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terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Minha Vida Resumida


As regras do jogo ou política, literatura e outras coisas que me afetam






Uma tristeza grande que eu tenho é que eu devo me aposentar mal, mas um tanto de gente que eu gosto, nem isso.
Vivemos em um país que fez uma opção clara pela crueldade, o descompromisso com a vida humana, que escolheu a mediocridade, a violência e a exclusão. Eu tenho dificuldade até de respirar.
Não é só quem elegeram pra presidente – já seria vergonha o bastante – mas todo um projeto sustentado por legislativo, judiciário, governadores e tudo. Driblo a angústia com cerveja, mar e amores, mas tá difícil manter a ginga e o preparo físico que isto demanda.
Ninguém me demove da idéia de que enquanto estivermos atrelados à pauta corrupssaum só perdemos e recuamos. O debate, penso eu, deveria ser sobre projeto de país, de mundo, de futuro, sobre políticas públicas, sobre o papel do Estado, sobre controle social, sobre organização popular. Não estou defendendo o "rouba mas faz" ou achando que se deve ignorar processos ilícitos, mas entender que é para além do punitivismo moralista que estão as questões que transformam estruturas.
Tem aquele best seller do Jeffrey Archer, A Filha Pródiga. É a história filha de um imigrante polonês rico, Florentyna, que decide entrar para a vida pública e vai de congressista até, bom, quem quiser, lê o livro. Tem algumas coisas que me emocionam, que nem quando vejo West Wing ou escuto a Erundina falando. O serviço público, que coisa comovente.
Uma casa é um sumidouro. Agora há torneiras pingando.
É legal ter uma planilha, desde que comecei a usar passei a equilibrar melhor as contas. Facilita porque tenho salário fixo, não posso fazer coisas extras pois dedicação exclusiva. Não vai ter mais, é isso, se vira. Faço a lista das despesas fixas, a projeção daqueles meio variáveis no valor mas constantes na existência e bola pra frente. A desvantagem: é dia 05 e eu sei exatamente pra onde vai cada moeda que ainda tem no banco até a entrada do próximo salário. Não posso nem pedir uma pizza, daqui até fechar a próxima fatura do cartão, o que só acontece dia 05 do mês que vem. Neste ínterim, se não posso pedir pizza que dirá ir a Fortaleza ou me preparar direitinho pra receber família no Carnaval.
Gostaria de ser mais sofisticada mas estou ansiosa pelo retorno dos episódios de Station 19.
Foi uma viagem maravilhosa, meu Tour Sudeste. Rendeu abraços, um delicioso licor, um anjinho de cabeça quebrada, muitas risadas, promessas de reencontro, belezas até onde a vista alcançava - e além. Mas nos 45 do segundo tempo perdi meu kindle. Deixei naquele bolso na frente da poltrona do avião (quem mandou ficar lendo ao invés de dormir e babar, como em toda viagem). Sinto saudades da sensação de ter uns trezentos livros à mão.
Status laboral: abraçando o mundo com as pernas, um passo maior que as pernas, pernas pra que te quero.



Por Luciana Nepomuceno
https://borboletasnosolhos.blogspot.com/

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Prezado amigo Afonsinho


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Se o futebol teve um herói de esquerda, esse cara foi o Afonsinho. Personagem carismático, destemido, engajado, por vezes quase quixotesco, o rebelde meia do Botafogo ocupou um lugar muito especial no imaginário coletivo do Brasil dos anos 70, um país ansioso por transformações sociais e em busca da tão sonhada abertura política. Ele foi o primeiro líder profissional das estrelas dos gramados a lutar pelo seus direitos, uma luta pela qual pagou um preço caro, mas que, como ele mesmo não se cansa da dizer, valeu a pena.
Afonsinho dentro de campo era um gênio, no toque de bola e no drible, fora dela o gênio foi cassado, por suas escolhas não serem do agrado dos generais e dos cartolas de então.
Infelizmente o meio campista nunca foi convocado para a seleção Brasileira, o que se justifica pelo fato de suas posturas serem de confronto ao regime militar e a estrutura do futebol nas décadas de 70 e 80 do século XX.
Afonso Celso Garcia Reis, jogador, médico, musicista, boêmio, viveu até sua adolescência em Jaú, cidade do interior de São Paulo. No início da década de 60 ingressou nas divisões de base do XV de Jaú e em seguida, foi jogar no Botafogo Carioca.
O Botafogo, que ele tanto amou, não foi capaz de retribuir tal sentimento. Nos anos 70, nem mesmo o futebol escapou da ditadura militar. Eram os tempos dos campeonatos inchados para atender aos interesses de ''integração nacional''. Torneios que, no final daquela década, chegaram a ter quase cem clubes. Aonde a Arena vai mal, põe um time no campeonato nacional. Aonde a Arena vai bem, põe um também, era o lema da CBD. Por alguma razão insondável, os militares não gostam de barba e cabelo comprido. Afonsinho sabia disso, claro. Mas, como não jogava para um regimento e sim para um time de futebol, achou que poderia cultivar tranqüilamente seus longos cabelos e uma barba de fazer inveja a qualquer companheiro da época. Ledo engano.
Barrado no Botafogo em 1971, até de treinar, por se recusar a obedecer as ordens dos dirigentes do clube que o obrigavam a cortar o cabelo e a barba, impondo através desta medida, a cultura autoritária e repressora dos ditadores. No Brasil, cabelos e barba comprida, em meado da década de 70, era layout irreverente. Usuários eram confundidos como subversivos ou fora da lei.
Os conservadores dirigentes do clube acreditavam que ficariam mal com o governo se mantivessem no time aquele ameaçador barba ruiva, por maior que fosse o seu talento. Além disso, crime dos crimes, Afonsinho era letrado. Pior ainda, politizado, diferentemente da maioria dos jogadores monossilábicos, era líder, inteligente, combativo e suas entrevistas eram marcadas por posições firmes. Cursando medicina na faculdade, o articulado barbudo fez amizades com músicos, artistas e intelectuais e passou a liderar movimentos estudantis no campus. Não por acaso, o craque foi eternizado numa canção de Gilberto Gil, "meio-de-campo" cantada pela saudosa Elis Regina ("Prezado amigo Afonsinho; eu continuo aqui mesmo; aperfeiçoando o imperfeito; dando tempo, dando jeito") e virou filme pelas mãos de Osvaldo Caldeira. O documentário Passe Livre foi considerado importantíssimo na consolidação dos circuitos alternativos de cinema no Brasil.
A atitude engajada e as ''más companhias'' acabaram barrando Afonsinho no Botafogo. Para piorar, além de não aproveitar o jogador (sem o jogador, o Botafogo perdia muito da inteligência de seu meio-de-campo. Afonsinho antevia a jogada, mal recebia o passe já acionava rapidamente um companheiro de ataque, diferente de vários meias que tocavam a bola de ladinho, jogava em profundidade e tinha uma belo arremate de meia distância), os cartolas se recusavam a negociá-lo. Foi quando ele decidiu recorrer à Justiça, algo que os jogadores da época não conheciam nem de nome. Numa decisão surpreendente, o TJD concedeu passe livre a Afonsinho, transformando-o no primeiro jogador alforriado do futebol brasileiro. Durante a luta judicial, jogou pelo Olaria, depois de um ano de luta na justiça, recebeu o direito ao passe livre para jogar onde quisesse. A vitória de Afonsinho na Justiça Desportiva nos Anos 70, foi a vitória pelo direito ao trabalho e por liberdade de expressão e de organização.
Esta opção, fez com que a ditadura o perseguisse, sendo fichado no SNI (Serviço Nacional de Informações), como subversivo e comunista. E mais que isto, em um período de terror e do cala boca, questionar o sistema futebolístico de então, era bater de frente com os militares. No entanto nada o impediu de continuar lutando por justiça e democracia.
As pressões do governo militar impediram que ele obtivesse um bom contrato. Ainda assim, ele que havia jogado com Garrincha no Botafogo foi jogar no Santos de Pelé antes de perambular por vários clubes como: Vasco, Flamengo, Atlético Mineiro, voltou ao XV de Jaú e encerrou a carreira em 1982, aos 35 anos de idade, no clube que por pouco não o lançou, o Fluminense.
Como os bons lutadores são aqueles que continuam até o fim, Afonsinho jamais deixou de se empenhar pelas causas sociais. Hoje exerce a profissão para a qual se formou. Depois de ver e ouvir tanta sandice no futebol, foi trabalhar como médico-psiquiatra do Instituto Pinel, onde realiza um trabalho de esporte, recreação e lazer como complemento do tratamento psiquiátrico, visando a combater a estigmatização dos deficientes mentais. Quem conviveu com tantos cartolas deve tirar isso de letra...
Além disso, o ainda barbudo, mas agora com cabelos ralos e grisalhos, comanda um projeto que promove a assistência a crianças carentes através do futebol. A escolinha do Afonsinho fica atualmente na escola Tia Ciata, entre o Terreirão do Samba e o edifício Balança Mas Não Cai. Ao seu lado no projeto, sugestivamente batizado de Ex-Cola, estão os antigos companheiros de Botafogo Nei Conceição e Orlando Vovô.
Muita gente esteve envolvida com a Ditadura, muita gente foi vítima da Ditadura, mas só um brasileiro venceu a Ditadura e este homem foi, Afonsinho.
Como o Navegante Negro do Aldir Blanc, aquele que tinha por monumento as pedras pisadas do cais, Afonsinho não colheu todas as glórias que um craque como ele poderia colher. Mas obteve uma glória que poucos jogadores obtiveram na carreira: o respeito como cidadão e líder. Em meio a tantos jogadores que se calaram, Afonsinho teve a coragem de lutar, ainda mais... naquela época.

