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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

I'm missing you - Diana Ross



Desencontros

E eu fiquei aqui, sentindo toda essa solidão de não ser mais: eu e você. Fiquei aqui, com esse labirinto feito de todas as palavras que não vou dizer. Fiquei aqui, abraçada a papéis em branco que não tiveram tempo de se fazer bilhetes, fotografias nem histórias. Fiquei aqui, com aquele copo pela metade, a conversa pela metade, os olhos ocos de nós. Fiquei aqui, porque fui tantas vezes. Estive nas esquinas. Em todas elas, esperando você me achar. Fiz-me em convites. Em promessas. Até que. É isso: estou aqui. Eu e toda essa dor que eu soletro assim: saudade.
Luciana Nepomuceno

Manual do estilo desconfiado




Até segunda ordem, todo texto é suspeito

por Fernando Paixão

JUNTE-SE AOS DESCONFIADOS
Sempre fui um aficionado pelas artes e artimanhas do ato de escrever. Sou daqueles que consideram toda frase um parto – o que não implica, necessariamente, sofrimento. Tudo começa com o intruso espermatozoide que se instala em nosso cérebro e passa a acionar a sinapse daquela ideia, que ali permanece e recusa a se apagar, insiste diariamente em ser transformada em “mensagem para os outros”: texto.
Acontece, porém, na maioria das vezes, que passamos a macaquear as formas conhecidas de dizer. Repetimos as fórmulas, e mal. Confortados pelo doce prazer do nome impresso. Com frequência, tomamos um dentre os maneirismos disponíveis e o preenchemos com raciocínio e opinião. Mas sem perceber que as palavras e noções usadas já se encontram um tanto gastas por força da repetição e do hábito.
Qual o antídoto? Como sair do círculo repetitivo da inspiração? Se a resposta fosse simples, já teria surgido uma nova profissão no pobre mercado das letras: os estilistas de texto. Com lançamentos a cada ano de novos modelos de redação destinados aos diferentes segmentos: as notícias de jornal, as pesquisas acadêmicas, os romances de sucesso, e outros mais.
O jeito é mesmo desconfiar. Uma recomendação possível e honesta frente ao demo do senso comum que se infiltra no lero-lero de muitos escribas. Ler com o olhar desconfiado, pois ajuda a reconhecer muito gato que se passa por lebre, sobretudo quando assume ares de alta dicção. E, claro, escrever igualmente desconfiado – um pé atrás com as próprias afirmações. Até segunda ordem, todo texto é suspeito.

DESCONFIE DA FRASE LONGA
– Raros são os animais que podem dar saltos longos na natureza. Raros são os homens capazes de compreender uma série de frases compridas.
– Uma frase não se define pela extensão, senão pelo fôlego.
– As ideias que se alongam precisam girar em torno de um eixo. Cuidado com os malabarismos.
– A boa frase longa se contenta com passos curtos – e articulados.
– Para evitar a monotonia de uma série de frases longas, a alternância com a frase curta surpreende.
– As frases longas nunca são jovens.

DESCONFIE DA VÍRGULA
– Aqueles que tomam a vírgula por uma facilidade animam-se em encompridar os solilóquios. Melhor tomá-la por uma dificuldade.
– Toda vírgula implica dobrar uma esquina e continuar o mesmo caminho. O senso de direção não depende (só) dela.
– O texto que se iniciasse com uma vírgula teria antes de si o universo inteiro.
– Alguns escritores são acometidos da virgulite, típica de quem dá voltas ao pensamento.
– Existem as vírgulas da gramática e as do afeto.
– O pecado de Adão criou a primeira vírgula.

DESCONFIE DA PALAVRA GORDA
– Aquela que expressa ideia generalizante, usualmente abstrata. Além do peso.
– A gordura léxica está presente quando as palavras se inclinam para a retórica.
– O uso acumulativo de palavras obesas conduz a uma frase gorda.
– Antes de se expressar em palavras, a obesidade está no pensamento.
– A sintaxe é um recurso importante para engordar (ou emagrecer) a frase.
– Os parnasianos são os típicos escritores com sobrepeso.

