Aos 70 anos
e com disco
novo na praça,
Caetano
Veloso fala
da influência
dos filhos,
relembra o pai
e confessa certa
melancolia.
Reflete, enfim,
sobre o sentido
último das
coisas e conclui:
“Não tenho
nada resolvido”
REVISTA GOL 97
POR
CLAUDIO LEAL
RETRATOS
MURILLO MEIRELLES
PÁG. 164
BA
LAN
CÊ
MURILLO MEIRELLES
“Foi suave”, afirma o fotógrafo
carioca de 51 anos sobre o ensaio
com Caetano Veloso, feito no
apartamento de Murillo na Lagoa,
no Rio de Janeiro. Colaborador de
revistas no Brasil e no exterior –
entre elas, i-D, Dune, Mag!,
Rolling Stone, Vogue, Trip e
TPM –, ele ingressou no mundo
da fotografia nos anos 90 e, em
1996, realizou sua primeira
exposição individual no Mube,
em São Paulo.
CLAUDIO LEAL
Nascido em Salvador, formado
pela Universidade Federal da
Bahia, o jornalista de 30 anos
mora
e trabalha há cinco em São Paulo.
Foi repórter do jornal A Tarde e
da revista digital Terra Magazine.
É dele o texto da matéria de capa
desta edição. “Por ter opiniões
complexas e manter-se a distância
de respostas óbvias, Caetano
Veloso parece vocacionado para
entrevistas. Sabe provocar e
desfazer nós”,
diz Claudio.
Colado a uma parede branca, olhar rijo,
Caetano Veloso ganha cores mais suaves
com a mudança do disco. Um fado.
Subitamente uma canção alivia seu
rosto e parece dar a partida real para as
fotos – ou para o próprio dia –, às 17h30,
no fim da tarde abafante do Rio de
Janeiro.
“Adoro o Zambujo”, avisa o compositor
ao fotógrafo Murillo Meirelles,
que, sem saber, escolheu aquele CD e
reavivou a admiração do retratado pelo
cantor português António Zambujo.
Mal não fez, pois Caetano embarca
no clássico das serenatas, “A deusa da
minha rua”, por ele entoado baixinho,
alheio ao resto, como se palco houvesse
abaixo dos pés. “Essa é linda!”, reforça
para si, e outra vez se abre para o dia. O
figurino foi escolhido em seu
guardaroupa,
não há sequer um fiapo que não
seja inteiramente seu. Ora mirando a
câmera, ora desconhecendo-a, Caetano
inicia gestuais fadísticos e outros ao
estilo
de Carmen Miranda. Encerra com a
mão no peito.
O lançamento no final do ano passado
de Abraçaço, o terceiro álbum com a
banda Cê, ativa o radar de quem identifi
ca mil inspirações de sua obra recente,
mas o que o tempo vem reforçando
mesmo é a influência dos três filhos. “É
muito grande”, estima Caetano. “Moreno
produz os discos desde que comecei
a tocar com a banda Cê. Zeca e Tom são
as primeiras pessoas a ouvirem todas as
músicas novas que faço. E comentam,
influem. Por exemplo, os nomes dos
lutadores de MMA [em “A Bossa Nova é
“SE PUDESSE, ME
RECOLHIA MAIS AINDA.
ACHO UM POUCO CHATO
FICAR CELEBRANDO
DATA REDONDA PORQUE
PARECE QUE FECHA
A GENTE NAQUELA
INFORMAÇÃO”
foda”] , o Tom e o Zeca que me
ajudaram
a escolher e pôr em ordem”, revela. O
diálogo se desdobra nas trocas musicais.
Numa madrugada, quando o rádio
do carro tocou “Pra que mentir”, de
Noel Rosa e Vadico, na voz de Paulinho
da Viola, se instaurou a cumplicidade
com Zeca, 20 anos. E, sim, adora as
gravações
de funk ouvidas por Tom, 15.
Aos 70 anos, ele admite a lembrança
recorrente do pai, José Telles Velloso
– o agente postal seu Zezinho, morto
em 1983 –, e narra que se surpreendeu
depois de finalizar o livro de memórias.
“Em Verdade tropical, falo mais em
meu pai do que em minha mãe... Eu
não sabia, alguém me disse. Aquilo me
tocou porque, sabe, não sei... Eu adoro
meu pai, a memória dele”, declara. “Eu
já tenho três filhos, dois netos. Penso
mais nele, como ele atravessou o
nascimento
e o crescimento dos filhos. E
gosto mais ainda dele.”