fonte: arquivos do Jornal do Brasil


Plínio Sgarbi
Enviado por Plínio Sgarbi em 26/10/2005
Código do texto: T63946 
Classificação de conteúdo: seguro






Meio de Campo

Composição de Gilberto Gil

Prezado amigo afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

COMEÇO PARA UMA HISTÓRIA SEM FIM



Como uma foto, um porteiro e um livro de registros complicaram ainda mais a investigação do caso Marielle


ALLAN DE ABREU, MALU GASPAR, THAIS BILENKY E FERNANDA DA ESCÓSSIA
06nov2019



ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO


Em 22 de janeiro de 2019, o celular do ex-policial militar Ronnie Lessa piscou: surgiu na tela uma foto do livro de visitas ao condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca, no Rio, onde ele morava. Lessa estava em liberdade, mas já era suspeito de matar a vereadora carioca Marielle Franco, em 14 de março do ano anterior. A foto no celular, enviada pela mulher de Lessa, Elaine, mostra um registro manuscrito de que, na tarde do fatídico 14 de março, Élcio de Queiroz, também acusado pelo assassinato de Marielle, estivera no condomínio e pedira na portaria para ir à casa 58, onde morava o então deputado federal Jair Bolsonaro. A imagem poderia ser importante para a defesa da dupla Lessa/Queiroz, pois contradiz os termos da acusação do Ministério Público, segundo a qual quem recebeu a visita de Queiroz naquela tarde foi Ronnie Lessa. Ou seja, os promotores sustentam que o visitante foi à casa 65/66, a casa de Lessa. De lá, segundo a denúncia, os dois saíram para matar Marielle. O conteúdo da mensagem enviada por Elaine ao marido tumultuaria a já tumultuada investigação do caso Marielle.
Nesse meio tempo, porém, a foto com as informações do livro de visitas do condomínio ficou esquecida no telefone de Lessa – até os primeiros dias de outubro, quando as promotoras responsáveis pela investigação do assassinato tomaram conhecimento dela. Lessa e Queiroz sempre haviam negado ter se encontrado no condomínio no dia do crime. A foto reforçava essa versão: segundo a imagem do livro, Queiroz fora visitar Bolsonaro, não o comparsa.

Lessa e Queiroz foram presos em março deste ano, acusados pelas mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes. Por que demorou tanto tempo para as promotoras tomarem conhecimento da foto? Porque os peritos da Polícia Civil levaram sete meses – entre março de 2019, quando o telefone foi apreendido, e outubro – para conseguirem quebrar a senha do celular de Lessa. No dia 1º de outubro, a TV Globo teve acesso ao livro de registro de entradas e saídas do condomínio Vivendas da Barra, dando início a uma investigação feita pelos repórteres da emissora, segundo nota do diretor-geral de jornalismo da Globo, Ali Kamel, divulgada esta semana. Ao ser levada ao ar pela emissora, 28 dias depois, a investigação dos repórteres sobre quem Élcio Queiroz fora visitar naquele 14 de março traria ainda mais dúvidas sobre um inquérito policial que já colecionava mais perguntas do que respostas.

No dia 4 de outubro, Lessa e Queiroz mudaram suas versões pela primeira vez desde que foram presos e acusados pelo crime, em março de 2019. Admitiram, em audiência judicial, que estiveram juntos no dia do assassinato de Marielle, no Vivendas da Barra, e que, de lá, saíram para assistir pela tevê ao jogo do Flamengo contra o Emelec do Equador, num bar próximo. Continuaram a negar, porém, a autoria do crime. A reportagem da piauí assistiu aos depoimentos de Lessa e Queiroz, concedidos por videoconferência do presídio federal de Porto Velho, ao juiz Gustavo Gomes Kalil. Mais magros, eles demonstraram segurança nas respostas ao juiz. Ao final, Lessa mandou um beijo para a advogada, que assistia ao depoimento no Rio.

Estimulado pela foto do livro de visitas do condomínio encontrada no telefone de Lessa, o Ministério Público obteve autorização judicial e apreendeu o livro original da portaria do Vivendas da Barra no dia 5 de outubro. Dois dias mais tarde, o síndico do condomínio entregou voluntariamente à polícia, em um CD-ROM, as gravações das conversas mantidas entre a portaria e as casas dos moradores entre janeiro e março de 2018. Naquele mesmo 7 de outubro, o porteiro responsável pela anotação do dia 14 de março de 2018 foi ouvido pela primeira vez pela Polícia Civil e repetiu o que anotou: Queiroz procurou por “seu Jair” na casa 58, e o “seu Jair” atendeu. Indagado novamente no dia 9, o porteiro reiterou o depoimento anterior. Naquele mesmo dia, o governador do Rio, Wilson Witzel, encontrou-se com Bolsonaro durante uma festa de aniversário em Brasília e, segundo o presidente, disse a ele que seu nome fora citado nas investigações do caso Marielle. Witzel nega.

No dia seguinte, 10, o procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, e a promotora do caso, Simone Sibilio do Nascimento, levaram o caso ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, onde tramitaria eventual investigação contra o presidente da República. Segundo nota encaminhada à piauí pela assessoria do Ministério Público, isso foi feito porque, “a partir do momento em que foi citada uma autoridade com foro de prerrogativa de função, nenhuma diligência que tangencie o depoimento do porteiro pode ser adotada até a manifestação do STF”.

A versão de que um porteiro do condomínio citara Bolsonaro, levando o caso ao Supremo, começou a se espalhar pelas redações. Segundo Kamel, no meio da apuração, “uma fonte absolutamente próxima da família do presidente Jair Bolsonaro procurou a emissora para dizer que ia estourar uma grande bomba”, porque a investigação esbarrara num personagem com foro privilegiado. “Por que uma fonte tão próxima ao presidente nos contava algo que era prejudicial ao presidente? Dias depois, a mesma fonte perguntava: A matéria não vai sair?”, questiona Kamel na nota.

Em 29 de outubro, o Jornal Nacional, da Rede Globo, tornou público o conteúdo do depoimento de um dos porteiros do condomínio à Polícia Civil e ao Ministério Público. A reportagem destacou que, naquele 14 de março, dia do assassinato de Marielle, Bolsonaro não estava no Rio, mas em Brasília.

Em 30 de outubro, Bolsonaro atingiu seu recorde diário de menções no Twitter durante o mandato presidencial, 1,6 milhão. Naquela manhã, como reação à reportagem do JN, o vereador Carlos Bolsonaro divulgou dois vídeos, o primeiro às 6h42 e o segundo às 9h26, ambos exibindo a tela do computador da administração do condomínio, com a relação de ligações telefônicas feitas da portaria do Vivendas da Barra. No primeiro vídeo, o áudio exibido confere com a duração em segundos que consta no nome do arquivo, conforme conclui perito aposentado da Polícia Civil do Distrito Federal ouvido pela piauí. Nele, Carlos toca o áudio da chamada entre a portaria e a casa de Ronnie Lessa, autorizando a entrada de Queiroz no dia 14 de março (https://twitter.com/CarlosBolsonaro/status/1189537947881746442).

Já o segundo vídeo, com áudios feitos naquela mesma tarde da portaria para a casa 58 (de Jair Bolsonaro) e a 36 (de Carlos), é inconclusivo, porque Carlos editou o trecho inicial dos áudios, que não conferem com a duração que consta no nome dos arquivos (https://twitter.com/CarlosBolsonaro/status/1189579300116279296).

O áudio com a chamada para a casa 58 tem 11 segundos, quando a planilha informa que demorou 29; e o áudio da ligação para a casa 36 tem 12 segundos, quando, segundo a planilha, deveria ter 27. Para o perito aposentado, há “incongruência” no vídeo. Mas ele ressalta que uma análise definitiva só é possível a partir da perícia do computador da portaria.

