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terça-feira, 29 de julho de 2014

De tempos e maré cheia.


Maré cheia

Publicado em 29 de julho de 2014 por Silvia Badim




E então eu fiquei vendo aquela bola alaranjada desaparecer no horizonte. O vento zunia forte uma melodia que me desconcertava os ouvidos. Eu estava feliz. Estranha, e intensamente, feliz. As cores do dia coloriam o que eu não sabia. E eu abraçava quente o presente. O que tinha era bom. Bom de doer os olhos, cheios de areia e brisa de mar. O mesmo mar que me corria por dentro, em medos e incógnitas, e em deslumbramento de poder fluir. No mar o chão é lodo, e também é água. Um chão que suporta o improvável e imprevisível dos dias.

Eu voei. Até onde eu não sabia que podia chegar. Até onde eu me dobrei sobre o controle que não tinha. Vento, gota salgada sob o corpo quente. Beleza que me arrancava lágrimas e silêncios de contemplar a morte. Seu corpo, meu corpo, nossas vidas ali, em mistério de existência conjunta. Docemente enlaçadas, em dança de encher o peito. Sim, o momento era cheio, robusto, vivo. E ele morria secretamente, com o dia que caia no mar.

Assim é, um tempo sempre a escapar. Um porvir de reticências. A terra movediça que nunca vira chão de fincar os pés. O susto do amor, a alegria do respiro, a rota incansável do tempo que lambe a areia e reconstrói paisagens. As dunas móveis, as lagoas de chuva e seca, segredos de vida líquida. Arrepio, calafrio, rumba a beira-mar a cantar o incontido. E as ondas, mansas, sem pressa, fugidias, riem de mim: pequena concha na imensidão submersa. A ida. Para onde não há seta. O destino que nos guarda, buraco frouxo, refluxo, renascença, dúvida, maré que nos cobre, cega, vermelho, escuro, fim.


http://biscatesocialclub.com.br/2014/07/mare-cheia/

Hora de ir


Publicado em 5 de outubro de 2013 por repimlins



E aí você disse que era para eu ir embora e eu fui.

Esse é um começo de livro. Um livro bonito, que eu comprei – como tantos – pelo nome, um dia: “L’enfer, son casino, sa plage” (o inferno , seu cassino, sua praia).
Mas nem é do livro que eu queria falar, e sim da frase e de seu contexto: uma mulher que é apaixonada por um sujeito que diz pra ela ir embora.

E ela vai.

Tantas vezes é assim: a gente não quer ir embora – mas é pra ir. Porque a outra pessoa, porque o mundo, porque tanta história. Porque já foi e não é mais. Porque tá escuro, tá cinzento, tá enevoado. Porque tem cheiro de tempestade. Porque algo puxa pra outro caminho, embora. Muito embora. Mas é pra ir e a gente sabe. A gente fecha os olhos apertado, a gente tapa os ouvidos com as mãos, a gente tenta não lembrar, mas no fundo a gente sabe. A gente sabe que sabe. Não quer saber que sabe, talvez: mas sabe.

E tem um dia em que a gente vai.

E, como na história do livro, a gente queria que tudo fosse outro, que o novelo da vida tivesse se desenrolado fazendo outros desenhos e que desse pra ficar. A gente pede, até, baixinho, olhando de lado: “me deixa ficar. só mais um pouquinho, vai.” Só que não. Não adianta, não é aquilo, o lugar onde a gente queria se enrodilhar já não existe mais. É um lugar-memória e pra lá dá pra ir às vezes. Depois. Quando não doer mais tanto.

Agora é hora de ir.

De arrumar a mochila, cuidando pra levar só o estritamente necessário: não tem sentido carregar peso demais, atrasa a caminhada. Atenção para os sapatos: se for possível, escolher dois pares – um que aguente o tranco, que seja companheiro das subidas e descidas dos terrenos desconhecidos, e outro levinho, uma sandália talvez, pra deixar os pés de fora em dias de sol, pra balançar na ponta do dedo, pra descalçar sorrindo.

Não tinha dito isso, e agora pode nem parecer: mas vai ter sorrisos também. Ainda vai ter, como não? Claro que vai. Sorrisos, de leve, à toa, braços abertos, banho de cachoeira, rede na varanda, conversas até de manhã. Gargalhadas, cigarros acendidos um no outro, mais cachaça, só mais esse, olhares de lado, olhares de frente, olhares. Mesas com poemas entalhados, o sol nascendo na praia, violão na Sé de Olinda, um jeito de tocar no cabelo.

Eu sei que não parece, mas vai ter.

Ah, se vai.

(mas isso é depois)

Agora, é hora de ir.


http://biscatesocialclub.com.br/2013/10/hora-de-ir/