DESCONFIE DA PALAVRA MAGRA
– Referente ao sentido direto, quase sempre em primeira acepção. Sem gordura.
– A magreza léxica se torna presente quando as palavras não chamam atenção para si.
– A ciência prefere exprimir-se por meio das palavras exatas. Só o osso interessa.
– A mesma palavra poderá ser mais ou menos delgada, a depender do contexto.
– O romance policial típico necessita de um estilo “magro” para colocar em ação os elementos da trama.
– A palavra magra se quer discreta e útil.

DESCONFIE DA CITAÇÃO
– A afinidade com o autor citado, por si só, não qualifica a citação. Então, o que a justifica?
– Não há como certificar o peso de duas citações opostas e igualmente claras e afirmativas.
– Existem citações de primeiro, segundo e terceiro graus. Quanto mais recuada no tempo, mais sábia.
– Poucos escritores citam os argumentos contrários às suas ideias. Pior para elas.
– Ninguém cita quem lhe parece “inferior”.
– Diz-me quem citas e eu te direi quem és.

DESCONFIE DO CLICHÊ
– O clichê transforma o senso comum em metal, peça que serve à máquina dos discursos.
– De tão usado, o clichê ficou cego, não sabe o que está dizendo.
– Clicheteiro é aquele que usa em demasia as frases conhecidas.
– O clichê apunhala o estilo.
– O clichê se aproxima de um ditado que não deu certo.
– O clichê é um chiclete usado.

DESCONFIE DO ADVÉRBIO
– Cabe ao advérbio dar um toque de relevo à frase.
– A circunstância define o colorido daquilo que se afirma; do contrário, predomina o vazio.
– Verbo e advérbio se atraem, mas nem sempre se encaixam.
– Os advérbios formam a polpa que reveste o caroço da frase central.
– Para garantir que seja exato, todo advérbio deve passar pelo setor de controle de excessos.
– Quem “mente” demais cai em descrédito.

DESCONFIE DO ELOGIO
– Monotonia: o elogio sempre se nutre de adjetivos.
– Boa parte das vezes o encômio vem antes de arrolados os argumentos.
– O elogio deve ser proporcional à qualidade moral e intelectual de quem o profere. Mas quem julga quem?
– A maioria dos elogios esconde a sua real motivação: o comércio de favores.
– Quem muito elogia deixa as palavras vazias.
– Elogiar a modéstia é um contrassenso.

DESCONFIE DO ADJETIVO
– Os adjetivos são como as cores, do suave ao berrante.
– Entre um e outro, recomenda-se a distância de algumas léguas.
– A culpa não está na palavra, mas no demiurgo que não sabe usá-la.
– O adjetivo funciona como o fermento da frase.
– Ao dispor de um adjetivo, indague-se: se ficar de fora, a frase empalidece?
– Faça psicanálise com os qualificativos que emprega.
– Adjetivos são palavras com alta variação de humor.

DESCONFIE DA (DES)CONFIANÇA
– A desconfiança é bem-vinda para que o estilo seja de bom quilate.
– A desconfiança é malvinda quando inibe a naturalidade da frase.
– O melhor estilo é aquele que se faz com a atenção posta no detalhe, nos dedos.
– Quem desconfia fia o texto pelo avesso.
– Quem (des)confia demasiado termina com as mãos no fiado.
– Desconfia quem deseja fiar de outra maneira.
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-63/poesia/manual-do-estilo-desconfiado

Sócrates e a democracia

Quando a nossa Fundação resolveu editar o livro “Pela democracia, contra o arbítrio: A oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já”, que tem um capítulo sobre a campanha das diretas, pedimos ao nosso amigo Sócrates que desse o seu depoimento. Ele atendeu ao nosso pedido e escreveu para nós o texto, que vocês podem ler abaixo:

ESPERANÇA E ENTUSIASMO:
[...] Caminhando com dificuldade naquele mar de gente pude, como raras vezes na vida, me sentir mais brasileiro. Os rostos eram plenos de esperança e de entusiasmo. A euforia ultrapassava qualquer expectativa que tivesse tido. O grito “Diretas já” já havia tanto tempo engasgado nas nossas gargantas era a bandeira que representava os que sofreram nas mãos da ditadura e a busca por um caminho mais justo e nosso. Como, aliás, era a democracia corintiana , que de há muito provocava intensas discussões sobre a redemocratização do país. Aquele movimento provocou profundas transformações na sociedade brasileira. Quem poderia imaginar que 20 anos depois tivéssemos um legítimo representante do povo portando a função presidencial.
Nada será mais belo do que aquilo que vivemos naquele período.


*Zilah Abramo
é presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e co-organizadora do livro “Pela democracia, contra o arbítrio: A oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já”.

Filhos de Gandhy




The Filhos de Gandhy at the starting point of the Lavagem do Bonfim

Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré
Todo o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhy
Iansã, Iemanjá, chama Xangô
Oxossi também
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhy
Mercador, Cavaleiro de Bagdá
Oh, Filhos de Obá
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhy
Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhy
Oh, meu Deus do céu, na terra é carnaval
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhy

Composição : Gilberto Gil

Afoxé dos Filhos de Gandhy




Esse é um dos movimentos sociais mais interessantes do Brasil, e que particularmente, merece minha atenção por além da riqueza dos elementos de sua cultura.
Constituído exclusivamente por homens, o bloco de Salvador (BA) é inspirado pelos princípios de amor e paz de Mahatma Gandhi. Além dessa política de conduta indiana e de suas vestimentas que são basicamente uma composição de toalhas e lençóis brancos, os Filhos de Gandhy possui uma tradição religiosa africana ritmada pelo agogô (instrumento musical formado por sinos originado da música yorubá da África Ocidental). Seus cânticos são de ijexá na língua Iorubá.
Com todos esses elementos reunidos, os Filhos de Gandhy se tornou o maior e mais famoso Afoxé da Bahia, ganhando aderência de seus elementos por demais partes do Brasil. Oficialmente o bloco conta com 10.000 integrantes.

A vestimenta e os colares dos Filhos de Gandhy

O título a que se dão as vestes dos Filhos de Gandhy é fantasia. Além dos panos brancos o trage é composto por um turbante e os que participam desse movimento trazem consigo um perfume de alfazema e colares longos de contas azuis e brancas.
Esses colares já são a marca do registro do movimento, sendo reconhecidos como "os colares dos Filhos de Gandhy" compondo um ritual social do bloco. Os colares têm um significado além daquele de simplesmente compor um figurino ou vestir uma fantasia; tradicionalmente os colares são oferecidos aos admiradores simbolizando uma maneira dos Filhos de Gandhy desejarem paz durante o carnaval e o restante do ano.
As cores dos colares é o que se pode chamar de um referencial religioso da paz e do afoxé que enfocam Oxalá - o Orixá maior - que está associado à criação do mundo e da espécie humana, sendo esse considerado e cultuado como o maior e mais respeitado Orixás do panteão africano. As cores dos colares é então uma referência aos modos de apresentação do Oxalá. Isso porque esse Oxirá de apresenta de duas maneiras no Candomblé: o chamado "Moço" (Oxaguiam) que é branco mesclado de azul, e o "Velho" (Oxalufam) de cor branca.
Assim, o branco e o azul intercalados é o fio de contas do Oxalá menino, o Oxaguiam, que correspondem: o branco a Oxalufam, seu pai. O azul provém de Ogum de quem é inseparável; as contas se tornam assim amuletos da sorte. Ogum, na mitologia yoruba, é o senhor dos metais e considerado o primeiro Orixá a descer do Orun (Céu) para Aiye (Terra) após a criação; visando uma futura vida humana.
Cada Filho de Gandhy usa o colar de acordo com a indumentária, da maneira que se achar elegante, não existe quantidade fixa de contas para cada colar, nem quantos colares se deve usar. Durante o carnaval, os Filhos de Gandhy mais jovens costumam trocar colares por beijos na boca, enlaçando as moças durante a festa com seus colares: "Um beijo por um colar" esse é o sentido do ritual entre os jovens Filhos de Gandhy.
Considerações Finais
O bloco possui algumas regras; como é composto apenas por homens, foi determinado que as mulheres pudessem participar assistindo aos desfiles e na confecção das indumentárias e roupas dos filhos de Gandhy, além de levar comida e bebidas aos participantes do desfile durante o cortejo. Bebidas alcoolicas também são proibidas por ser contra os ideais de paz que inspiraram a criação da doutrina do bloco dos Filhos de Gandhy.