Procurado pela piauí, o Ministério Público não se pronunciou sobre os vídeos de Carlos Bolsonaro. Em nota, a assessoria do órgão informou apenas que “qualquer questão envolvendo o processo […] pode ser sanada em consulta aos autos junto ao Tribunal de Justiça”. O gerente do condomínio não foi localizado.

Os vídeos de Carlos Bolsonaro, o depoimento do porteiro, a demora em analisar os áudios das ligações da portaria e por que a foto do livro de visitas do condomínio foi parar no celular de Ronnie Lessa são alguns dos pontos obscuros que, nos últimos dias, complicaram a investigação sobre a morte de Marielle Franco e colocaram na berlinda a atuação do Ministério Público.

Somente depois que a Rede Globo divulgou o caso, no dia 29, é que o Ministério Público do Rio pediu perícia nas gravações que constam do CD-ROM entregues à polícia pelo condomínio – mas não no computador do Vivendas da Barra, onde constam as gravações originais. Com base no parecer da perícia, as promotoras do caso, Carmen Eliza Bastos de Carvalho, Simone Sibilio do Nascimento e Letícia Emile Alqueres Petriz, em entrevista coletiva, desqualificaram o depoimento do porteiro, dizendo que ele mentiu ao afirmar que Queiroz procurou por Jair Bolsonaro na portaria – segundo os peritos, os áudios mostram que foi Lessa quem atendeu à chamada do porteiro naquele dia.

No entanto, ao deixar de analisar os arquivos do computador do condomínio, a perícia do Ministério Público ignorou a hipótese de algum arquivo ter sido apagado ou renomeado antes de ser entregue à polícia. O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, tumultuou ainda mais o caso ao anunciar no sábado, 2 de novembro, que pegou os áudios da portaria antes que os arquivos fossem “adulterados”.

Para tornar o caso ainda mais complexo, o porteiro que anunciou a presença de Élcio Queiroz para Ronnie Lessa naquele 14 de março de 2018 não é o mesmo que deu depoimento implicando Bolsonaro. Revelada pelo jornalista Lauro Jardim em O Globo, a informação coincide com a dinâmica de funcionamento da portaria, segundo moradores: a cada turno de trabalho, o chefe do serviço é o encarregado de anotar as visitas no livro, enquanto um auxiliar interfona para as casas. Esse segundo porteiro deve ser ouvido pelo Ministério Público nos próximos dias.

Não está claro por que o chefe da portaria – que está de férias e mora na Zona Oeste do Rio, área de atuação da milícia – anotou no livro de visitas que Queiroz ia para a casa 58, se o visitante foi para outra residência. Várias hipóteses são consideradas: 1) o porteiro realmente ouviu isso de Queiroz, e portanto não mentiu; 2) o porteiro se atrapalhou no dia da visita e, para não admitir o erro, citou Bolsonaro no depoimento; 3) o porteiro foi pressionado por pessoas ligadas à milícia a citar Bolsonaro no livro e no depoimento com o objetivo de levar o caso ao Supremo Tribunal Federal, onde a tramitação é mais lenta do que na primeira instância.

Se o porteiro mentiu, ainda não se sabe o motivo. Mas há uma convergência de fatos nos primeiros dias de outubro, quando a foto do livro de visitas, guardada no celular de Lessa, caiu nas mãos da perícia. Foi aí que Lessa e Queiroz mudaram sua versão e admitiram ter se encontrado no Vivendas da Barra no dia do crime. É possível que já soubessem que a foto do livro do condomínio, mesmo com uma anotação questionável, indicaria o contrário e tumultuaria a investigação.

Para as promotoras, o porteiro mentiu. A atuação delas também tem sido criticada e foi contestada internamente no Supremo, já que o foro competente do inquérito que investiga a morte de Marielle é o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e não o órgão máximo de Justiça do país. Toffoli alertou os membros do Ministério Público sobre isso. A promotoria cometeu ainda um segundo erro ao não informar o procurador-geral da República, Augusto Aras, do caso.

Essa interpretação foi confirmada pelo especialista em direito administrativo Adilson Dallari, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Elas [promotoras] extravasaram a competência delas, agiram de maneira que não é permitida pelas leis que disciplinam a atuação do Ministério Público”, afirmou Dallari. Por ser, em seu entendimento, uma conduta funcional irregular, o Conselho Superior do Ministério Público poderá abrir um processo administrativo contra os integrantes envolvidos, o que poderia levar a absolvição, advertência, suspensão ou mesmo perda do cargo, a depender da gravidade atribuída aos servidores.

Para o professor, contudo, o mais grave é o vazamento de parte do inquérito sigiloso, que também deveria ser investigado, e os responsáveis, penalizados. Aras arquivou o caso quando este chegou à PGR e desmereceu o depoimento do porteiro que citava Bolsonaro. Nos bastidores do STF, porém, há cautela na interpretação de que o porteiro simplesmente mentiu.

O fato de Carmen Carvalho, uma das promotoras do caso, ter publicado fotos em apoio a Bolsonaro nas redes sociais, durante a última campanha eleitoral, conforme revelou o site The Intercept, trouxe ainda mais dúvidas sobre a conduta do Ministério Público. Carvalho acabou afastada do caso na sexta-feira, 1º de novembro. Para o professor Adilson Dallari, o afastamento “foi prudente, até para tirar o foco, e é medida cautelar recomendável nessas situações”.


https://piaui.folha.uol.com.br/comeco-para-uma-historia-sem-fim/

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Por entre as vírgulas de André Setaro


Cinco anos sem o mestre





Para escrever e contar suas histórias, André Setaro não economizava nas vírgulas e, entre elas, transpareciam detalhes de suas ideias e o seu jeito de ser. Desde que se entendeu por gente, o filho de Dona Luisa passava horas e horas dentro das salas dos cinemas de rua, flanando a pé de um a outro pelos caminhos da Bahia de seus tempos.

Jovem a partir dos anos 60, em plena efervescência cultural e existencial do período que ele gostava de comparar ao Século de Péricles, o menino André foi tomado por um turbilhão de paixões que tumultuavam suas emoções.

Mas naqueles anos dourados e rebeldes, enfurnado numa sala de cinema, André Setaro conseguiu viver realmente o espírito daquele tempo?

Era o auge da beatlemania, que enlouquecia de primeira a quem batia os ouvidos naquela sonoridade que parecia ter vindo de outro planeta. Enquanto isso, o ginasial André ouvia orquestrações de trilha sonora dentro de uma sala escura.

É um boko-moko mesmo.

Durante a época de ouro do nosso futebol, com craques em todas as equipes, resultando na formação dos escretes que fizeram o Brasil vencer três das quatro Copas do Mundo que disputou no período, o sedentário Setaro não trocava a poltrona do Cine Guarani pela arquibancada da velha Fonte Nova.

Eis um chato de galocha.

No epicentro do terremoto político que convulsionou o país, levando à luta desesperada jovens que se doaram de maneira alucinadamente corajosa, ele nem sequer atendeu aos convites que recebeu para frequentar aparelhos?

Só pode ser alienado!

Mas é preciso calma para falar de André Setaro. A mesma que ele teria para detonar essas provocações. Ele não trocou uma paixão pelas outras. Ao contrário, entre as suas vírgulas, estavam lá todas elas.

Não foi grudado numa jukebox, mas dentro da sala escura com uma tela brilhante, que a febre da beatlemania esquentou sua adolescência. Assistindo A Hard Day’s Night no meio de uma plateia ensandecida pelos reis do iê, iê, iê, o adolescente André vibrou até com o barulho do público, que reagia em total sinergia com o que via na tela.

Era na poltrona do cinema, e não na geral, arquibancada, cadeira ou no xaréu que o orgulhoso levantador de copos André Setaro conhecia o que de melhor havia nos gramados tupiniquins. O obrigatório cinejornal Canal 100 foi palco majestoso para o futebol brasileiro desfilar em ângulos e closes que deram um tom renascentista aos lances dos nossos maiores craques, sempre ao som marcante de Na cadência do Samba. Por conta disso, e só dessa vez, sabia os nomes dos jogadores que foram a campo na Copa e pôde assistir com sua turma o tri de 70, sonhando em transformar a Jules Rimet numa tulipa de chopp na hora da comemoração.

E quanto à política dos rebeldes anos de chumbo? Época de filmes como A Batalha de Argel, Soy Cuba, Terra em Transe, A Chinesa, ou ainda os vários de Costa-Gavras. Ah, já sei, ele assistiu a todos esses no cinema. Sim, assistiu, mas não é só isso.