Em 2012, Caetano evitou as comemorações
em torno dos seus 70 anos e
aceitou apenas um jantar com amigos
e familiares, sem estardalhaço. Sua
mãe, dona Canô, 105 anos, diz que não
transmitiu nenhum conselho especial.
“Os conselhos que eu dei foram desde
pequeno. Dei todo o apoio para que ele
escolhesse o instrumento, se era piano
ou violão”, contou Canô, por telefone.
“Se eu pudesse, me recolhia mais
ainda. Acho um pouco chato ficar
celebrando data redonda porque parece
que fecha a gente naquela informação”,
Caetano explica. “Quem mais agiu bem
em relação a isso foi o Ney Matogrosso,
que é admirável sob tantos aspectos
Adoro ele. Olho para ele como modelo
de entendimento das coisas. Sou muito
orgulhoso de ele ser leonino. Ele fez
70 anos antes de nós e ninguém falou
nisso. O Ney Matogrosso é o Ney
Matogrosso.
Não é alguém que tem 70 anos,
não. E é assim que tem que ser.”
Adolescente insone
Sofre de insônia, considera-se um
espírito adolescente e mantém a
ambição de querer ser entendido, mas
se diverte com uma frase da cantora
islandesa Björk: desejar ser entendido
é uma espécie de arrogância. Depois de
uma interrupção, faz anos que voltou
à psicanálise. Mas, afinal, está
confortável
com o papel que a história já lhe
confere? “Não estou muito confortável”,
reconhece. Nos anos 70, comentava
com amigos que os artistas americanos
tendem a viver da imagem que foi
construída
a respeito deles. Na contramão,
graceja: “Eu sinto mais que a fama é
uma série de mal-entendidos”.
Quando se pressente um trabalho
passadista, Caetano dribla e entrega o
disco de rock Cê, em 2006. Se pensam
que ele se exauriu, compõe e dirige para
Gal Costa um álbum de base eletrônica,
Recanto, de 2011. Agora, com o
zagueiro
desnorteado, manda um Abraçaço, no
qual aprofunda o trabalho com Pedro
Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo
Callado. “No Cê eu tinha tudo predeterminado
na minha cabeça. Agora,
não, já deixo o que vier deles. Indico
o caminho e sugiro umas coisas, mas
já vêm as coisas deles. A gente já está
muito integrado”, avalia o compositor,
sem cravar o fim do ciclo: “Quando fiz
o segundo disco, pensei: pelo menos o
terceiro eu vou fazer. Pelo menos. É só
o que eu sei, na verdade”. O guitarrista
Pedro Sá acrescenta que a intimidade
sempre foi grande: “Nos outros dois
discos, ele tinha um conceito mais
fechado: lançou no Cê, fi rmou em Zii e
Zie e em Abraçaço deixou correr mais
espontâneo”. Sobre o fi m, Sá brinca:
“Ele sempre falou que queria fazer uma
trilogia. Mas eu tenho a impressão de
que, se deixar, ele faz outro”.
Para o homem que considerou todas as
suas letras autobiográficas (“até as que
não são, são”), há um quê de confessada
melancolia em seu álbum mais recente.
“Estou triste tão triste/ E o lugar mais
frio do Rio/ É o meu quarto”, canta em
“Estou triste”, que concorre em profundo
desalento com “Mãe”, gravada por
PARA O HOMEM QUE CONSIDEROU TODAS AS SUAS
LETRAS
AUTOBIOGRÁFICAS (“ATÉ AS QUE NÃO SÃO, SÃO”),
HÁ UM QUÊ DE
CONFESSADA MELANCOLIA NO ÁLBUM MAIS
RECENTE
Gal, em 1978 (“Cidades, mares, povo, rio/
Ninguém me tem amor”). Caetano aceita
o paralelo: “‘Mãe’ era a canção que eu
achava a mais triste entre as canções que
eu tinha feito. Achava até depressiva...
Talvez no show do Abraçaço eu cante.
Já tinha pensado nisso”. Evita detalhar
a origem dos dois estados espirituais e
deixa um só rastro: “Coincide a tristeza”.
Ainda assim, o pensamento da morte
não costuma invadir suas composições.
“Não é um tema de que eu trate muito,
não”, ressalta. O ar é comedido. “Eu tenho
medo. Mas tinha mais medo do que
tenho hoje. Pensava mais nisso do que
penso hoje. Mas penso também.” Com
empolgação, recorda-se de “Não tenho
medo da morte”, de Gilberto Gil, e do
complemento: “mas medo de morrer,
sim”. “Ele canta com essa vírgula
enfatizada, dá muita ênfase à vírgula,
batendo aquele bordão no violão. Isso é
uma das coisas mais lindas que Gil fez
depois de mais velho!”