http://pasargadabr.blogspot.com/2010/12/afoxe-dos-filhos-de-gandhy.html




Sem-teto japonês



Poemas de sem-teto anônimo causam comoção no Japão

Philippe Pons
Em Tóquio [16/03/2009]

Eles são cada vez mais visíveis. Mas os passantes cruzam com eles aparentemente sem vê-los. Indiferentes, constrangidos. Suas sombras furtivas, miseráveis, aqui e ali nas estações ou nos parques, lembram bruscamente a muitos de suas próprias dificuldades. Seu sofrimento parece incorpóreo. Eles não mendigam e sobrevivem dos restos da sociedade de consumo. Essa sociedade os ignora e foge deles, os sem-teto das grandes cidades japonesas. Dois mundos que andam próximos, mas fingem não se ver.
Completamente inquietante, uma voz se eleva deste mundo de "náufragos" da prosperidade. Desde o fim de 2008, o jornal "Asahi" publica poemas curtos de um autor sem-teto que permanece anônimo. E, certamente pela primeira vez, os leitores desse jornal descobrem através de suas palavras esse "povo de baixo" que, durante a noite, dorme em caixas de papelão aos pés daqueles que se apressam para não perder o último metrô.
Como outros jornais, o "Asahi" tem uma coluna poética na qual são publicados poemas do gênero clássico waka, curtos e de beleza austera e melancólica, enviados por leitores que foram selecionados por um júri. Os concursos de poemas pertencem a uma tradição milenar no Japão. E os jornais a seguiram. A julgar pelo número que cartas de incentivo que o "Asahi" recebe, os poemas desse homem miserável, da rua, emocionaram mais do que um leitor.

A canção de Gréco
"Acostumado a viver sem chaves, eu passo o ano novo. De que mais ainda preciso me desapegar?" "Esta rua se chama a rua dos filhos infiéis. Eu não tenho pais, nem filho". "O homem não vive somente de pão, mas eu passo meu dia com o pão distribuído..." Sob uma noite estrelada, essa canção de Juliette Gréco, com letras de Jacques Prévert e música de Joseph Kosma, embalou o seu sono: "Adormecendo sob um céu estrelado, escutei a canção de Gréco. Era só uma ilusão..."

O poeta anônimo assina seus textos com o pseudônimo de Koichi Koda, mas o campo "endereço" que acompanha a publicação do poema, normalmente obrigatório, comporta a simples menção: "sem". O autor provavelmente vive no bairro de Kotobuki-cho, em Yokohama, uma das vilas de albergues decadentes, uma dessas armadilhas da cidade para onde correm os sem-teto.
A letra cuidadosa e a referência à canção de Juliette Gréco (que data dos anos 1950) fazem pensar que o homem é culto e deve ter mais de 70 anos. Logo depois da publicação de seus poemas pelo "Asahi", o poeta anônimo enviou outro: "Ao ler o artigo a meu respeito, como se tratasse de alguma outra pessoa, lágrimas me vieram aos olhos".
O jornal o chamou para que se apresentasse, nem que fosse para lhe pagar a pequena remuneração que acompanha a publicação do poema. "Estou comovido com sua gentileza, mas por enquanto não tenho coragem de entrar em contato com vocês", ele respondeu.