Em 1971, estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, André e seus colegas fizeram um enorme esforço para conseguir trazer a Salvador, por avião, as latas com uma cópia de Cidadão Kane, seu filme preferido.

Para exibi-lo na faculdade, precisariam que a obra estivesse liberada pela censura federal e, ainda assim, que recebesse o aval da direção da unidade. Um simples não do diretor, ou a falta do certificado de censura, jogaria por terra o trabalho que fizeram por meio do diretório acadêmico para arrecadar o dinheiro e concretizar a aventura.

Então, para não serem derrotados pela burocracia autoritária, exibiram o filme em sessão para os alunos, sem consulta à direção. O problema é que nessa época as universidades brasileiras eram um campo minado de arapongas infiltrados, disfarçados de alunos. A ditadura identificava os estudantes como potenciais adversários do regime, drenando agentes e recursos públicos para persegui-los.

Não se sabe ao certo, mas foi provavelmente algum destes arapongas que acionou a Polícia Federal. O camburão da PF entrou no campus do Canela e os agentes foram logo perguntando quem era o responsável por aquela sessão. Setaro não era o único, mas se acusou sozinho, sendo levado imediatamente para dar um divertido rolé com os simpáticos defensores da segurança nacional.

Por conta da prisão, o imberbe André Setaro foi obrigado a dar sua primeira aula de cinema, explicando o tão necessário específico fílmico ao delegado, que não estava interessado no tema.

— Você é comunista?

O cinéfilo subversivo negou.

— Estudante é tudo comunista!

O chefe da PF bradou. Injuriado com o caso, acusou a tudo e a todos de estarem a serviço de Moscou, incluindo o diretor do filme, que era também o ator principal.

— Delegado, o senhor sabe quem é Orson Welles?

O temido federal não sabia e se enfureceu com a pergunta. O jovem André encarou a repressão a seu modo, evidenciando a ignorância enciclopédica dos criminosos de estado.

Um homem e suas circunstâncias

Em Setaro, não eram só as vírgulas que tinham função essencial: o silêncio também. Sua fala era pausada e suas pausas valiam como falas. Seu timing era desconcertante. Os gestos lentos, quase coreografados, compunham a mise-en-scène. O indefectível avatar formado por óculos escuros, barba branca e calça jeans realçava seu carisma. Mas a marca de sua personalidade idiossincrática pode ser melhor definida pelo jeito sarcástico e afável, uma combinação raríssima.

O cigarro foi seu enfumaçado melhor amigo. Amizade que cabia no bolso da camisa, mas que ele já teve que esconder na meia para que o estoque não fosse comprometido pelos mais diversos pedidos. A cerveja, selo de qualidade de sua boemia, era bebida sempre aos montes de garrafas, estivesse ou não acompanhado.

“Sem beber a vida não vale a pena”, dizia.

A paixão eterna por Brigitte Bardot foi maior até do que o tesão por Kim Novak, Catherine Deneuve e Helena Ignez. Crítico feroz do casamento, casou-se três vezes e ainda pediu a mão de outras tantas moças.

Mas o nó górdio de André Setaro estava em seu caprichoso temperamento, sempre contraditório. Se tinha azul, ele queria verde. Se tinha verde, ele queria azul. Nadava contra a corrente em grandes temas e também em questões corriqueiras. Costumava chegar aos seus compromissos com uma antecedência que nem os britânicos recomendam, o que lhe fazia esperar sozinho, por um bom tempo, pelos atrasados de sempre.

Jamais se enganou com ouro de tolo. Formado em Direito, trabalhou na área jurídica de uma grande empreiteira e pegava carona com o próprio dono, mas aquilo não era pra ele. Para o horror de alguns familiares, não viraria o engravatado que planejavam. Persistiu em seu propósito, mesmo sem saber bem qual era exatamente, enquanto ia se tornando demasiadamente André Setaro.

A grandeza de sua extrema simplicidade não fez distinções entre capitães de areia e doutores. Por conta de seu jeito agregador, amizades foram feitas entre os que estavam ao seu redor, e que possivelmente não teriam jamais outro elo que não ele. A ironia e o bom humor foram sua reação natural ao mundo. Ria e fazia os outros rirem dele mesmo. Tragicômico, brincava com a própria sorte.

“Sou uma bomba-relógio”, divertia-se, sem mudar os hábitos.

Quando esteve internado, depois de um enfarte, seu quarto era tão frequentado que parecia o de Glauber Rocha. Foi um entra e sai de amigos que extrapolava a privacidade do paciente naquele cativeiro. Mas ele não reclamava e, mesmo preso à cama, fazia sala para harmonizar visitantes tão diferentes que sentiam-se deslocados no pequeno espaço do quarto.

Superou as mais catastróficas previsões a seu respeito, dançando na corda bamba sem dar a mínima para a morte. Mas, nos últimos tempos, já não se incomodava que ela o beijasse. André Setaro fazia bem ao mundo, mas o mundo não lhe fazia mais tão bem. Era adorado por muitos, mas isso não era o bastante.

“Não é a mesma coisa”, dizia ele, comparando o calor de seus afetos.

Por mais que tivesse os de hoje, era os de outrora que queria. O bonde que ele desejava e sonhava já havia passado. Para nós, ao contrário, ele era o bonde que não podíamos deixar passar.

O Cinema, quem diria, já lhe aborrecia. Se estivesse começando a carreira agora, dizia que não se dedicaria à sétima arte. Se fosse jovem neste século XXI, colocaria uma mochila nas costas e sairia por aí.

Como em seu filme preferido, Cidadão Kane, ele tinha o seu Rosebud, mas não materializado em um objeto, e sim pairando em sua nostalgia permanente.

O bar Avalanche, na João das Botas, o mais marcante dos seus tempos de estudante de Direito. O cheiro de ar condicionado do Cine Guarani, a casa de chá da loja Duas Américas, o medo que sentia do Edifício Sulacap, o pé de jambo que gostava de assaltar, a banca de Seu Paranhos, as revistas em quadrinhos trocadas na porta do cinema Casa de Santo Antônio.

Ou a imperícia automobilística que lhe custou um carro. A namorada que levou um fora porque não soube apreciar Cidadão Kane. As 48 horas seguidas que passou bebendo com um amigo, em uma competição etílica que terminou empatada. O armazém da esquina, a que ia sozinho mesmo ainda menino de calça curta. A morte do pai, que o fez se mudar para Salvador. As idas com a mãe à central telefônica pra ligar para o Rio. A casa em Nazaré, a amendoeira do bairro. A farra no cordão de carnaval Os Filhos da Puta, os espetáculos nas Escolas de Teatro e de Dança, no Vila Velha e no Teatro Castro Alves. A porta da livraria Civilização Brasileira. Os tempos de coroinha do Padre Lemos, que lhe fizeram decorar termos em latim. O velho vendedor de fotogramas que admirava.

As aulas de sábado no Colégio Central, filadas para ir ao Guarani, com o Bar Cacique ao lado. E o Tabaris, que nunca conseguiu entrar. A rua sem carros que virava campo para a meninada jogar bola, seus frágeis dedos de criança controlando a pipa colorida e tão bonita de ver no céu, os babas batidos no terreno baldio, os bondes vermelhos em que pongou. Andar, andar e andar conversando com os camaradas e espiando as meninas do Convento do Sagrado Coração de Jesus.

A chuva que pegou no Rio, e se transformou em febre, só para ver um filme, na mesma época em que não deixou o bonde da história passar e participou da belíssima Passeata dos 100 mil. O pedido de demissão da repartição pública depois de assistir um filme de Antonioni. O encontro com James Stewart no Rio de Janeiro, com Roman Polansky e Jack Nicholson no Hotel da Bahia, com Werner Herzog no ICBA e a cantoria com Catherine Deneuve, quando fizeram um breve dueto do tema de Os Guarda-Chuvas do Amor. As aulas e o Clube de Cinema do mestre Walter da Silveira, o assombro com as imagens dentro da sala escura, o deslumbramento com a vida quando ela lhe era permanente novidade.

São muitas histórias! As que vivemos com ele, as que ele contou, as que inventou, as que nem desconfiamos que existiram e as que ainda queríamos que acontecessem.

Ele se foi, mas não é preciso se despedir. Quem teve a sorte de ser amigo de André Setaro sabe que vamos nos lembrar e falar dele por toda a vida.

*Lucas Fróes foi aluno e amigo de André Setaro.
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segunda-feira, 8 de julho de 2019

JOÃO GILBERTO ENTRE A NATUREZA E A CULTURA




Algo há de singular na relação que a música de João Gilberto entretém com o tempo. Já se notou o efeito suspensivo causado por ela, como se aludisse a um tempo ideal, afetivo, que não pode ser mensurado. 


