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terça-feira, 19 de março de 2013

“Não tenho nada resolvido” Caetano Veloso


Aos 70 anos

e com disco

novo na praça,

Caetano

Veloso fala

da influência

dos filhos,

relembra o pai

e confessa certa

melancolia.

Reflete, enfim,

sobre o sentido

último das

coisas e conclui:

“Não tenho

nada resolvido”

REVISTA GOL 97

POR

CLAUDIO LEAL

RETRATOS

MURILLO MEIRELLES

PÁG. 164

BA

LAN


 

MURILLO MEIRELLES

“Foi suave”, afirma o fotógrafo

carioca de 51 anos sobre o ensaio

com Caetano Veloso, feito no

apartamento de Murillo na Lagoa,

no Rio de Janeiro. Colaborador de

revistas no Brasil e no exterior –

entre elas, i-D, Dune, Mag!,

Rolling Stone, Vogue, Trip e

TPM –, ele ingressou no mundo

da fotografia nos anos 90 e, em

1996, realizou sua primeira

exposição individual no Mube,

em São Paulo.

CLAUDIO LEAL

Nascido em Salvador, formado

pela Universidade Federal da

Bahia, o jornalista de 30 anos mora

e trabalha há cinco em São Paulo.

Foi repórter do jornal A Tarde e

da revista digital Terra Magazine.

É dele o texto da matéria de capa

desta edição. “Por ter opiniões

complexas e manter-se a distância

de respostas óbvias, Caetano

Veloso parece vocacionado para

entrevistas. Sabe provocar e

desfazer nós”, diz Claudio.

 

Colado a uma parede branca, olhar rijo,

Caetano Veloso ganha cores mais suaves

com a mudança do disco. Um fado.

Subitamente uma canção alivia seu

rosto e parece dar a partida real para as

fotos – ou para o próprio dia –, às 17h30,

no fim da tarde abafante do Rio de Janeiro.

“Adoro o Zambujo”, avisa o compositor

ao fotógrafo Murillo Meirelles,

que, sem saber, escolheu aquele CD e

reavivou a admiração do retratado pelo

cantor português António Zambujo.

Mal não fez, pois Caetano embarca

no clássico das serenatas, “A deusa da

minha rua”, por ele entoado baixinho,

alheio ao resto, como se palco houvesse

abaixo dos pés. “Essa é linda!”, reforça

para si, e outra vez se abre para o dia. O

figurino foi escolhido em seu guardaroupa,

não há sequer um fiapo que não

seja inteiramente seu. Ora mirando a

câmera, ora desconhecendo-a, Caetano

inicia gestuais fadísticos e outros ao estilo

de Carmen Miranda. Encerra com a

mão no peito.

O lançamento no final do ano passado

de Abraçaço, o terceiro álbum com a

banda Cê, ativa o radar de quem identifi

ca mil inspirações de sua obra recente,

mas o que o tempo vem reforçando

mesmo é a influência dos três filhos. “É

muito grande”, estima Caetano. “Moreno

produz os discos desde que comecei

a tocar com a banda Cê. Zeca e Tom são

as primeiras pessoas a ouvirem todas as

músicas novas que faço. E comentam,

influem. Por exemplo, os nomes dos

lutadores de MMA [em “A Bossa Nova é

 

“SE PUDESSE, ME

RECOLHIA MAIS AINDA.

ACHO UM POUCO CHATO

FICAR CELEBRANDO

DATA REDONDA PORQUE

PARECE QUE FECHA

A GENTE NAQUELA

INFORMAÇÃO”
 

foda”] , o Tom e o Zeca que me ajudaram

a escolher e pôr em ordem”, revela. O

diálogo se desdobra nas trocas musicais.

Numa madrugada, quando o rádio

do carro tocou “Pra que mentir”, de

Noel Rosa e Vadico, na voz de Paulinho

da Viola, se instaurou a cumplicidade

com Zeca, 20 anos. E, sim, adora as gravações

de funk ouvidas por Tom, 15.

Aos 70 anos, ele admite a lembrança

recorrente do pai, José Telles Velloso

– o agente postal seu Zezinho, morto

em 1983 –, e narra que se surpreendeu

depois de finalizar o livro de memórias.

“Em Verdade tropical, falo mais em

meu pai do que em minha mãe... Eu

não sabia, alguém me disse. Aquilo me

tocou porque, sabe, não sei... Eu adoro

meu pai, a memória dele”, declara. “Eu

já tenho três filhos, dois netos. Penso

mais nele, como ele atravessou o nascimento

e o crescimento dos filhos. E

gosto mais ainda dele.”

