Não se pode encapsular o amor.
O amor é vento livre, que assola as planícies com sopros desgovernados. Que venta montanhas e cordilheiras em uivos surdos. Que carrega as águas que deslizam fortes pela cachoeira. O amor é vento que nasce pequeno, e sopra sem cessar até que possamos tirar os pés do chão.
Não se pode encapsular o vento. A terra do amor é uma terra sem porto. O amor não se aporta, é navio sem âncora, conto sem ponto. Apenas se compartilha, se dissipa, se perde em si mesmo. Morre e renasce em diferentes formas. Uma, duas, dez, mil formas que enlaçam os corações desavisados.
O amor não cabe em nossas mãos, ele escorrega e alcança os ossos. Adentra a pele, perfura os vasos, e quando chega à medula já é outra coisa. É matéria prima do sangue, primo-irmão das células brancas e vermelhas. Mistura-se entranhado nas veias, e pulsa em diferentes tonalidades até ser expirado em ar quente pelos pulmões. O amor é a expiração que alcança o universo, em diferentes partículas. É o quente e o frio, o ar que volta para dentro para inflar a vida. O que é expelido para alcançar a morte.
Não se pode encapsular o ar. No momento em que tentamos colocá-lo dentro da garrafa, ele já é outra substância. O amor se transmuta fluído, se camufla entre desvarios, corre em passos largos para alcançar o horizonte que não tem endereço.
Não se pode reter o vento. Diante da ventania não há nada que se possa fazer, e então sentamos quietos, com os cabelos soltos e a pele em poros abertos. Com os olhos vidrados e as mãos em prece, para acolher o mistério: o amor pode percorrer o indizível.
E com sua fala sem voz, nos conta segredos que não se fixam na memória. Segredos que nos espantam, e transbordam para além do que podemos lembrar com raciocínio linear. O amor é tesouro que juntamos, peça por peça, em sentimentos acumulados desde as primeiras sensações de nascer em si mesmo. O amor é tesouro de sentir, e não há baú capaz de abrigar a riqueza conquistada. O amor não tem tampa, molde, forma, espaço apertado. O espaço do amor é o espaço do mundo.
Por vezes vem a agonia, e queremos prender o amor em alianças, papéis, regras, pílulas e tantos certos e errados. Ritos que celebram, símbolos que sacramentam, poderes de ditar ordens, remédios para aliviar a dor e evitar ameaças. Crenças de que o amor pode ser fincado no chão de terra, pode ser embalsamado pela casa construída, pode ser tijolo de pedra com cimento em cima. Crença de que o amor se possui, e se dirige.
Mas o amor é teimoso, e sua teimosia corrói as cordas. Vibra eletrizante pelas camadas duras. O amor não tem dogmas. É reino sem lei, com o rei deposto.
O amor pode ser vivido com ou sem presença, com uma, duas, três, quem sabe quantas pessoas. O amor é generoso. Pode ser flor solitária que desabrocha no deserto, ou pode caber justo no espaço da partilha de dois. Pode se esparramar para além do que podemos contar nas mãos, pode transbordar e alcançar os corpos nus ou, quem sabe, pode nunca ser tocado com os lábios.
O amor não tem gênero, não tem idade, não conhece etnias e credos. Não tem rótulos ou caixinhas com etiquetas. O amor não tem nome, sobrenome, família e descendência. E ri a todo tempo das regras inventadas, tão frágeis e comezinhas. Boas risadas que nos surpreendem quando, de repente, o peito sopra e o coração diz em silêncio latente: eu amo.
E a gente ama. Mesmo quando não quer, mesmo quando não pode. Mesmo quando tudo dá errado, quando existe medo, quando as barreiras se erguem tão grandes que não conseguimos ver o céu. A gente ama embaixo da aliança apertada, quando o papel falha, quando a regra diz não. Quando a gente se espanta pelo que não pode e, de repente, de ponta cabeça, sente as artérias grossas carregarem os mais delicados sentimentos.
A gente ama mesmo quando não tem voz para dizer, quando é inviável, quando a distância é tanta que parece sonho. A gente ama quando a vida aperta e corremos para longe do susto. A gente ama mesmo quando foge.
E o amor não tem vaidade exacerbada, não desfila em poses de fotografia. O amor não sai na foto. Esparrama-se pela cor azul e branca do céu, pelo preto e branco que se esvai em tons de cinza, pelo tempo que mancha a lembrança do papel. Pelo vestido que não serve mais, pelo arrepio que percorre a pele embaixo do casaco, pelo escuro dos olhos fechados.
O amor se espalha para ser inventado muitas vezes, para ser descoberto um pouco a cada dia, para adquirir novas e impossíveis formas.
O amor é irmão da liberdade, e qualquer sapato lhe aperta os pés.
Estejamos descalços, enfim.