PAULO DA COSTA E SILVA


Algo há de singular na relação que a música de João Gilberto entretém com o tempo. Já se notou o efeito suspensivo causado por ela, como se aludisse a um tempo ideal, afetivo, que não pode ser mensurado. Um tempo indeterminado, como o das horas que passamos em casa, o de uma conversa entre amigos. Lorenzo Mammì escreveu que esse tempo ideal em torno do qual João constrói suas interpretações decorre em grande parte de um sutil descompasso entre o plano da voz e o plano da batida do violão. Em outras palavras, o músico cria um pequeno desacordo que, ao invés de soar estridente ou antimusical, passa a aludir a um acordo tão perfeito que nenhum acordo real poderia efetivamente alcançar tal perfeição.

O mesmo padrão pode ser aplicado à relação entre melodia e acompanhamento: a dissonância em João Gilberto não chega a ser uma negação da consonância, mas alude a um consonância tão idealmente completa, que nenhuma consonância real conseguiria estar à altura. Mammì viu nisso uma elaboração estética da carga utópica que caracterizou a vida brasileira no fim dos anos 1950, a “eternização” daquele momento feliz. Colocando-se continuamente numa zona de ambigüidade, ou mesmo de indefinição, o poder de sua música viria da capacidade sugestiva – daí as comparações com o Impressionismo de Debussy. A canção passa a se referir a algo que está fora, que de certo modo a ultrapassa, e que só pode ser apreendido de modo indireto. Ganha a textura e até a qualidade semi-transparente e hipnótica de um véu, como se deixasse apenas entrever um grande mistério (a natureza do tempo? O Brasil? Os dois?). Solicita nossa atenção para lançá-la em outro plano, gerando um estado mental de concentração e ausência – ou seja, de devaneio. 

Ouvindo João Gilberto temos a impressão de que a canção (seja qual for) não se desprende totalmente do indeterminado, fixando-se numa forma (e ele não para de operar pequenas mudanças, saturando os detalhes), mas antes toma carona em seu próprio movimento. Num ensaio sobre a divindade grega Proteu, Antonio Cícero definiu o “princípio eidopéico”: o princípio do fluxo, do movimento, da transformação, da metamorfose, que é também o princípio produtivo de formas. Toda a arte de João Gilberto se baseia na capacidade de fazer com que canções aparentemente “determinadas” (que já existem) voltem a se aproximar de um estado originário de “indeterminação” e movimento. A impressão não é a de ouvir uma música re-interpretada, ou re-trabalhada, mas de presenciar o próprio nascimento da canção – o momento exato, e ainda assim indefinível, em que os contornos frágeis de uma forma parecem se delinear sobre o fundo amorfo do indeterminado. Ao mimetizar o próprio ato criativo sobre canções que já existem, ele nos recoloca diante do mistério da origem, da transição entre “não ser” e “ser”.

Nuno Ramos escreveu belissimamente sobre isso: “O canto de João Gilberto não é o canto do intérprete, mas o do Autor (Luiz Tatit chama João Gilberto de re-Autor). Ele não interpreta, compõe – está compondo de novo, agora à nossa frente, e em loop. Ao menos para quem usa o instrumento, a separação entre melodia a harmonia não é própria exatamente do ato de compor? Não é necessário, para compor, discrepá-las um tanto, adiando a convergência? É esse ato que sua interpretação visita, abrindo novamente a canção, tornando fluido o que parecei ter se fixado”. Trata-se de abrir o acesso “a esse núcleo onde o ato criador retorna”.

A questão é saber como uma melodia já tão fixada na memória por infindáveis repetições, tão cristalizada, pode ter sua força vital recobrada, sua qualidade movente desobstruída. Em outras palavras, como pode conciliar a realidade de sua forma (individualizada, definida), com a lembrança de seu passado líquido; como pode ser forma sem deixar de trazer consigo a marca da indeterminação – o reino absoluto de onde tudo veio, e para onde tudo retornará. A modernidade de João Gilberto se apóia sobre uma flexibilização do passado, muito mais do que sobre uma ruptura. Ele atua no nível quântico da canção, saturando os átomos em suas estruturas ínfimas, revelando micro-ritmos, micro-sambas, micro-inflexões da voz, matizes mínimos do afeto. Ao fazer isso, parece se distanciar do tempo da história, adentrando, de algum modo, o tempo natural.

A música de João faz pensar antes no lento modelar das chuvas e dos ventos sobre a matéria rochosa, do que nos frutos intempestivos das ações humanas. É quando o tempo da cultura pulsa em fase com o tempo da natureza. Seu método de trabalho, lento e monótono, as várias anedotas sobre ele tocando durante horas e horas um único acorde ao violão, experimentando em diversos ambientes o som que sai da garganta, apenas comprovam a vontade de acessar uma temporalidade abstrata, geológica talvez. Mudança e permanência coexistem nele num equilíbrio quase impossível.

Até as morenas cantadas por João Gilberto (a Rosa morena, a Morena boca de ouro) trazem algum tipo de emanação telúrica, parecendo a um só tempo sólidas e fluidas, efêmeras e eternas. Aliás, é possível que sua afinidade profunda com Dorival Caymmi venha daí: também as canções de Caymmi – polidas na memória por infinitas idas e vindas, com a calma de ondas que esculpem, através dos séculos, formas inesperadas sobre imensos rochedos – parecem ser frutos não da intenção de um autor, mas do trabalho anônimo do próprio tempo – “não parece coisa de gente”, diria Arnaldo Antunes. João é parente próximo de Caymmi. O registro grave de ambos nos dão a impressão de que a voz é emitida de dentro das grutas do tempo até nós. Há uma qualidade mineral, um misterioso elo com a terra. Ambos parecem reproduzir o lento entrelaçamento entre natureza e cultura que marca as culturas pré-modernas – a transição macia entre o tempo geológico e o tempo humano.



PAULO DA COSTA E SILVA

Paulo da Costa e Silva é professor de estética no Departamento de História e Teoria da Arte da Universidade Federal do Rio de Janeiro


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domingo, 7 de julho de 2019

João Gilberto - Sua Música
























































João Gilberto - Despedida













Aos 88 anos, morre João Gilberto, ícone da Bossa Nova



Artista baiano redefiniu a música brasileira com batida revolucionária







O cantor e compositor João Gilberto, considerado um dos precursores da Bossa Nova, morreu neste sábado (6), aos 88 anos, no Rio de Janeiro.


Os últimos anos da carreira e vida do cantor foram marcados por sua reclusão, dívidas e conflitos familiares. Não recebia ninguém em casa, a não ser alguns familiares, tampouco concedia entrevistas ou se apresentava nos palcos. O cantor e compositor baiano completou 88 anos no último dia 9 de junho.


João Gilberto morreu na casa onde vivia, no Rio de Janeiro, e deixou o imenso legado da Bossa Nova, ritmo que colocou a música brasileira em um novo patamar em relação ao mundo. O gênero, surgido no final da década de 50 pelas vozes de João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, revolucionou o jeito de se fazer música no país, com uma mistura refinada de samba com jazz. Mais do que o resultado sonoro, a Bossa Novatornou-se um estilo, um movimento, remetendo ao Rio de Janeiro da metade do século passado e sua Garota de Ipanema, regravada mais de 200 vezes ao redor do mundo.


Caetano Veloso definiu em poucas palavras o que a música de João Gilberto significou para o Brasil e o mundo. Após recitar estrofes de canções de outros famosos intérpretes brasileiros, proclamou: “melhor que isso só o silêncio. Melhor que o silêncio, só João”.


Com sua interpretação de Chega de Saudade, composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, deu início a uma revolução que sacudiria a música brasileira e mundial. Sem aquele disco, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e muitos outros não existiriam. João Gilberto sempre foi um perfeccionista e um sofredor nato: “Minha imagem dele é a de um Quixote que luta por afinar um universo inevitavelmente desafinado”, afirmou Zuza Homem de Mello, crítico musical e amigo pessoal do cantor.



João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, cantor e violonista baiano, concluiu em 1961 a trilogia de álbuns fundamentais que apresentaram a Bossa Nova ao mundo, foram eles “Chega de saudade” (1959), “O amor, o sorriso e a flor” (1960) e “João Gilberto” de 1961.


O artista não parou com suas criações e seguiu com shows e discos que se tornaram obras de arte, como é o caso de “Amoroso”, álbum gravado nos Estados Unidos entre 1976 e 1977 sob o selo Warner Music.


O disco foi relançado no Brasil em formato longo no ano passado, durante os festejos dos 60 anos da Bossa Nova. O álbum celebra o encontro harmonioso do artista brasileiro com o maestro alemão Claus Ogerman (1930 – 2016).


