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sábado, 12 de janeiro de 2013

Despedida



E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.


Extraído do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.
Rubem Braga

Falando sozinho - Ruy Castro

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sábado, 12 de janeiro de 2013


Ruy Castro

FOLHA DE SÃO PAULO

Falando sozinho
RIO DE JANEIRO - Numa fase de muitas idas a trabalho a Nova York, Londres e Paris, nos anos 80 e 90, nunca me acostumei com as pessoas falando sozinhas que via pelas ruas dessas cidades. Não eram mendigos ou bebuns no último furo, o que poderia denotar uma avançada degradação mental -mas homens e mulheres de terno ou tailleur, graves, sóbrios, com pinta de altos executivos. Falavam em tom de voz mediano e regular, como se estivessem decifrando um conceito fenomenológico ou calculando o valor de pi.
Como não via isso no Brasil, exceto nos miseráveis de praxe, deduzi que falar sozinho era uma característica da civilização. Devia ser coisa de gente cujo bisavô tinha sido amigo de Lincoln, Lewis Carroll ou Rimbaud e, desde então, habituara-se a conviver com filósofos, astrônomos e primeiros-ministros dizendo coisas importantes ao seu redor -e era com elas que "dialogava" enquanto atravessava a rua.
Dialogava mesmo, porque eram falas que sugeriam pergunta e resposta, acompanhadas de gestos com as mãos e a cabeça. Eu me perguntava se aquelas pessoas não estariam ouvindo de verdade as vozes que os faziam falar sozinhos.
Bem, passaram-se muitos anos e, de algum tempo para cá, tenho cruzado nas ruas de RJ e SP com homens e mulheres graves, sóbrios, com pinta de altos executivos -e também falando sozinhos. Oba, chegamos à civilização -pensei. Na minha fantasia, imaginei-os descendentes de conselheiros do Segundo Reinado.
Só que, ao me aproximar de alguns, pude escutar o que falavam. Um discutia o Flamengo da véspera; outra contava o que acabara de ouvir na Ana Maria Braga etc. Todos usavam um Bluetooth, o minifone invisível que se acopla à orelha e faz parecer que o sujeito está falando sozinho. Mas não, ninguém estava falando sozinho, e muito menos calculando o valor de pi.