Tradução: Lana Lim

filosofia do samba

Pra cantar samba
Não preciso de razão
Pois a razão
Está sempre com os dois lados

Candeia

O negócio é falar de samba no dia do samba?
Dia do samba, o dia em que Ary conheceu a Bahia. Esta é uma das histórias.
Tomei a liberdade de falar do samba e com os seus heróis e falei antes do tal dia (nem lembrava do dia) : http://klaxonsbc.com/2011/11/29/samba-presta-esta-homenagem/ para adiantar que o samba dispõe de uma história que supera o dia que deram para ele. O samba segue samba com sangue negro, branco e mestiço, nobre origem da mil vidas e mil faces. Ele muda pra driblar. Samba que alegra, samba que entristece, pois é triste sua origem. Deixa falar. Pra falar de samba, tocar o samba, não precisa de razão.
O samba tem escopo, apoio e filosofia. Mora na filosofia. É bom que o samba siga apenas como escravo dos seus gozos. E não é por falta de filosofia que o samba vai perecer. Nem que seja aquela filosofia lá do quintal. E o samba apresenta suas odes filosóficas. Em homenagem ao samba. Dos bambas filósofos que cantaram e defenderam o samba. Lembrando que nínguem é dono da verdade do samba e ele não carece de catedráticos, nem de autoridades pra falar por ele.
De Noel, de Monsueto, Candeia, do Mussum, Adoniran…e daqueles com nome qualquer..


Milton Nascimento - filho de Minas




MORRO DO ISOLAMENTO ALMOÇO MINEIRO



RUBEM BRAGA 

Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e atra, de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.
Falamos de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos várias oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo, então, para assuntos muito escabrosos discutiu-se até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que, infelizmente, não foi possível anotar, em vista de estarmos situadas na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia funcionar sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal.
Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública, nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto forte, poderoso, saudável.
É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.
Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora lingüiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O, lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de seu uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e mela da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante da e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo louro. Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. E pelo do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve - do prato inteiro, que fumegava suave mente, subia para a. nossa alma um encanto abençoado de coisas simples de boas.
Era o encanto de Minas.
Setembro, 1934

Os dois pedaços de mim - ARNALDO JABOR



Minha lembrança mais antiga sou eu mesmo encolhido em minha cama de menino, no meio da noite, ouvindo beijos e gemidos de meus pais se amando no quarto ao lado.

De manhã, fui acordado por minha mãe, trêmulo de angústia. Ela não era mais a mesma; era uma mulher diferente, com a camisola transparente por onde se viam seus seios brancos.

Meu pai era oficial da Aeronáutica e, grande piloto, voava de rodas para cima, fazendo piruetas sobre nossa casa. Eu e minha mãe, juntos no jardim, víamos o monomotor desenhar parafusos no céu para ela, pálida de orgulho e paixão, até que uma das asas caía e o avião vinha despejando fogo sobre nós, esmagando minha mãe no meio do jardim de rosas, sobrando apenas eu, entre destroços e chamas.

Com medo de sonhar de novo, tentava não dormir, mas o cansaço me vencia, e lá vinha o avião em sangrento parafuso em meu sono e eu acordava chorando por meus pais mortos no jardim.

Nessa época, adquiri um estranho hábito: parir-me. Logo que minha mãe me beijava e fechava a porta, tomava-me a volúpia de ficar sozinho no quarto como um clandestino; era como se eu traísse minha mãe comigo mesmo. E aí começava meu ritual de nascimento.

Eu despia o pijama assim que ela saía e começava o parto. Imaginava-me inteiramente liso, como raspado para uma cirurgia e, de dentro de meus membros, saía um outro corpo, como a borboleta da crisálida. Meus pés surgiam de dentro dos velhos pés, minhas panturrilhas rompiam a frágil casca da pele e emergiam fortes e prontas para gols de bicicleta que eu via na TV e com o peito do Tarzan, que eu via no gibi a combater gorilas. Era assim que conseguia dormir, imaginando o que eu não era. Eu era 'nada' e tinha de me inventar. Sentia-me um órfão; seriam eles meus pais mesmo?