“Não se pode machucar o silêncio, que é sagrado.”
– João Gilberto


"Em João Gilberto, o violão é metade de um conjunto sonoro completado pela voz, formando um bloco, uma entidade unívoca de voz e violão, e não de voz com violão."
-Zuza Homem de Mello


“O gênio criador se revela a raros eleitos, a quem confia os mistérios da criação e concede a capacidade de mudar o rumo da história e dar à arte a regra. A genialidade é um dom, mas a grandeza capaz de sustentá-la é trabalho humano, esforço pessoal do artista devotado ao seu ofício e consciente da tarefa de elevar os outros à altura da sua arte.”
- Edinha Diniz


“João sempre tratou a música com ternura, como a deusa de sua vida. É o que basta para conferir aos seus espetáculos uma superioridade fora do comum, situando-os entre os mais envolventes e memoráveis que se podem assistir.”
- Zuza Homem de Mello



"Há tanta coisa bonita a ser consertada"
- João Gilberto, em 'revista Bravo (Mario Sergio Conti)', março 2010.


“Canto pra esse mundo todo, mas a Bahia é diferente. Eu fico até nervoso.”
- João Gilberto, no show em Salvador, set. 2008.


“É crime, portanto, achar que você pode fazer ruído quando João Gilberto está em ação, emitindo o caldo original de uma cultura, a expressão mais elevada desta meta-raça brasileira, como queria Gilberto Freyre, definida pela vivência, a geografia, a mistura, a diversidade. Não se põe João Gilberto ao entardecer para ver o tempo passar, mas para vislumbrar essa porta entre os mundos, como queria Juan Mattus, em que temos um pé na miséria e outro no mistério.”
- Nei Duclós


“Eu não sou poeta, não. Poeta é Drummond.”
- João Gilberto


“A criação original de João Gilberto para o samba, que se internacionalizou com o nome de bossa nova, e que é, até hoje, a contribuição brasileira mais importante à cultura mundial, corre na veia de boa parte da música popular que se faz no mundo. Esse trabalho de transformação do samba e sua consolidação, é obra de uma personalidade artística genial, dessas que surgem de tempos em tempos com uma missão civilizadora heróica. Não é à toa que é qualificado de Mito. Sua trajetória repete a do herói mítico, no combate à banalidade e procura da pureza.”
- Edinha Diniz


“João parece existir para se deleitar com a música, para tocar seu violão, em seu canto, sossegado.”
- Luciano Matos – BA


“O que ele faz não precisa de nada, nem do estalar de dedos, nem dos conceitos sobre jazz ou samba. Não tilinte copos ou bata caixa de fósforos, nem pertença a qualquer religião sonora conhecida. Por se vergar ao alicerce, por se dedicar à coluna mestra, por se circunscrever ao quintal, João Gilberto atingiu a essência. Desse pequeno asteróide armou a flor da sua conversa.”
- Nei Duclós


“Nenhuma figura da música popular brasileira esteve tão perto da perfeição.”
- Sergio Cabral (crítico)


“He could read a newspaper and sound good.”
- Miles Davis









https://www.revistaprosaversoearte.com/aos-88-anos-morre-joao-gilberto-icone-da-bossa-nova/?fbclid=IwAR1wD7M9QvtmMU5jKzk4baJ2kH8xv8tkf-tdEZ04Z9V1GkgSRprAA1jLibM


http://www.elfikurten.com.br/2011/05/joao-gilberto-o-papa-da-bossa-nova-mito.html




domingo, 30 de junho de 2019

"O Senadinho"



“Não fazemos amigos, reconhecemo-os.”
Vinicius de Moraes

Para Maria Olivia, Olívia Soares, o reconhecimento é mútuo, a vida deles se entrelaçam, se estreitam, se confundem, no “Senadinho”!!!

“Imagine esses senhores todos em casa sem ter o que fazer. Já tinham morrido. Isso aqui é a vida de muitos deles”, disse a jornalista Olívia Soares, 59 anos, a única senadora da “casa”.

“Eu gosto de memórias. Sem memórias nós não somos nada. O que mais tem aqui são memórias”, diz Olívia.]


bahia
Alexandre Lyrioalexadnre.lyrio@redebahia.com.br







Senadinho é uma ilha da saudade
Espaço do Shopping Barra reúne idosos há 15 anos para dividir memórias e aplacar a solidão


A maioria dos 50 mil clientes que passa diariamente pelo Shopping Barra vê naquele grupo nada além de um bando de velhinhos obsoletos. Uma minoria, mais atenta, enxerga no máximo um monte de aparelhos auriculares, bengalas, veias saltadas, artrose e rugas. Somente os que se aproximam, puxam uma cadeira, sentam e, calmamente, batem um papo, passam a conhecer a força, vitalidade e sabedoria daquela assembleia de ilustres e anônimos.

O Senadinho, como é conhecido, é hoje uma instituição baiana, uma câmara de amizades ecléticas e de gente com elegância até para tomar um cafezinho. Tendo o Barra como seu Congresso Nacional, no Senado se discute de filosofia à música, de literatura a futebol. No Senadinho, dá-se tapas na mesa por política e economia e analisa-se criticamente a história do Brasil, do antigo Egito ou dos Carnavais.

Antes de qualquer coisa, porém, ali divide-se as próprias memórias, lamenta-se a implacabilidade do tempo e, principalmente, joga-se duas coisas fora: conversa e solidão. Há 15 anos mais ou menos, uma mesa no Café Bourbon, no primeiro piso, é reservada a eles. São ilustres juízes de direito, médicos, advogados, políticos, mas também anônimos que só querem fazer uma amizade sincera na reta final da sua existência.

“Imagine esses senhores todos em casa sem ter o que fazer. Já tinham morrido. Isso aqui é a vida de muitos deles”, disse a jornalista Olívia Soares, 59 anos, a única senadora da “casa”. De fato, senadores como Manoel Canário, 85 anos, têm uma ligação familiar com o shopping. Comparece às sessões todos os dias, de domingo a domingo, afinal de contas o Senado em questão não tem recesso.

A relação de Canário com o shopping é anterior ao próprio Senadinho, já que frequenta o Barra desde o dia da inauguração, em 16 de novembro de 1987. “Bato ponto. Venho de domingo, dias santos e feriados. Vou fazer o que em casa?”, pergunta. Com um extenso passado no rádio, parceiro do falecido Luiz Luzi, Canário sempre fez muitos amigos, mas teve problemas de relacionamento com a família e hoje mora sozinho no Barbalho.

“Não tenho para onde ir e nem o que fazer lá fora. Gosto daqui. É um lugar agradável e seguro. Aqui conheço todo mundo e sou bem tratado”, explica o ex-radialista da Rádio Sociedade e da Rádio Tupy do Rio de Janeiro. Costuma ficar de 14h até o fechamento do shopping, às 22h. Fala-se que, nos feriados em que o Barra não abre, Canário chega a reunir uns poucos senadores e coloca banquetas do lado de fora para papear.

O mais importante é manter a mente ocupada e não ficar sozinho. Apesar das constantes discussões acaloradas, no Senadinho ninguém solta a mão de ninguém. Os Senadores frequentemente se visitam em hospitais. Quando, por acaso, ninguém pode ir, o corretor de imóveis Artur Gallo se dispõe a fazê-lo. Também faz questão de ir nos enterros.

Desaparecimentos
Aliás, no Senadinho encara-se a morte de frente! Na sexta-feira anterior a que tivemos o direito a uma cadeira em tão prestigioso congresso (como suplente temporário, claro), o médico José Lins havia falecido aos 92 anos. Psiquiatra dos mais notáveis, não resistiu às complicações causadas por uma queda. O desaparecimento de amigos é sempre uma grande dor. “Senti como se fosse alguém da minha família”, afirma Franklin Santana Oliveira, 77 anos.

O Senadinho é, portanto, uma ilha de saudade. Saudade dos amigos, do passado e da própria trajetória do grupo. Algumas perdas se tornaram marcantes. Como no caso de Eduardo Domingos, o Árabe, (seu pai foi o primeiro a abrir um restaurante árabe em Salvador). Um dos fundadores do Senadinho, Eduardo faleceu ano passado. “De dez pessoas que passam por aqui, oito comentam ou perguntam por ele. Era muito amigueiro”, conta Olívia.

Entre os exaltados in memorian estão também o radialista Pacheco Filho e o ex-vereador Luiz Leal. Mas, se existe uma morte insuperável naquele grupo, esta é do eterno presidente do Senadinho, Magno Burgos. Político de esquerda, tido como um homem sério e íntegro, foi preso na Ditadura Militar, tendo ficado na famosa Galeria F, onde foram encarcerados os presos políticos na Penitenciária Lemos de Brito.

