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sexta-feira, 13 de julho de 2012
Sobre a Canção
IV – MELODIA E LETRA EM RETRATO EM BRANCO E PRETO
Retrato em branco e preto
Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho,
E sei também que ali sozinho,
Eu vou ficar tanto pior
O que é que eu posso contra o encanto,
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto e que, no entanto,
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes, velhos fatos,
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar
Lá vou eu de novo como um tolo,
Procurar o desconsolo,
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras,
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado,
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto,
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração
(Fonte: Songbook I de Tom Jobim)
Chico Buarque nos apresenta um universo de signos organizados de maneira rigorosa. Cada palavra é medida, balanceada e pensada nos seus aspectos fonoestilísticos, com o intuito de que letra e melodia formem "um só nó luminoso e inextricável" (termo utilizado por José Miguel Wisnik em seu ensaio "O artista e o tempo"). "Retrato em branco e preto" (1968), em parceria com Tom Jobim, pode seguramente ser citada como uma das canções mais bem realizadas, no que se refere ao encontro da palavra com a música, ou, mais precisamente, à articulação das "hierarquizações prosódicas com as melódicas" (o termo é de José Roberto do Carmo). Esta composição não nos apresenta a ingenuidade poética de "A banda", por exemplo, mas sim a consciência de um amor trágico, que "volta sempre a maltratar". Esse espírito de desilusão amorosa está impresso nas estruturas da melodia de Tom Jobim, que compôs primeiramente a música. Trata-se de uma melodia cromática com repetições (ostinatos) incisivas e harmonia dissonante. Essa espécie de "vai-e-vem" da melodia (que nos remete aos passos nervosos de uma pessoa) nos dá a sensação de que estamos rodando insistentemente sem chegar a nenhum lugar. Efeito que também se observa no plano da letra: "Já conheço os passos dessa estrada Sei que não vai dar em nada Seus segredos sei de cor" A letra dessa canção como um todo é uma tentativa de expressar sonoramente a sensação de impedimento, desilusão e repetição: "Vou colecionar mais um soneTo OuTRo ReTRaTo em bRanco em pReTo A maltTRaTar meu coração" Em toda a canção percebemos a presença ostensiva de "R" e "T", fonemas que exprimem dureza e quebram o fluxo melódico. Em geral, a consoante linguodental "T" funciona como um componente sonoro que instaura a rispidez e interrompe o efeito de continuidade de um verso. Na interpretação convincente de Elis Regina, presente no
disco "Elis e Tom", este efeito de sentido se torna mais claro, já que a cantora acentua e articula "sílaba por sílaba" os finais de cada frase musical. Através da interpretação de Elis Regina podemos sentir nitidamente a sensação de maltrato e dor do eu lírico através deste significativo efeito acústico provocada pelas consoantes oclusivas. Chico Buarque utilizou vários métodos estilísticos para transmitir com palavras (plano da letra) o que Tom Jobim fizera com notas musicais (plano da melodia). Dessa fusão, como já foi colocado, é que se delineia o sentido da canção. Consoante com os estudos de Luiz Tatit, sabemos que há vários outros elementos que são responsáveis pela geração de sentido na canção. Dentre eles: arranjo, interpretação, métodos de gravação. Porém, nos voltaremos mais especificamente para a conjugação entre melodia e letra. Dessa forma, já podemos então visualizar a relação (isotópica) entre os elementos musicais e literários de "Retrato em branco e preto":
Plano do conteúdo: a) A consciência de um amor trágico, que "não vai dar em nada"
b) A experiência de um tempo cíclico, no qual o sujeito sempre volta a sofrer as mesmas desilusões.
c) Incapacidade de disjunção do sujeito em relação ao objeto. Plano da expressão: a) Melodias com ostinatos (com padrões de repetição).
b) Ritmo repetitivo, circular.
c) Intervalos dissonantes, que provocam tensão.
Esse paralelo entre texto musical e texto poético nos revela que "Retrato em branco e preto" possui uma predominância de recursos típicos de uma canção passionalizada. É claro que o tipo de interpretação e arranjo dado à canção interfere na análise. É [revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano I - número 2 - teresina - piauí – setembro/outubro de 2009] 11 importante colocarmos, entretanto, que as classificações propostas por Luiz Tatit se interpenetram e se mesclam. Não se trata, pois, de categorizações rígidas e fechadas. De uma maneira geral, na obra de Tom Jobim e principalmente Chico Buarque as tensões do mundo amoroso, político, cultural se revelam na forma do conteúdo da letra e na construção melódica da música. Uma dialética do "social", do "amoroso" com o "formal". Nesse sentido, podemos afirmar que Chico Buarque, em especial, não é apreciador de trocadilhos e truques poético-musicais gratuitos e artificiosos, sem riqueza cognitiva - comuns na canção popular brasileira da atualidade. De uma maneira parecida, Tom Jobim "não tolera os excesso de notas e timbres. Preocupa-se com o que realmente soa no plano do ouvinte. Utiliza o essencial para caracterizar a função harmônica de acorde e elimina as notas de reforço" (TATIT, 2007, pg. 164).
NOTE: Articulação entre melodia e prosódia na canção popular brasileira: uma análise de Retrato em branco e preto - interessantíssimo artigo de Alfredo Werney baseado na técnica do Luiz Tatit
http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/dEsEnrEdoS_2_-_artigo_-_Alfredo_Werney.pdf
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano I - número 2 - teresina - piauí – setembro/outubro de 2009] 10
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