Minha mãe falava muito na ex-noiva de meu pai, Ivone, creio. Ele largara-a praticamente na porta da igreja, apaixonado por minha mãe que, apesar do orgulho de 'favorita', vivia com medo da volta da 'rival'. Comecei outro delírio: se meu pai não tivesse conhecido minha mãe, eu não existiria; e, se ele tivesse casado com Ivone e minha mãe com outro homem e tivessem filhos, haveria dois pedaços de mim soltos no mundo - duas pessoas com metade do que eu sou, a parte de minha mãe e a parte do meu pai. Como seriam os dois pedaços de mim? E eu imaginava seus rostos, mas vivia no fundo do nada.

Queria ser parte da vida de meus pais, mas não conseguia entrar.

Não se largavam um minuto, mas não se entendiam. Com a TV, o cinema americano, os beijos ardentes de amor romântico, a nudez nas praias, os casamentos já não tinham a solidez obediente do passado, com pai severo, mulher calada e filhos reprimidos. Afinal, o que faltava entre meus pais? Eles se amavam, mas não sabiam 'como'. Era como se tivessem saudade de um amor que não acontecera. Eu via as inúmeras brigas por nada, seguidas de soluçantes reencontros, de abraços convulsos, via os ciúmes de minha mãe da prima gostosa de maiô duas peças, vi a poltrona de veludo em que ele meteu o pé enlameado em fúria, via as tardias chegadas de meu pai, voltando de misteriosas reuniões, vi minha mãe procurando alívio numa médium espírita que lhe dava conselhos com voz grossa de 'caboclo', minha mãe sofrendo com a novela de rádio, minha mãe ao telefone com minha tia, chorando, na certeza de que ele tinha uma amante, via o silêncio de meu pai vendo TV de tarde, não respondendo mais às falas compulsivas de mamãe, que me disse, orgulhosa e triste: "Seu pai foi o único homem que eu beijei, mas ele tem outra, tem outra..."

Uma noite, já adolescente, segui meu pai. Seu carro parou na praia e uma mulher entrou. De madrugada, vi pela janela meu pai voltando no velho Ford 61. Chovia muito. Ele saltou do carro e ficou parado na chuva, sem entrar. Ele parecia sentir prazer de se molhar ali, na porta de casa. Da janela, eu gritei: "Papai, entra!" Demorou ainda, mas acabou entrando, ensopado e trôpego de bebida e logo eu ouvia minha mãe no quarto, chorando alto: "É a Ivone! Ela voltou pra te levar! É ela!"

Meu pai continuou a sair de noite e mamãe chorava: "É ela!... Ivone!" (como se depois de tantos anos, Ivone, velhinha, 'fizesse a vida' na Praia de Copacabana).

Minha mãe se perdia em mais delírios em sua solidão amargurada, diante do silêncio duro de meu pai. "Ele não aguenta mais" - eu pensava.

Um dia, mamãe começou a morrer - "dois a três meses no máximo" -, disse o médico. Meu pai não deixou ninguém cuidar dela e foi seu perfeito enfermeiro até a morte, quando vi meu pai chorar alto, mas sem lágrimas no rosto. Era um gemido seco - dizem que octogenários não têm lágrimas. Trancou-se em casa e não queria ver ninguém. "Vamos dar uma volta, pai, tomar um chope..." Não havia hipótese. Durou meses isso. Eu e minha irmã queríamos visitá-lo: "Não preciso, não quero ninguém aqui..!"

Um dia, achei uma chave de sua casa e fui surpreendê-lo. Abri a porta e a casa estava vazia de móveis. Só um sofá e meu pai sentado ali.

Em todas as paredes da casa havia retratos de minha mãe, muitas dezenas - meu pai tinha ampliado todas as fotografias de mamãe, seu rosto enchendo as paredes até o teto: ela sorrindo num navio, ela de casaco de pele, ela jovem e linda de vestido de baile, ela e o casamento, ela no Pão de Açúcar, ela em closes enchendo as paredes da casa vazia. Sentei ao lado de meu pai no sofá. Ele não falou nada, mas deu um gemido seco como no dia do enterro.