“Magno era uma das reservas morais do Senadinho. Aqui não tinha quem não gostasse dele, mesmo os de outras correntes políticas”, diz o atual presidente, José Ramos, 81 anos. “Sentimos muito a falta dele. Muito mesmo!”. A ética de Magno era tão rígida que ele não gostava quando os colegas levavam lanches para consumir na mesa do Bourbon, onde basicamente sai cafés, sorvetes e bolos.

Achava que o correto era consumir no local. Depois que Magno morreu, um dos integrantes, Luís Pamponet, sugeriu que fosse deixada uma cadeira vaga, em pleno shopping center, em homenagem ao eterno presidente. Deu briga. “Teve gente que se aborreceu porque a cadeira era pública. Pamponet se aborreceu um tempo, mas voltou”, conta Olívia.

Vitalidade
No Senadinho você pode bater um papo com nomes como o juiz Demerval Belucci, que julgou o famoso caso de Marcelino Souto Maia, condenado a 16 anos de prisão por matar pai, mãe, irmão e avó no bairro da Graça, em 1970. Mas, muito reservado, melhor não tocar no assunto com ele. No Senadinho é possível conversar com o ex-deputado e ex-diretor do Procon, Archimedes Pedreira Franco, cheio de vitalidade e lucidez aos 83 anos.

“Todos nós desempenhamos atividades importantes nas nossas trajetórias. Por circunstâncias da vida não temos mais obrigações. Para muitos por aí, isso significa a morte. Para nós, não! Nós temos o Senadinho, ou seja, temos amigos. Aqui ficamos atualizados e com a mente funcionando. Isso aqui é uma festa!”, explica Archimedes, com o português corretíssimo de sempre. “Todos nós aqui somos muito importantes uns para os outros”.

Se você tiver sorte de ele estar presente, você pode trocar uma ideia também com Benedito Borges, 95 anos. Conhecido no Senadinho como “o verdadeiro campeão”. Isso porque, no primeiro título nacional do Bahia, em 1959, era ele quem presidia o clube no lugar de Osório Vilas Boas. Apesar de estar afastado na época, Osório acabou levando a fama de ter conquistado a Taça Brasil.

Seu Benedito sempre contou detalhes dos bastidores e das artimanhas que usou para fazer o Bahia derrotar o Santos de Pelé. Lembra bem da escalação, do goleiro Nadinho ao ponta esquerda Biriba. Com alguns lapsos, tem a ajuda das filhas e do neto, que o incentivam a puxar as estórias na memória. “Recordo de muito, mas não de tudo”, admite. “Quais foram os jogadores que o senhor contratou tirando dinheiro do próprio bolso?”, estimulou a filha. “Não me lembro mais, não. Só sei que foram muitos”, resumiu.

Sem problemas, Seu Benedito. Mais importante que tudo é ver tanta vitalidade e alegria em um nonagenário como o senhor. “Vamo levando, né meu filho?”, disse ele, que pode até não se lembrar de todos os pormenores do título brasileiro, mas jamais esquecerá os números dos antigos bondes que circulavam na antiga Salvador. “A diversão dele era disputar com Magno, o eterno presidente, quais os números dos bondes e seus bairros”, conta Olívia.

Pai solteiro
Nesse mundo do “vamo levando”, dos lapsos de memória e dos óculos para vistas cansadas, quase todos são aposentados. A maioria tem mais de 80 anos. Mas, entre eles existe uma jovem e doce figura que ainda está na casa dos 40. José Augusto Calheira, 43 anos, filho do advogado Gileno Calheira. Tem deficiência intelectual e passou a frequentar o Senadinho para acompanhar Gileno, um pai solteiro de 77 anos que cuida do filho sozinho.

“Ele não gosta de pessoas da idade dele. Tem mais empatia por crianças muito pequenas ou idosos”, explica Gileno. “Aqui a gente deixa de se sentir vazio. Aqui a gente se revitaliza, se sente vivo”, afirma o advogado, que também faz doces como o de ambrosia para servir aos colegas.

Revitalizar-se no Senadinho é algo que merece os maiores esforços, como faz o professor Eibert Moreira, que agora é transportado na cadeira de rodas e tem a companhia de uma cuidadora para não deixar de participar das reuniões. Mesmo sem poder caminhar e com problemas na voz, marcou presença quando estivemos por lá.

Por força maior, outros como o ex-desembargador do trabalho Jorge Moreira, o advogado Mario Brito, o ex-procurador geral do estado Antonio Guerra Lima, o médico Santos Pereira, o diretor legislativo da Câmara Municipal Carlos Cavalcanti, o Coronel Lemos, Haroldo, Alfredo, Norman e Homero Dourado não puderam comparecer.

Origem
A origem do Senadinho seria, na verdade, no antigo Shopping Iguatemi, hoje Shopping da Bahia. Como muitos dos idosos passaram a morar próximo do então novo Shopping Barra, o grupo ganhou nova sede e foi batizado como “Senadinho”. Os próprios “senadores” não chegam à uma conclusão sobre o que explica o nome. O fato é que a experiência de vida e as idades avançadas certamente tiveram um peso comparativo com os “cabeças brancas” do Senado Federal.

Hoje, o Senadinho ganhou certa fama e se multiplicou em outros cafés pelos shoppings e até em outros shoippings. Entre a maioria de intelectuais e cabeças prestigiosas, encontra-se ali figuras humildes como Manoel de Carvalho Cruz, 79 anos, que é vendedor de loteria. Apesar da atividade antiga, Manoel tem o sustento garantido pelos amigos do Senadinho.

“Vendo loteria desde antes do shopping existir. Vendia na rua Chile. O pessoal aqui me ajuda muito”, confirma Manoel. “Aqui é turma boa, sadia. Aqui é pra lembrar do passado”, diz Manoel. Só não se tem notícias de alguma cartela premiada vendida por Manoel e que tenha enriquecido alguém no Senadinho.

Madrinha
Uma coisa é consenso no Senadinho. Ele não mais existiria se não fosse os esforços da jornalista Olívia Soares. Ela convoca, organiza, ajuda, incentiva o encontro na ilha da saudade. “Eu gosto de memórias. Sem memórias nós não somos nada. O que mais tem aqui são memórias”, diz Olívia.]

“Eu vinha aqui a mando de Armando Oliveira (ex-radialista), que quando estava doente pedia para eu trazer notícias para o amigo Magno. Como Magno vivia aqui, eu vinha pra cá. Fui sentando com eles, ficando e acabei entrando para o senado”, conta Olívia. Hoje, Olívia é tida como a madrinha do Senadinho. Se alguém demora muito de ir a uma sessão, como tem acontecido com Jorge Medauar, é ela que liga para saber. “Liguei e não consigo falar com a família. Estamos um pouco preocupados”.

Com o tempo, o Senadinho foi encolhendo. Além das perdas, uma reforma no Café Bourbon, que pertence ao comerciante Antonio Robespierre Santos, mudou a configuração das mesas, que se tornaram fixas e com poucas cadeiras. Até surgiram fofocas de que o dono não queria tanta gente no local sem consumir na casa. “O pessoal passava aqui dizendo que Robespierre ia colocar pregos nos assentos das cadeiras”, conta Olívia.

Mas, com a reforma, uma mesa no estilo antigo foi mantida só para o Senadinho. “Nessa reforma não cabia mais esse tipo de mesa. E ele deixou só pra gente. Essa mesa foi comprada para nós”, diz Zelito Abreu, outro fundador do Senadinho junto com Magno. A relação com o shopping costuma ser amistosa. Com algumas exceções, como no caso do acarajé do Gregório, que antes das transformações na estrutura vendia o bolinho sobre a calçada, próximo à entrada principal.

Acarajé
O senhores do Senado tinham atendimento especial do baiano de acarajé. Não precisavam sequer ir ao tabuleiro. Gregório levava a iguaria já cortadinha direto para a mesa do Bourbon. Por conta da saída de Gregório, muitos se recusam a comprar acarajé na Perini. Na época da pendenga, os advogados, juízes e desembargadores ofereceram até ajuda jurídica ao vendedor. Não teve jeito.

“Aquilo que fizeram com Gregório foi algo muito complicado. Ele botou na Justiça e não adiantou. Na verdade ele já ficava aí por força de uma liminar, quando tentaram tirar ele antes. Agora, na reforma, disseram que ele ia retornar e nada. Uma pena. Um dos melhores acarajés da cidade”, afirma Franklin Oliveira, que, dez anos atrás, se casou com uma mulher que conheceu no Shopping Barra. “Shopping também é lugar para encontrar amores”.

