma cidade.
O RIO os viu partir com tristeza. Eram alegres paus-de-arara que haviam chegado, trazidos pela ambição e aqui se tornaram poetas famosos, funcionários de categoria, tabeliões, médicos ilustres e até Ministros de Estado. Eram mineiros, mineirões e mineirinhos, todos felizes na nova dinastia. Eram paulistas que haviam subido aos melhores cargos. Ou sulistas que perderam o sotaque, os hábitos, na cidade desprendida e hospitaleira. O Rio os viu partir com emoção. Nesses dois séculos de capital, ninguém se sentira estrangeiro dentro das fronteiras invisíveis desta cidade amiga, a menos bairrista, a menos apaixonada, a mais brasileira do Brasil. Tão senhora de si, que nada lhe restando para dar, na hora em que a despojavam de tudo, transformava em cidadãos cariocas aquêles que se despediam. Como aquela história da árvore que perfuma o machado do lenhador. O Rio, amante, velha, enrugada, beijava as mãos do senhor que a trocava pelo amor mais môço, pela nova aventura de outono, pela Brasília mulata.
NESTA manhã chuvosa, quase fria, neste dia cinzento, o Rio deixa de ser capital do Brasil, mas não se sente infeliz por isso. Que imaginam vocês da responsabilidade, da utilidade ou da necessidade de uma beleza como esta, plantada na orla marítima, inundada de sol, feliz com os seus defeitos, qual a vantagem de ser capital política e administrativa? Acenaram-nos o consôlo de que, por muitos séculos, o centro literário, musical, artístico, não sairá daqui. Na verdade, tais condições não se improvisam, não se constroem. Até isso, entretanto, os forasteiros poderiam ter levado. Nesses duzentos anos, não temos feito outra coisa, nós, os ingratos que chegamos ao Rio, à velha Côrte, senão levá-la aos poucos, senão mudá-la aos poucos.
DE qualquer forma, obrigado, Juscelino, por fazer disto uma cidade. Com a sua Brasília, fêz do Rio uma cidade autônoma, habitável e mais vazia, embora sem o encanto de sua presença. Nós, os ingratos, nem de longe poderíamos imaginar como é bom viver longe dos políticos, das confusões, de todo êsse aglomerado humano que faz da Côrte uma cidade hostil, atravancada, sem nenhum atrativo. Ninguém podia imaginar que de repente voltássemos, sem sair daqui, a uma ilha de paz, de sol e de perdão. Obrigado, Juscelino, por não te haveres esquecido de nossas aflições na hora de nossa morte como capital, deixando-nos, como herança êsse mineirinho simpático e promissor, êsse filhote de Juscelino, que é o jovem Sette Câmara, presença imaterial de Juscelino na solução de nossos problemas deixados em meio. Obrigado, Juscelino, por haveres trocado está cidade por uma paixão recente. O Rio te agradece por Brasília, a noiva que preferiste a um velho amor.




O PIF-PAF



Era uma vez uma dama gentil e senil que tinha um gato siamês. Gato siamês! Gato de raça, de bom-tom, de filiação, de ânimo cristão. Lindo gato, gato terno, amigo, pertencente a uma classe quase extinta de antigos deuses egípcios. Êste gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano. Mas falar não falava. E sua dona, triste, todo dia passava uma ou duas horas repetindo sílabas e palavras para êle, na esperança de que um dia aquela inteligência que via em seu olhar explodisse em sons compreensivos e claros. Mas, nada!

A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, prêso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era sòmente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo muito mais do que devia! Um papagaio que falava pelas tripas do Judas. Curiosa natureza, pensava a mulher, que fazia um gato quase humano, sem fala, e um papagaio cretino mas parlapatão. E quanto mais meditava mais tempo gastava com o gato no colo, tentando métodos, repetindo sílabas, redobrando cuidados, para ver se conseguia que seu miado virasse fala.
Exatamente no dia 16 de maio de 1958 foi que teve a idéia genial. Quando a idéia iluminou seu cérebro, veio logo acompanhada da crítica, autocrítica: Mas, como não ocorreu isso antes perguntou ela para si própria, muito gentil e senil como sempre, mas agora também autopunitiva. Como não me ocorreu isso antes? O papagaio viu o brilho da dona o seu (dêle) terrível destino e tentou escapar, mas estava prêso. Foi morto, depenado, e cozinhado em menos de uma hora. Pois o raciocínio da mulher era lógico e científico: se desse ao gato o papagaio como alimentação, não era evidente que o gato começaria a falar? Não era? O gato, a princípio, não quis comer o companheiro. Temendo ver fracassado o seu experimento científico, a dama gentil e senil procurou forçá-lo. Não conseguindo que o gato comesse o papagaio, bateu-lhe mesmo - horror! - pela primeira vez. Mas o gato se recusou. Duas horas depois, porém, vencido pela fome, aproximou-se do prato e engoliu o papagaio todo. Imediatamente subiu-lhe uma ânsia do estômago, êle olhou para a dona e, enquanto esta chorava de alegria, começou a gritar (num tom meio currupaco, meio miau-aua-au (mas perfeitamente compreensível):
- Madame, foge pelo amor de Deus! Foge, madame, que o prédio vai cair. Corre madame, que o prédio vai cair!
A mulher, tremendo de comoção e de alegria, chorando e rindo, pôs-se a gritar por sua vez: - Vejam, vejam, meu gatinho fala! Milagre! Milagre! Fala o meu gatinho!
Mas o gato, fugindo ao seu abraço, saltou para a janela e gritou de novo:
- Foge, madame, que o prédio vai cair! Madame, foge! - e pulou para a rua.
Nesse momento, com um estrondo monstruoso, o prédio inteiro veio abaixo, sepultando a dama gentil e senil em meio aos seus escombros.
O gato, escondido melancòlicamente num terreno baldio, ficou vendo o tumulto diante do desastre e comentou apenas, com um gato mais pobre que passava:
Veja só que cretina. Passou a vida inteira para fazer eu falar e no momento em que eu falei não me prestou a mínima atenção.
MORAL: - O mal do artista é não acreditar na própria criação.


http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/brasilia.htm