Semanas depois, eu quis voltar: "Não precisam vir aqui!" - , disse ao telefone.

Fui assim mesmo.

A casa estava vazia e a TV ligada muito alto com um programa vespertino, Jeannie É um Gênio, que ele gostava de ver.

Papai continuava sozinho no sofá; só que agora estava caindo para o lado, a luz da TV sobre ele, muito pálido, imóvel, com um filete de sangue saindo do nariz. Em volta, como um céu estrelado, dezenas de rostos de minha mãe sorriam para ele. Senti o peso de minha orfandade. Era como se eu não existisse. E pensei nos dois pedaços de mim, soltos no mundo, se meu pai e minha mãe nunca tivessem se encontrado.

Amor, paixão e amizade

Outras Ideias


MIRIAN GOLDENBERG

miriangoldenberg@uol.com.br
Amor, paixão e amizade

O maior problema do casamento é a morte do desejo sexual, já que este se alimenta da falta, da incerteza

Meus pesquisados apontam três ingredientes presentes no casamento: amor, paixão e amizade. O amor aparece como um sentimento amplo e difícil de ser definido. É diferente da paixão, inicial e provisória, que se transforma em amor ou acaba.

Segundo os entrevistados, é impossível manter um estado permanente de paixão, por dois motivos: ela não resiste ao cotidiano e sua irracionalidade é insuportável.

Quando não acaba como fogo de palha, a paixão se transforma em algo mais tranquilo: o amor. Já esse, para durar, deve conter resíduos da paixão inicial ou corre o risco de se transformar em outro sentimento: a amizade.

O casamento deve combinar os três sentimentos: uma grande dose de amor com pitadas de paixão e amizade.

É preciso ter cuidado para não desequilibrar essas porções, já que uma grande dose de amizade poderia destruir o desejo sexual.

O amor se encontra entre a paixão e a amizade. É menos explosivo do que a primeira, mas menos morno do que a segunda. É mais tranquilo do que a paixão, mas menos seguro do que a amizade.

Se a paixão é insuportável por sua imprevisibilidade e sua loucura, o perigo da amizade está na racionalidade e na rotina. Um equilíbrio complicado é necessário para que uma e outra estejam presentes no casamento, mas que não sejam mais fortes do que o sentimento de amor.

A paixão é associada ao excesso de sexo. A amizade é relacionada à falta dele.

O sexo deve ser frequente e agradável, mas mais controlado do que na paixão. O casal deve estar atento para não deixá-lo cair na rotina e na burocracia, fantasma que ameaça os relacionamentos.

A ideia de que é possível administrar esses três sentimentos apareceu entre os pesquisados.

A paixão, mais irracional, deve ser domada, mas não pode ser excluída do casamento. Uma dose controlada de insegurança e de incerteza sobre a posse do outro é considerada necessária para alimentar o desejo sexual.

Essa matemática complicada torna os casais reféns de lógicas contraditórias. Os pesquisados apontam como perigos para o casamento a rotina, a burocratização, a mesmice. Mas falam também da necessidade de fidelidade, segurança, tranquilidade.

O maior problema do casamento, dizem eles, é a morte do desejo sexual, já que este se alimenta da falta, da insegurança, da incerteza.

Como conciliar, então, amor e desejo sexual no casamento? Eis a questão.

MIRIAN GOLDENBERG é antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de "Por Que Homens e Mulheres Traem?" (Ed. BestBolso)
 
 

O acervo de Gilberto Gil

Gilberto Gil forneceu mais de 30 mil itens, entre recortes de jornais, manuscritos, letras de músicas e fotos, para que o Instituto Antônio Carlos Jobim criasse o Acervo Digital Gilberto Gil (http://www.jobim.org//gil). Para comemorar o lançamento do espaço virtual, Gil fará um show no próximo dia 7 de dezembro, no Espaço Tom Jobim, no Rio de Janeiro. Confira alguns documentos que constam do site

 
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Capa de uma revista que trouxe as cifras de músicas de Gil (década de 60)

Acervo Gilberto Gil