O Senadinho não é uma instituição fechada, com um número exato de cadeiras. Agregados e suplentes estão sempre se chegando. Mas, não podem ser desagradável. “Se um agregado começa a ser mala demais, a gente suspende o mandato e o convida a se retirar”, avisa Manoel Canário. Por essas e muitas outras, é possível imaginar: se o Congresso Nacional Brasileiro fosse como o Senadinho, o país estaria nos trilhos. “O problema de lá é que as ideias e os interesses são divergentes. Aqui as ideias podem até ser divergentes, mas os interesses são convergentes”, explica Gileno Calheira.



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sábado, 8 de junho de 2019

Deus e o Diabo na Terra do Sol






Othon Bastos - cidadão soteropolitano


Othon Bastos é homenageado com título de cidadão soteropolitano




Ator baiano com mais de 60 anos de carreira, Othon Bastos recebeu o título de Cidadão de Salvador, nesta sexta-feira, 7, no Plenário Cosme de Farias, na Câmara Municipal de Salvador.

A honorária concedida a Othon Bastos, que é natural da cidade de Tucano, situada na região do sertão baiano, foi proposta pelo vereador Marcos Mendes (Psol).





O intérprete do lendário Corisco, o cangaceiro do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha), o ator baiano Othon Bastos, natural de Tucano, agora é também cidadão soteropolitano. O reconhecimento foi consumado em sessão solene da Câmara Municipal de Salvador, na noite desta sexta-feira (7), por iniciativa do vereador Marcos Mendes (PSOL), no Plenário Cosme de Farias lotado de admiradores.

Ao entregar o Título de Cidadão de Salvador, Mendes justificou a honraria classificando Othon Bastos como um orgulho da dramaturgia brasileira, com mais de 60 anos de carreira. “Estamos diante de um dos artistas mais importantes da nossa terra, destaque no cinema, teatro e televisão, que levou adiante o nome da Bahia”, frisou o vereador. Ele relembrou a trajetória do ator, lembrou que integrou a primeira turma de alunos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e ajudou a fundar, na década de 1960, o Teatro Vila Velha.


Sertanejo


Chamado para ocupar a presidência da mesa durante o discurso de Marcos Mendes, Othon Bastos brincou: “Vamos desarrumar o arrumado”. E destacou a frase da música Corisco, “Mais forte são os poderes do povo”, observando: “Tenho certeza que todos aqui, pelos dias que estamos vivendo, concordam com isso”.

Foi com emoção que o ator agradeceu a cidadania de Salvador, que segundo ele esperou por 86 anos, e relembrou os laços que até hoje o ligam a Tucano: “É de Tucano que vem minha raiz. Quem está sendo condecorado aqui é um sertanejo, que veio para a capital com 5 anos de idade”.

Após constatar que tem mais passado do que futuro e que já não tem tempo para “lidar com pessoas medíocres e egos inflamados”, Othon Bastos concluiu, sendo aplaudido de pé: “Do alto de mim mesmo, como franco atirador, exterminei conceito, símbolo, dogma, ética, estética, métrica e estrutura. Não quero tapete vermelho, não quero desfile em carro aberto, eu não quero aplausos. Obrigado Senhor, por esse momento de lucidez. A vida é mais importante que a posteridade”.

Compuseram a mesa da sessão os atores Arildo Deda e Mário Gadelha; o jornalista e escritor Marcos Uzel; a cineasta, jornalista e escritora Ceci Alves; o cineasta Claudio Marques; o professor e escritor Raimundo Leão; o produtor Roberto Sant´Ana; o prefeito de Tucano, Sérgio Soares; a professora Dulce Aquino, da Escola de Dança da Ufba; e o professor e diretor teatral Cláudio Cajaíba. A vereadora Aladilce Souza (PCdoB) prestigiou a sessão. Othon Bastos foi conduzido ao plenário pela irmã Cátia Bastos, pelo ex-prefeito de Tucano, Gildásio Penedo, e pelo desembargador Baltazar Miranda.

Os oradores ressaltaram o papel inspirador de Othon Bastos para cineastas e atores e classificaram a sessão em sua homenagem, no atual momento que o país atravessa, de falta de incentivo às manifestações culturais, como um ato de resistência.

O Hino Nacional foi executado pelo cantor Carlos Barros, acompanhado pelo músico Rodolfo Lima. Apresentaram-se em homenagem a Othon Bastos ainda o Coral Ecumênico da Bahia, regido pelo maestro Ângelo Rafael, juntamente com o trio nordestino formado por Pedro Vieira, Carmelito Conceição e Ridson Reis. Os atores Genésio Neto e Marcos Lopes declamaram trechos de São Bernardo, de Graciliano Ramos. Alguns vídeos resumiram a carreira do ator, no cinema, no teatro e na televisão, incluindo o mais recente trabalho, a série “Carcereiros”, exibida atualmente pela Rede Globo, na qual interpreta o personagem Tibério.

O vereador Marcos Mendes fez questão de agradecer à jornalista Olívia Soares e ao diretor Legislativo da Câmara, Carlos Cavalcante Neto (Leleto), pela inspiração para homenagear Othon Bastos.



Fonte da notícia: Ascom







Um ator é acostumado com estreias, seja de filmes, novelas ou peças. Entretanto, nesta sexta-feira (7), Othon Bastos, 86 anos, viveu uma estreia diferente e emocionante. Após tantos anos vividos em Salvador, ele pode, finalmente, estrear como cidadão soteropolitano.


Nascido em Tucano, a 270 quilômetros da capital, Othon foi homenageado pela Câmara de Vereadores de Salvador, com o título de Cidadão Soteropolitano. O projeto foi apresentado pelo vereador Marcos Mendes (PSOL) e aprovado por unanimidade na casa.


De acordo com Othon, de seus 86 anos, pelo menos 15 foram vividos em Salvador. Aqui ele fez parte da primeira turma da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1959; foi um dos criadores da Sociedade de Teatro dos Novos, primeira companhia teatral profissional da cidade e ajudou a fundar o Teatro Vila Velha, no qual ele fez parte do elenco da primeira peça apresentada no local - Eles não Usam Black-Tie, em 1964.


"A emoção é muito grande. Não esperava. Primeiro foi um susto e depois uma grande alegria ser homenageado nesta terra que tanto amo. Quem tem raízes aqui não abandona nunca", disse o ator.


"A saudade sempre batia, tanto que sempre eu vinha aqui ver meus pais e minha avó, que moravam aqui no Porto dos Tainheiros, na Ribeira. O que eu gosto em Salvador é que tudo aqui é lindo. Voce aqui vira para um lado é bonito. Vira para o outro, é bonito também. É um excesso de beleza"

No cinema, o ator fez mais de 75 filmes, com destaque para sua atuação em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, onde interpretou o lendário cangaceiro Corisco.

"Como a música diz, jamais me entregarei. E ninguém deve se entregar. Uma vez me disseram para ser tudo na vida, menos artista, e eu não ouvi. Eu só acho que, na apresentação, poderia ser incluída a última frase que Corisco diz no filme: 'o poder mais forte é o do povo'. Isso é algo que precisa ficar muito claro nos dias de hoje", disse o ator.



'Quem tem raízes na BA não vai perder nunca', diz o ator Othon Bastos





Nascido na cidade de Tucano, nordeste da Bahia, falou sobre carreira à Rádio Metrópole, antes de receber título de cidadão de Salvador.






Nota: A jornalista Maria Olivia Soares teve predominante influencia na decisão e elaboracao dessa oportuna e merecida homenagem ao ator e ser humano impar OTHON BASTOS.



Homenagem se presta em vida. Um sonho que eu tinha e Othon Bastos merece todo nosso carinho, respeito e gratidão por tudo que representa para a cultura da Bahia, do Brasil e do mundo. Obrigada a todos os amigos - e todas as pessoas que conheci nesta jornada. Abraçamos - de corpo, alma e coração, esse memorável acontecimento. É um orgulho o envolvimento lindo de vocês, a disponibilidade para ajudar e romper todas as dificuldades. Tenham certeza que proporcionamos uma alegria imensa a esse ator maior e de todos os tempos. Ele voltou pra casa carregado de amor, transbordando de felicidade. Valeu a luta, Marcos Mendes, foi muito bacana essa união de afetos. Missão cumprida com honra e louvor.

#OthonBastosCidadãoDeSalvador






Querida Olívia, meus parabéns e um forte abraço por essa magnífica homenagem à Othon Bastos, orquestrada por você com o maior esmero, você é retada, verdadeira e abençoada por todo esse amor que você entrega ao próximo, ao mundo!!!


Muito emocionada e orgulhosa de você!!!! Nossos pais (lembrei muito de nossa Janda) e irmão Davi celebram no céu e nós aqui na terra contigo, sempre!!!!