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sábado, 5 de outubro de 2013
Comecei a amar-te no dia em que te abandonei.
Foram as palavras dele quando, dez anos depois, a encontrou por mero acaso no café. Ela sorriu, disse-lhe “olá, amo-te” mas os lábios só disseram “olá, está tudo bem?”. Ficaram horas a conversar, até que ele, nestas coisas era sempre ele a perder a vergonha por mais vergonha que tivesse naquilo que tinha feito (como é que fui deixar-te? como fui tão imbecil ao ponto de não perceber que estava em ti tudo o que queria?), lhe disse com toda a naturalidade do mundo que queria levá-la para a cama. Ela primeiro pensou em esbofeteá-lo e depois amá-lo a tarde toda e a noite toda, de seguida pensou em fugir dali e depois amá-lo a tarde toda e a noite toda, e finalmente resolveu não dizer nada e, lentamente, a esconder as lágrimas por dentro dos olhos, abandonou-o da mesma maneira que ele a abandonara uma década antes. Não era uma vingança nem sequer um castigo – apenas percebeu que estava tão perdida dentro do que sentia que tinha de ir para longe dali para ir para dentro de si. Pensou que provavelmente foi isso o que lhe aconteceu naquele dia longínquo em que a deixara, sozinha e esparramada de dor, no chão, para nunca mais voltar.
De tudo o que amo és tu o que mais me apaixona.
Foram as palavras dela, poucos minutos depois, quando ele, teimoso, a seguiu até ao fundo da rua em hora de ponta. Estavam frente a frente, toda a gente a passar sem perceber que ali se decidia o futuro do mundo.
Ele disse: “casei-me com outra para te poder amar em paz”. Ela disse: “casei-me com outro para que houvesse um ruído que te calasse em mim”. Na verdade nem um nem outro disseram nada disso porque nem um nem outro eram poetas.
Mas o que as palavras de um (“amo-te como um louco”) e as palavras de outro (“amo-te como uma louca”) disseram foi isso mesmo.
A rua parou, então, diante do abraço deles. Não há memória de alguém, algum dia, ter considerado que aquele abraço foi um abraço de traição entre duas pessoas casadas. Toda a gente percebeu, logo ali, que a única traição seria não abraçar aquele abraço, por mais que houvesse documentos que comprovassem o contrário. Nunca casaram nem nunca se divorciaram. Não queriam perder tempo com papéis desnecessários. Os únicos papeis que assinaram, todos os dias, foram os dos poemas que, religiosamente, deixavam nos mais recônditos e secretos lugares da casa um para o outro. Não eram grandes obras e terminavam, sem qualquer variação possível, sempre da mesma forma: “amo-te”. Nunca receberam qualquer elogio da crítica literária, o que os deixava particularmente irritados. Souberam, anos mais tarde, que toda a sociedade os havia renegado. Chamavam-lhes, mesmo, os fugitivos. Eles, nesse ponto, concordaram em absoluto. Ambos sabiam que haviam fugido durante dez anos. E tinha sido tempo demasiado.
Sim, quero.
Foram as palavras dele quando ela, no registo civil como tinha de ser, lhe perguntou se queria nunca casar com ele.
Pedro Chagas Freitas
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