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domingo, 15 de julho de 2012

O chinês solitário

| Manuel S. Fonseca

a gen­ti­leza nir­vâ­nica do rosto

 
Donde saiu o chi­nês? Filas deles balan­çam car­ris e cons­troem as gran­des linhas fér­reas que hão-de ligar Leste e Oeste. O chi­nês é uma mul­ti­dão no cinema ame­ri­cano, longa fila ape­ada que ante­cede o pri­meiro comboio.
E não é! O chi­nês no cinema foi o “homem ama­relo” de Grif­fith. David Wark Grif­fith, pai fun­da­dor do cinema, inven­tou o chi­nês no cinema, como já tinha inven­tado o homem negro, que pin­tou vici­oso e insur­gente em “The Birth of a Nation”.
Em 1919, no lírico “Bro­ken Blos­soms” que em por­tu­guês foi um “Lírio Que­brado”, o chi­nês era a corola opiá­cea a fechar os bra­ços para pro­te­ger de abu­sos vito­ri­a­nos a menina branca. A menina era Lilian Gish e Grif­fith desenhou-a a tra­ços pré-rafaelitas.
É numa China a sépia que começa “Bro­ken Blos­soms”, uma China idí­lica, de chás e fumos, China con­tem­pla­tiva e mís­tica. Desse fundo ron­ro­nante sai o yel­low man que se arroga a mis­são de levar a men­sa­gem de bon­dade budista aos bár­ba­ros anglo-saxónicos.
Anos mais tarde, ainda não vimos Lilian Gish, reencontramo-lo num bairro sór­dido de Lon­dres, enco­lhido de frio à porta da sua encan­tada loja dos tre­zen­tos. A nuvem de ópio que o cerca aju­dará, mas a ver­dade é que con­serva a mesma gen­ti­leza nir­vâ­nica nesse rosto que Grif­fith pin­tou mais ama­relo por ser o de Richard Barthel­mess, actor branco que era tudo menos chinês.
Pas­sa­ram 18 minu­tos de filme e da névoa azu­lada do rio surge Gish. O cinema mudo tam­bém tinha paci­ên­cia de chi­nês e hão-de pas­sar outros 18 até ver­mos que o homem ama­relo viu Lilian Gish, a menina que não é capaz de sor­rir. Ela tem uma boca de pena, uns olhos de medo. Sorri como quem chora e tem razão para isso: o pai é pugi­lista, bêbedo, mulhe­rengo e faz dela o saco de socos das suas frustrações.
Um dia, quase morta de pan­cada, foge. O corpo can­sado leva-a para a loja do chi­nês. Nesse pri­meiro ver­da­deiro encon­tro deles há um bai­lado de olha­res que se que­rem e se recu­sam. Mil pre­con­cei­tos na loja dos trezentos.


mil pre­con­cei­tos na loja dos trezentos
O chi­nês cobre-a de sedas azuis e ama­re­las, lírios para os cabe­los tris­tes de Gish. E a mão dela, sozi­nha, mais tole­rante do que a sua tão bela cabeça de teias vito­ri­a­nas, aca­ri­cia a face do homem ama­relo. “What makes you so good to me, Chinky?” é o que bem vemos Gish dizer ao seu sal­va­dor. E vemos os olhos de Barthel­mess, actor branco, a semicerrarem-se para serem mais chi­ne­ses e goza­rem a gló­ria de estar o Ori­ente a abrir, em Gish, uma peque­nina porta de Ocidente.
Mas nas ruas dessa depri­mida Lon­dres há punhos de ran­cor e vin­gança pron­tos a esmur­rar qual­quer pre­ten­são de final feliz. “Bro­ken Blos­soms”, filme da entrada do Ori­ente pelas por­tas do Oci­dente, ter­mina em fúria e fria morte: um chi­nês soli­tá­rio atra­vessa o nevo­eiro oci­den­tal com um inú­til cadá­ver ao colo. Tal­vez Grif­fith fosse um profeta.



Publi­cado no Expresso de 14 de Julho


 
http://www.escreveretriste.com/


 

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante?


 

“Não acredito muito em discos voadores, não. Sou meio cético para essas coisas sobrenaturais. Tenho um pouco de medo e de preguiça. Talvez por falta de desejo. Eu não desejo outra vida, ter um corpo astral, não desejo ir para outra dimensão. Desejo o aqui. Tenho horror de adivinhação do futuro. Sou cético. Mas sou místico também. Acho que tem muito mistério. Sinto a dimensão do mistério. Mas não acredito racionalmente em reencarnação. Acho tudo isso um saco. Este momento único é só este e não quer dizer nada. Isso também é difícil de aceitar. É mais difícil. Que é só isso e fim. Que não tem mais nada e não significa nada para ninguém. Não faz sentido em relação a outras coisas do Universo. Nada. É um acaso. Não está sendo filmado, não tem um diretor, não tem nada. É assim mesmo. É isso aqui. É um abismo total. Tem que ser místico até pra sentir isso. Tem que ser zen. Não tem explicação. Não faz sentido. Não é para fazer sentido.”

De Caetano Veloso em 1985, durante entrevista a Ademir Assunção
O título do post remete à música Um Índio, do próprio Caetano, interpretada abaixo por Zé Ramalho
 
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