Em 2012, Caetano evitou as comemorações

em torno dos seus 70 anos e

aceitou apenas um jantar com amigos

e familiares, sem estardalhaço. Sua

mãe, dona Canô, 105 anos, diz que não

transmitiu nenhum conselho especial.

“Os conselhos que eu dei foram desde

pequeno. Dei todo o apoio para que ele

escolhesse o instrumento, se era piano

ou violão”, contou Canô, por telefone.

“Se eu pudesse, me recolhia mais

ainda. Acho um pouco chato ficar

celebrando data redonda porque parece

que fecha a gente naquela informação”,

Caetano explica. “Quem mais agiu bem

em relação a isso foi o Ney Matogrosso,

que é admirável sob tantos aspectos

Adoro ele. Olho para ele como modelo

de entendimento das coisas. Sou muito

orgulhoso de ele ser leonino. Ele fez

70 anos antes de nós e ninguém falou

nisso. O Ney Matogrosso é o Ney Matogrosso.

Não é alguém que tem 70 anos,

não. E é assim que tem que ser.”

Adolescente insone

Sofre de insônia, considera-se um

espírito adolescente e mantém a

ambição de querer ser entendido, mas

se diverte com uma frase da cantora

islandesa Björk: desejar ser entendido

é uma espécie de arrogância. Depois de

uma interrupção, faz anos que voltou

à psicanálise. Mas, afinal, está confortável

com o papel que a história já lhe

confere? “Não estou muito confortável”,

reconhece. Nos anos 70, comentava

com amigos que os artistas americanos

tendem a viver da imagem que foi construída

a respeito deles. Na contramão,

graceja: “Eu sinto mais que a fama é

uma série de mal-entendidos”.

Quando se pressente um trabalho

passadista, Caetano dribla e entrega o

disco de rock , em 2006. Se pensam

que ele se exauriu, compõe e dirige para

Gal Costa um álbum de base eletrônica,

Recanto, de 2011. Agora, com o zagueiro

desnorteado, manda um Abraçaço, no

qual aprofunda o trabalho com Pedro

Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo

Callado. “No eu tinha tudo predeterminado

na minha cabeça. Agora,

não, já deixo o que vier deles. Indico

o caminho e sugiro umas coisas, mas

já vêm as coisas deles. A gente já está

muito integrado”, avalia o compositor,

sem cravar o fim do ciclo: “Quando fiz

o segundo disco, pensei: pelo menos o

terceiro eu vou fazer. Pelo menos. É só

o que eu sei, na verdade”. O guitarrista

Pedro Sá acrescenta que a intimidade

sempre foi grande: “Nos outros dois

discos, ele tinha um conceito mais

fechado: lançou no , fi rmou em Zii e

Zie e em Abraçaço deixou correr mais

espontâneo”. Sobre o fi m, Sá brinca:

“Ele sempre falou que queria fazer uma

trilogia. Mas eu tenho a impressão de

que, se deixar, ele faz outro”.

Para o homem que considerou todas as

suas letras autobiográficas (“até as que

não são, são”), há um quê de confessada

melancolia em seu álbum mais recente.

“Estou triste tão triste/ E o lugar mais

frio do Rio/ É o meu quarto”, canta em

“Estou triste”, que concorre em profundo

desalento com “Mãe”, gravada por
 

PARA O HOMEM QUE CONSIDEROU TODAS AS SUAS LETRAS

AUTOBIOGRÁFICAS (“ATÉ AS QUE NÃO SÃO, SÃO”), HÁ UM QUÊ DE

CONFESSADA MELANCOLIA NO ÁLBUM MAIS RECENTE
 

Gal, em 1978 (“Cidades, mares, povo, rio/

Ninguém me tem amor”). Caetano aceita

o paralelo: “‘Mãe’ era a canção que eu

achava a mais triste entre as canções que

eu tinha feito. Achava até depressiva...

Talvez no show do Abraçaço eu cante.

Já tinha pensado nisso”. Evita detalhar

a origem dos dois estados espirituais e

deixa um só rastro: “Coincide a tristeza”.

Ainda assim, o pensamento da morte

não costuma invadir suas composições.

“Não é um tema de que eu trate muito,

não”, ressalta. O ar é comedido. “Eu tenho

medo. Mas tinha mais medo do que

tenho hoje. Pensava mais nisso do que

penso hoje. Mas penso também.” Com

empolgação, recorda-se de “Não tenho

medo da morte”, de Gilberto Gil, e do

complemento: “mas medo de morrer,

sim”. “Ele canta com essa vírgula

enfatizada, dá muita ênfase à vírgula,

batendo aquele bordão no violão. Isso é

uma das coisas mais lindas que Gil fez

depois de mais velho!”

