DOU uma volta
pelo Rio, agora que deixou de ser capital. Quero ver a diferença. Começo pelo
Palácio Guanabara, vindo da Zona Sul. Naquela sacada, há muitos anos, um gaúcho
teve a vida à mercê de um tenente invasor. O gaúcho era Vargas. O tenente,
Severo Fournier. Poderia ter mudado o curso da História. Não o fêz, porque o
gaúcho se mostrou corajoso. Saio do Palácio e cruzo a rua no ponto onde João
Alberto teve casa. Tipo invulgar, aquêle. Quando falava, todo mundo virava
auditório. Atravessou a vida brasileira em vinte e cinco anos demorados,
marcando a sua presença em cada revolução, em cada aventura. Onde se mostrou
mais esplêndido foi na aventura da morte. Estava em Genebra, a última vez em que
o vi, e falava do Rio como de uma mulher bonita, de que não tivesse mágoa nem
saudade. Aqui havia amado, vencido, e conhecera belos momentos, antes de sofrer
marcas inapagáveis. Falava de Goes Monteiro, um general que muitos de vocês,
guanabarinos, já esqueceram. Um general político, politizado, politizante, que
guerreara os paulistas em 32, nas margens do Itararé, se é que Itararé era rio
mesmo. Num prédio velho da Rua Gustavo Sampaio morava Chico Campos, a quem os
estudantes daquela época apelidaram de Chico Ciência. Mineirão de óculos. Senhor
de respeitável cultura jurídica. Seu vizinho, jovem pianista, também de aros de
tartaruga, também mineiro, se chamava Ari Barroso. Do outro lado da rua morava
por acaso - só por acaso os cariocas moram no Rio - um carioca de nome Francisco
Alves. Ari Barroso ia às vêzes à sala de Chico Alves e o acompanhava ao piano,
ensaiando, enquanto da varanda do lado, Chico Campos os espiava, sem saber que
estava espiando, musicalmente, a história desta cidade. Havia outro bangalô,
mais adiante, na mesma rua, onde morava um casal tranqüilo. Ela, Dona Santinha.
Êle, Eurico Dutra, ou simplesmente, o Gaspar. Na manhã das eleições
presidenciais, encontrei-o dando milho às galinhas, homem em paz com a vida.
Venceu as eleições contra o Brigadeiro. O Brigadeiro era o que se pode chamar de
cinzento, sombrio, fechado como o aeroporto de S. Paulo em dia de chuva. Morava
no Flamengo. No Leblon, entretanto, morava Cristiano, o bom Cristiano Machado,
irmão do Aníbal e de Lúcia. Fizeram maldade com o puríssimo Cristiano,
acenando-lhe com uma impossível Presidência da República. O honesto mineiro, que
estava pagando mensalmente o apartamento do Leblon ao Instituto dos
Comerciários, atrapalhou-se todo, deixou-se embalar com o sonho durante
meses.
MAIS experiente, o General
Canrobert morava do outro lado da cidade, na Zona Norte, quase no Méier,
precisamente na Bôca do Mato. Quiseram torrá-lo com a candidatura à Presidência,
mas percebeu o jôgo. Era homem direito e patriota. Foi o primeiro a me falar de
Lott, que naquele tempo todos conheciam por Duffles. - “Lá em S. Paulo” - disse-me Canrobert - “o Duffles opinou contra a
intervenção.” - “Duffles?” - indaguei. - “Duffles com um F ou dois FF?”PELAS mesmas bandas morava, por acaso, um carioca. Chamava-se Orestes Barbosa. Chama-se ainda, graças a Deus, pois está vivo. Só bastante míope. Vive na Ilha de Paquetá e ainda faz versos, mas ninguém quer musicá-los, porque são lindos.
VINDO pela Tijuca, encontramos a casa do General Etchegoyen, um Chefe de Polícia que mandou fechar a zona, prender os bicheiros e demitir os venais. Nunca vi homem dar tanto murro em faca de ponta. Morreu naturalmente, pobre e esquecido. Também na Tijuca. Lá onde vive até hoje êsse boa praça que é o Peixoto de Castro. Aos setenta anos, mandou fazer uma piscina nos fundos de casa. Não o conhecia, mas tôdas as tardes, ao voltar do trabalho, eu passava pelo casarão de muro baixo e aberto, e perguntava a quem estivesse no jardim: - “Como vai o Peixoto?” - Invàrialvelmente, o homem respondia: “Vai bem”. Um dia, o substituto respondeu: - “Vou bem”.