Sexo, no plural
Em Caetano, uma ideia parece se
manifestar,
inicialmente, através de uma
expressão facial. Comprime os olhos,
balançando de leve a cabeça, se o tema
lhe é mais atraente. Sexo, por exemplo.
“O SENTIDO ÚLTIMO DAS
COISAS, DOS VALORES,
AO FIM DAS CONTAS
TOTAIS, O QUE QUE É
TUDO? POR QUE QUE
HÁ TUDO QUE HÁ? QUAL
SERÁ O SENTIDO ÚNICO
DESSE GESTO MEU?”
Em suas canções recentes (“Vinco” e
“Quando o galo cantou”), o sexo tem
algo do verso do poeta Manuel Bandeira
“os corpos se entendem, mas as almas
não”. Sorrindo, Caetano não acolhe
totalmente
o palpite. “Eu me lembro bem
disso de Bandeira. É bom, entendo o
que ele está dizendo. Sempre entendi. É
uma boa lembrança”, reflete. “Entendo
e há algo disso no que vivencio. Não é
tudo, mas é algo disso.”
O compositor relata que a editora
Companhia das Letras quis publicar
um pedaço de texto inédito, que ficou
fora de Verdade tropical. Exclusivamente
sobre sexo. O essencial, afi rma, foi
resumido e publicado no livro de 1997.
“Umas 70 páginas só sobre esse assunto.
Eu tinha feito um capítulo que se
chamava ‘Sexos’. Sexo no plural. E outro
capítulo que se chamava ‘Droga’. Sexo
no plural e droga no singular”, relembra.
O capítulo sobre drogas teria apenas
uma frase: “Odeio a cocaína”.
A vinculação entre sexo e pecado foi
determinante para que se distanciasse
da igreja. Sem esconder o “temperamento
místico”, o ateu nascido no dia de São
Caetano depurou sua visão da
religiosidade.
“O que as religiões oferecem é uma
coisa que é mil por cento indiscutível,
que é uma organização de respostas para
as perguntas que não têm resposta”,
observa. E prossegue: “O sentido último
das coisas, dos valores, ao fi m das
contas
totais, o que que é tudo? Por que que há
tudo que há? Qual será o sentido único
desse gesto meu, da minha atitude? A
religião traz uma resposta para isso. Cria
lendas, histórias que respondem a isso.
E isso é um poço sem fundo, porque a
gente não sabe, não vai saber”.
O Brasil é outro poço de perguntas
para Caetano Veloso, seja lá em qual
circunstância, se numa tarde do verão
baiano no Porto da Barra ou nas noites
outonais do Leblon. “Ele não está
fazendo arte pela arte. Sempre se coloca
em questões desafiadoras o tempo todo.
Procura essas situações. Ele discute
metafísica,
filosofia, história em qualquer
conversa, mesmo a coloquial”, testemunha
o músico e escritor Jorge Mautner.
A visão esperançosa do país sofre abalos
no cotidiano. “Há muitas coisas no Brasil
que parecem negar, veementemente,
essas esperanças que o próprio Brasil
me obriga a nutrir”, afirma Caetano.
Da sua aldeia brotam razões para o
desânimo. “Tenho 70 anos e nunca vi
um prefeito bom em Santo Amaro. Isso
dá a impressão de que o Brasil não tem
mesmo jeito. Eu me sinto um sujeito
inútil no panorama. Porque sou de Santo
Amaro e, se eu não pude ajudar a dar
jeito, para não virar uma porcaria, então
não sirvo pra nada.”
Como se vê, permanece como principal
contestador de seu próprio sentimento
de plenitude. O irmão, Rodrigo
Velloso, reconta a dúvida do pai quanto
ao destino do filho, mais apaixonado
pelas artes plásticas e pelo cinema no
início dos anos 60. “Quero ver o que
esse menino vai ser”, atiçava Zezinho.
Caetano larga um sorriso ao ser
questionado
sobre suas pazes com as antigas
vocações. “Resolvido, nada é. Eu te
digo com sinceridade: nada!”, confessa,
desarmado. “Conheço pessoas que têm
coisas resolvidas e eu fico fascinado
por essas pessoas, mal acredito que elas
existem.” Pausa. “Mas eu não tenho
nada resolvido.” Olhando o relógio, é
hora de Caetano Veloso, poeta insone
do Brasil, retornar ao elevador.
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