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domingo, 21 de abril de 2013

O Leite Derramado - Chico escritor

 em artes e ideias por em 19 de abr de 2013

 
Chico Buarque, famoso por suas composições, tem entrado no campo da literatura. As críticas têm sido ferozes, mas os prêmios recebidos não foram poucos. Nesse meio de prós e contras surge o livro "Leite Derramado", romance moderno homenageando passados...
 
 

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"Jó Joaquim, genial, operava o passado - plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?"
O trecho acima do conto "Desenredo" - do grande Guimarães Rosa - veio me à cabeça logo que acabei a leitura do "Leite Derramado", de Chico Buarque de Hollanda. Explicarei.
Chico já ganhou seu prestígio como compositor - que é inegável -, mas no campo da produção literária ainda enfrenta resistências. Sua obra tem aceitação dual: uns amam, outros queimariam na fogueira todos os exemplares. Bem... Eu devo confessar que o Chico-compositor é mais genial que o Chico-romancista, ele acostumou-nos mal, mas representa o que de melhor se produz hoje no Brasil.
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O livro - publicado em 2009 - foi bem aceito pela crítica - não em unanimidade, claro. Ganhou prêmios de peso: Livro do Ano (polêmico, oferecido pelo Jabuti) em 2010; Prêmio Portugal Telecom de Literatura de 2010; e a tradução para o espanhol - "Leche derramada" - ganhou recentemente o Prêmio de Narrativa José Maria Arguedas.
O livro é uma tentativa de retratar as memórias do velho Eulálio d'Assumpção - sim, esse é o nome. Um monólogo que toma todo o livro a fim de convencer-nos que seu passado glorioso - que transpõe o Atlântico e atravessa o império - reverbera a ponto de trazer tal glória ao seu estado atual: um velho pobre, esclerosado, esquecido num leito de hospital, esperando a morte chegar.
E onde é que o "passado plástico" de Jó Joaquim entra nessa história?
Na mente cansada e desordenada do pobre - mas orgulhoso - Eulálio, passados misturam-se e a ordem dos fatos não possui sentido. Ao longo do livro, os fatos retificam-se frequentemente - nem sempre com aviso.
"Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. [...] a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia."
Lembranças da infância e da adolescência misturam-se e repetem-se. Com humor sempre presente advindo do absurdo das histórias, dos preconceitos do protagonista - que não são poucos -, da repetição dos fatos, das releituras. O passado de Eulálio torna-se plástico, pois nem ele próprio sabe bem como contá-lo e defini-lo.
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"[...] e era natural que me causasse espécie entrar comigo no elevador um grandalhão com cara de nortista, nariz chato, pele grossa. Indiquei-lhe o elevador de serviço, mas ele me deu as costas e apertou o botão do meu oitavo andar."
Os detalhes de um passado que mistura esplendor e contos da vida privada são expostos sem vergonha. As garçoniéres de Paris, os ímpetos incontíveis, tudo é descrito com detalhes horrorizantes ou cômicos.
"Matilde repetiu, coragem, Eulálio, e já agora, em sua voz ligeiramente rouca, parecia que meu nome Eulálio tinha uma textura. Falou meu nome como se o arranhasse um pouco, e quando num volteio se retirou, tive como temia novo arrebatamento obsceno. [...] Se desejo era aquilo, posso dizer que antes de Matilde eu era casto."
A morte de Matilde é o ponto que mais possui versões. Por ser um episódio doloroso, talvez. Ela é apresentada como tuberculosa, esquizofrênica, mãe irresponsável, esposa infiel e mulher de pouca saúde. Cabe ao leitor escolher a melhor história ou ficar no maravilhoso ponto da dúvida.
A linguagem adaptada a um homem que chegou ao século XXI sem sair do século XIX foi bem colocada. A pontuação é utilizada de modo peculiar. A(s) história(s) é(são) bem contada(s).
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O livro merece, sim, os prêmios e elogios que recebeu. Num tempo de literatura de mercado, precisamos valorizar os que ainda se põem a descrever a vacuidade das nossas vidas.
O livro termina com a descrição da morte de um Assumpção - "que já não dizia nada com nada" - numa espécie de sugestão de "não há nada novo debaixo do sol".
Os eulálios continuariam existindo - inclusive literalmente, pois os netos, bisnetos, trinetos tiveram o mesmo nome do orgulhoso Eulálio.
Viva Chico! - Eu indico!

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