Sua mulher esperava no café. Era
manhãzinha, 7h30min, véspera de escola e de expediente.
O escritor José
Cardoso Pires subiu para buscar o caderno de anotações na gaveta da cômoda. Seu
caderninho vermelho, talismã de inspirações e personagens súbitos, essencial
como os óculos de leitura.
Quando ele foi retornar, já no elevador,
sofreu um derrame. Uma dor de cabeça insuportável e rápida. Sentou um pouco no
chão, para acalmar os nervos.
Recomposto do choque, ao empurrar a porta
da rua, ele viu que algo de estranho e sério aconteceu: não lembrava quem era e
o que precisava fazer. Foi acometido de uma amnésia total.
Ele estava
esvaziado de referências, jogado a uma infância adulta.
Em pânico,
seguiu reto pela multidão, encarando o tamanho dos prédios. Usando os cotovelos,
defendeu-se da correnteza humana com pressa.
Não tinha mais nenhuma
recordação viva.
Um pequeno derrame apagou a memória, o mapa de seus
desejos, a ordem dos compromissos.
Procurando se enganar e disfarçar o
horror, andava resoluto, decidido, para frente. Percorreu três quarteirões,
porém sentiu vontade de pensar um pouco e organizar as ideias.
Entrou no
café lotado, onde sua esposa lhe aguardava no balcão para beber um ristretto,
hábito do casal antes de mergulhar no trabalho.
Mas ele não lembrava que
tinha esposa, família, destino profissional.
O que impressiona é que a
primeira pessoa que ele procurou depois do esquecimento foi a própria mulher.
Recusou outras 50 que estavam presentes no lugar.
Foi falar com a sua
mulher. Sorteou seu rosto entre todos. Elegeu seus olhos castanhos diante de
dezenas de candidatos do momento.
Não hesitou em atravessar o salão para
cumprimentá-la, repetindo o encontro fundador do casamento de 40 anos. Assim
como no baile da faculdade, superou a timidez medrosa e pediu uma dança.
Repetiu aquilo que não sabia.
Ainda que não conservasse nenhuma
réstia de passado, aproximou-se da mulher e perguntou:
– Onde estou?
Pode me ajudar...
Ela riu, achando que seu marido armava uma
brincadeira, perdoou a piada estalando um beijo em sua boca. Ele se assustou com
o gesto.
– Que isso?
– O que foi, amor?
– Amor?
Sim, amor, ele entenderia depois quando recuperasse a saúde.
Amava obsessivamente sua Marina, a ponto de se apaixonar de novo e
sempre.
Talvez fosse se apaixonar cada vez que a enxergasse. Com alma ou
sem alma, com memória ou sem memória.
Seu corpo era um cavalo obediente
à dona.
Zero Hora
10/07/2012