SUBO pelos flancos de Santa Teresa, o único morro do Rio que não tem samba, e não posso esquecer a figura de Oswaldo Aranha, num velho solar, rodeado de amigos, e falando a um môço que começava no jornalismo, com a mesma atenção que daria a Drew Pearson quinze anos depois. Essa esplêndida casa seria ocupada depois pelo Barreto Pinto. O mesmo Barreto Pinto que iríamos encontrar, mais tarde, em trajes de veraneio, naquela mesma Rua Gustavo Sampaio, do Dutra, do Chico Campos, do Chico Alves, do Ari. Uma rua de saudade.
VENHO pela Urca onde estão hoje em dia os estúdios do Canal 6, e lembro o Cassino, um cassino bipartido, pois passava uma avenida no meio. Na entrada, pareço estar vendo um homem magro e trigueiro, Joaquim Rolla. Em Minas fôra tropeiro. Levara mulas pela serra acima, trouxera mulas pela serra abaixo. Aqui, na Urca, arrancava com tôda a dignidade as rendas de outras mulas, fazendo melhor redistribuição de riquezas. Para isso, organizava “shows” monumentais. Lucienne Boyer, Pedro Vargas, Carmen Miranda e, nascendo profissionalmente, Grande Otelo, Linda Batista, Emilinha. Um falso maestro regia a orquestra: Carlos Machado. Vinha de Paris, dos braços de Mistinguette, e ninguém imaginava a sua carreira fabulosa.
DEPOIS, a guerra. O Rio hospedando, abrindo os braços, recolhendo náufragos da catástrofe, sem se importar com a origem, a raça, a condição social. Um príncipe polonês, outro romeno, um carpinteiro francês. Do navio desce um homem gordo e estranho. Seu nome é Bernanos. Noutro dia, desembarcam dois jovens franceses: Jean Manzon e Pierre Daninos. Manzon traz uma carta de Alberto Cavalcanti, carioca exilado em Londres, para Lourival Fontes, sergipano. A guerra passa. Nova gente começa a aparecer. A estrêla, a velha estrêla de Valadares brilha sempre. Êle traz pela mão um môço deputado, de muito futuro. Seu nome é Juscelino Kubitschek de Oliveira.
FIGURAS antigas se misturam com figuras recentes, lá dentro. Flôres da Cunha parece relíquia. Mas, quando fala, impõe silêncio e respeito. O potiguar Café Filho é o deputado mais trabalhador: apresenta um projeto por dia. Desponta um novo sol, Carlos Lacerda. Na Presidência, ainda Gétulio. Já não há mais cassinos. Dutra fechou. Surgem rótulos novos para a política nacional. Jango, Jânio, Armando Falcão e Vieira de Mello. De vez em quando, emergem dos sarcófagos os fantasmas de Capanema, Mangabeira, Mello Franco. O Sr. Adhemar de Barros visita a cidade, mas todos percebem ressentimento quando fala no figurino da época, Jânio Quadros. Logo aparece Ferrari com a legenda das mãos limpas. Os Brizola, os Eloy Dutra, os Silveira, os Jurema passam a fazer história e a cidade olha os Mendes de Moraes, Ruy Carneiro, Filinto Müller, Capanema, Bias Fortes, Gilberto Marinho, como gente da Idade Média.
NISTO, surge Brasília. De repente, cresce a possibilidade de o Rio de Janeiro deixar de ser a capital, o centro nervoso de uma República. Brasília é estruturada. Não importa, agora, discutir como. Passou o tempo em que podia ser discutida. Vem o dia. A mudança. O Rio, nesta manhã, deixou de ser a capital brasileira.
O CARIOCA, que é o objeto mais difícil de ser encontrado nesta cidade, ou mesmo o forasteiro que aqui chegou, aqui mora e aqui fica, não sabe exatamente o que acontecerá, agora, depois da mudança. Fica à espera, como quem espera o dilúvio ou o eclipse. Não consola a idéia de que o corpo aqui ficará, enquanto a cabeça irá para Brasília. Apenas quer saber como se portará o Rio, depois que a Côrte se transferir realmente para longe.
O DIA amanhece igual. O Rio também. O Distrito Federal vira Estado da Guanabara, o Prefeito passa a ser Governador, o Chefe de Polícia é Secretário de Segurança. Alguma confusão a princípio, muito natural, numa cidade que se enviúva de repente. Os jornais não mudam de fisionomia, mas passam a falar de certas pessoas como de gente que está longe. Faço a minha ronda de saudade. O Palácio Tiradentes está no mesmo lugar, do mesmo jeito. Que farão do Palácio Tiradentes? E do Senado, no fim da Avenida? Espio aquêle monstro que é o Palácio da Fazenda. De que servirá, depois que todo o Ministério se transferir realmente para Brasília? Terei saudade do Sebastião? E o Ministério da Guerra, o Palácio da Guerra, que acontecerá ao edifício comprido, depois da mudança? O Catete, já se sabe, vira museu. O Ministério do Trabalho, o da Educação que Portinari ilustrou como um livro de azulejos? Qual será o destino disso tudo? Quem irá ocupar o austero Supremo Tribunal? Haverá gente para ocupar o Ministério da Marinha?