Sexo, no plural

Em Caetano, uma ideia parece se manifestar,

inicialmente, através de uma

expressão facial. Comprime os olhos,

balançando de leve a cabeça, se o tema

lhe é mais atraente. Sexo, por exemplo.

 

“O SENTIDO ÚLTIMO DAS

COISAS, DOS VALORES,

AO FIM DAS CONTAS

TOTAIS, O QUE QUE É

TUDO? POR QUE QUE

HÁ TUDO QUE HÁ? QUAL

SERÁ O SENTIDO ÚNICO

DESSE GESTO MEU?”


Em suas canções recentes (“Vinco” e

“Quando o galo cantou”), o sexo tem

algo do verso do poeta Manuel Bandeira

“os corpos se entendem, mas as almas

não”. Sorrindo, Caetano não acolhe totalmente

o palpite. “Eu me lembro bem

disso de Bandeira. É bom, entendo o

que ele está dizendo. Sempre entendi. É

uma boa lembrança”, reflete. “Entendo

e há algo disso no que vivencio. Não é

tudo, mas é algo disso.”

O compositor relata que a editora

Companhia das Letras quis publicar

um pedaço de texto inédito, que ficou

fora de Verdade tropical. Exclusivamente

sobre sexo. O essencial, afi rma, foi

resumido e publicado no livro de 1997.

“Umas 70 páginas só sobre esse assunto.

Eu tinha feito um capítulo que se

chamava ‘Sexos’. Sexo no plural. E outro

capítulo que se chamava ‘Droga’. Sexo

no plural e droga no singular”, relembra.

O capítulo sobre drogas teria apenas

uma frase: “Odeio a cocaína”.

A vinculação entre sexo e pecado foi

determinante para que se distanciasse

da igreja. Sem esconder o “temperamento

místico”, o ateu nascido no dia de São

Caetano depurou sua visão da religiosidade.

“O que as religiões oferecem é uma

coisa que é mil por cento indiscutível,

que é uma organização de respostas para

as perguntas que não têm resposta”,

observa. E prossegue: “O sentido último

das coisas, dos valores, ao fi m das contas

totais, o que que é tudo? Por que que há

tudo que há? Qual será o sentido único

desse gesto meu, da minha atitude? A

religião traz uma resposta para isso. Cria

lendas, histórias que respondem a isso.

E isso é um poço sem fundo, porque a

gente não sabe, não vai saber”.

O Brasil é outro poço de perguntas

para Caetano Veloso, seja lá em qual

circunstância, se numa tarde do verão

baiano no Porto da Barra ou nas noites

outonais do Leblon. “Ele não está

fazendo arte pela arte. Sempre se coloca

em questões desafiadoras o tempo todo.

Procura essas situações. Ele discute metafísica,

filosofia, história em qualquer

conversa, mesmo a coloquial”, testemunha

o músico e escritor Jorge Mautner.

A visão esperançosa do país sofre abalos

no cotidiano. “Há muitas coisas no Brasil

que parecem negar, veementemente,

essas esperanças que o próprio Brasil

me obriga a nutrir”, afirma Caetano.

Da sua aldeia brotam razões para o

desânimo. “Tenho 70 anos e nunca vi

um prefeito bom em Santo Amaro. Isso

dá a impressão de que o Brasil não tem

mesmo jeito. Eu me sinto um sujeito

inútil no panorama. Porque sou de Santo

Amaro e, se eu não pude ajudar a dar

jeito, para não virar uma porcaria, então

não sirvo pra nada.”

Como se vê, permanece como principal

contestador de seu próprio sentimento

de plenitude. O irmão, Rodrigo

Velloso, reconta a dúvida do pai quanto

ao destino do filho, mais apaixonado

pelas artes plásticas e pelo cinema no

início dos anos 60. “Quero ver o que

esse menino vai ser”, atiçava Zezinho.

Caetano larga um sorriso ao ser questionado

sobre suas pazes com as antigas

vocações. “Resolvido, nada é. Eu te

digo com sinceridade: nada!”, confessa,

desarmado. “Conheço pessoas que têm

coisas resolvidas e eu fico fascinado

por essas pessoas, mal acredito que elas

existem.” Pausa. “Mas eu não tenho

nada resolvido.” Olhando o relógio, é

hora de Caetano Veloso, poeta insone

do Brasil, retornar ao elevador.