GANHAMOS todos êsses prédios Ganhamos a liberdade de ser município sem os ônus de Capital da República. Somos ao mesmo tempo cidade, município e capital de município. Um pedacinho de terra, feliz, do Joá a Santa Cruz. Ficamos com o nosso Corpo de Bombeiros valente e mal pago, com a nossa policiazinha mambembe viajando de bonde, com a nossa falta de água, com a nossa falta de telefones, com as nossas enchentes. Mas os nossos problemas são, de agora em diante, inteiramente nossos. Não precisamos transferi-los ao Arquiprefeito, que era, nesta cidade, o Presidente da República. As levas de nordestinos, famintos, explorados, irão para Brasília, a nova meca, onde há trabalho. Aqui haverá apenas paz de criança dormindo, como diria Dolores. Não mais os Itas, os trens da Central, os aviões desembarcando aventureiros em busca de empregos. No lugar onde se espremia uma cidade-pardieiro, uma espécie de metrópole-cortiço, surge uma boa casa, de varanda para o mar. Rachel pode voltar à Ilha, apesar da ponte, Pongetti voltará a passear de madrugada pelas ruas da Lapa, ouvindo trechos de conversa, pedaços de vida, que cantará em prosa, como o poeta da cidade, onde Castro Alves não mais desembarcará. Nem Gonçalves Dias virá do Maranhão. O caminho é Brasília. Vão todos para Brasília. Perco um amigo, Geraldo Carneiro.
OBRIGADO, Juscelino, por fazer disto uma cidade.
O RIO os viu partir com tristeza. Eram alegres paus-de-arara que haviam chegado, trazidos pela ambição e aqui se tornaram poetas famosos, funcionários de categoria, tabeliões, médicos ilustres e até Ministros de Estado. Eram mineiros, mineirões e mineirinhos, todos felizes na nova dinastia. Eram paulistas que haviam subido aos melhores cargos. Ou sulistas que perderam o sotaque, os hábitos, na cidade desprendida e hospitaleira. O Rio os viu partir com emoção. Nesses dois séculos de capital, ninguém se sentira estrangeiro dentro das fronteiras invisíveis desta cidade amiga, a menos bairrista, a menos apaixonada, a mais brasileira do Brasil. Tão senhora de si, que nada lhe restando para dar, na hora em que a despojavam de tudo, transformava em cidadãos cariocas aquêles que se despediam. Como aquela história da árvore que perfuma o machado do lenhador. O Rio, amante, velha, enrugada, beijava as mãos do senhor que a trocava pelo amor mais môço, pela nova aventura de outono, pela Brasília mulata.
NESTA manhã chuvosa, quase fria, neste dia cinzento, o Rio deixa de ser capital do Brasil, mas não se sente infeliz por isso. Que imaginam vocês da responsabilidade, da utilidade ou da necessidade de uma beleza como esta, plantada na orla marítima, inundada de sol, feliz com os seus defeitos, qual a vantagem de ser capital política e administrativa? Acenaram-nos o consôlo de que, por muitos séculos, o centro literário, musical, artístico, não sairá daqui. Na verdade, tais condições não se improvisam, não se constroem. Até isso, entretanto, os forasteiros poderiam ter levado. Nesses duzentos anos, não temos feito outra coisa, nós, os ingratos que chegamos ao Rio, à velha Côrte, senão levá-la aos poucos, senão mudá-la aos poucos.
DE qualquer forma, obrigado, Juscelino, por fazer disto uma cidade. Com a sua Brasília, fêz do Rio uma cidade autônoma, habitável e mais vazia, embora sem o encanto de sua presença. Nós, os ingratos, nem de longe poderíamos imaginar como é bom viver longe dos políticos, das confusões, de todo êsse aglomerado humano que faz da Côrte uma cidade hostil, atravancada, sem nenhum atrativo. Ninguém podia imaginar que de repente voltássemos, sem sair daqui, a uma ilha de paz, de sol e de perdão. Obrigado, Juscelino, por não te haveres esquecido de nossas aflições na hora de nossa morte como capital, deixando-nos, como herança êsse mineirinho simpático e promissor, êsse filhote de Juscelino, que é o jovem Sette Câmara, presença imaterial de Juscelino na solução de nossos problemas deixados em meio. Obrigado, Juscelino, por haveres trocado está cidade por uma paixão recente. O Rio te agradece por Brasília, a noiva que preferiste a um velho amor.
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