Por que criar romances que traduzam a psique do país é uma obsessão dos escritores dos Estados Unidos - e como “Liberdade”, de Jonathan Franzen, se juntou a essa liga.
por Paulo Nogueira
Liberdade é o quarto romance do norte-americano Jonathan Franzen, 51 anos. Se a sua obra anterior, As Correções (2001), faturou com um pé nas costas o mais cobiçado prêmio literário dos EUA, o National Book Award, Liberdade desencadeou uma pirotecnia que reduz os fogos de artifício do Réveillon do Rio a um anêmico vagalume. Um episódio mostra como o autor aumentou de tamanho entre uma e outra obra. Em 2001, a tentacular apresentadora de TV Oprah Winfrey selecionou As Correções para o seu Clube do Livro, um privilégio que garante a venda de muitas baciadas de exemplares. Só que o escritor deu um chá de cadeira na mulher mais influente dos Estados Unidos. ”As escolhas dela são piegas e unidimensionais”, esnobou o autor. A apresentadora cancelou a participação de Franzen no seu talk-show, alegando que ele “iria se sentir desconfortável”. Dez anos depois, esgrimindo um espírito esportivo digno do Barão de Coubertin, o idealizador dos jogos olímpicos, Oprah selecionou Liberdade para o seu Clube do Livro, reverenciando-o: “É uma obra-prima”. Se ninguém leva a mal um elogio, quanto mais dois – e, desta vez, Franzen não emburrou: passou do chá de cadeira para a colher de chá.
E fez bem, pois era só a ponta do iceberg. Em suas férias, o presidente Barack Obama desfilou com um exemplar do romance sob a axila. E disse do autor: “Ele é o cara!” (talvez esteja na hora de Obama virar o disco). A revista Time fez capa com o criador e a criatura, não regateando chiliques na manchete: “O Grande Romance Americano”. Vantagens de jogar em casa? Que nada. Do outro lado do Atlântico, o diário inglês The Guardian se derreteu todo e ronronou: “É o livro do século”. Os leitores brasileiros que anseiam por ver em carne e osso esse prodígio, podem ir desembainhando as suas Bics: Franzen já confirmou que vai bater ponto na Festa Literária de Paraty em 2012.
Antes de entrar no mérito de Liberdade, convém passar a pente fino aquele rótulo da Time – até para avaliarmos devidamente a dimensão da proeza. De que diabo falamos quando falamos do “Grande Romance Americano”? O termo surgiu num ensaioescrito pelo romancista da Guerra Civil Americana, John William de Forest, publicado em 9 de janeiro de 1888 – e se referia a um tipo de obra que conseguisse captar o sentimento e a psique tipicamente norte-americanos. A segunda metade do século 19 assinala não apenas a gênese dessa demanda (ou gincana) literária – são também outorgados os primeiros prêmios. De um lado, Mark Twain, com o seu As Aventuras de Huckleberry Finn, banhava a escrita da ex-colônia inglesa no realismo, no humor, no coloquialismo. Já em 1891, o crítico britânico Andrew Lang proclamou as lambanças de Huck e Tom Sawyer “o grande romance americano”. Do outro lado da barricada, dois escritores atormentados, doidinhos por sugestões simbólicas – e amigos do peito: Herman Melville (Moby Dick) e Nathaniel Hawthorne (A Letra Escarlate).
Moby Dick seria entronizado como clássico apenas em 1926, quando o ensaísta Lawrence Buell escreveu The Unkillable Dream of the Great American Novel: Moby Dick as a Test Case (em tradução livre, O Sonho Imortal do Grande Romance Americano: Moby Dick Como um Estudo de Caso). Como todo o símbolo que preste, a baleia Moby Dick era metafórica. Daí que até hoje exegetas e leitores gastem o seu latim jurando por Netuno que o animal representa a ânsia humana do Absoluto, ou aquilo a que os existencialistas chamavam de “a força das coisas”, ou um Santo Graal cetáceo. Menos, menos. Tendo em conta que o autor mobiliza mais de 100 páginas para descrever a técnica e a tecnologia da pesca à baleia, talvez seja simplesmente a maior história de pescaria de todos os tempos. Por sua vez, A Letra Escarlate, com uma ressonância quase gótica, ajuda o circo a pegar fogo ao introduzir um tema que se tornará longevo na literatura dos Estados Unidos, com múltiplos avatares: o puritanismo norte-americano.
ROL DE DESAVENÇAS
Mas é em 1925 que sai a síntese mais convincente das pulsões e poéticas que povoam a melhor literatura norte-americana: O Grande Gatsby, de Francis Scott Fitzgerald. Jay Gatsby é um anti-herói, contrabandista de bebidas. Mas o capitalista selvagem que tenta ser não passa de mera cascata: Gatsby torra toda a grana aos pés da sua idolatrada (e casada) Daisy, que o ignora. O protagonista acaba assassinado pelas costas por um crime que não cometeu (ele, que cometera tantos). O outdoor de uma ótica, como uns olhos que tudo veem, preside o romance – quem sabe a metáfora mais fecunda e inquietante da ficção norte-americana. Por outras palavras, Fitzgerald reconcilia momentaneamente as duas tendências acima mencionadas: a simbólica e a realista. Proeza digna de nota.
Para ter uma noção da vitalidade da literatura norte-americana, basta lembrar que, apenas quatro anos depois de Gatsby, desponta O Som e a Fúria, de William Faulkner. Com uma técnica modernista, brandindo numerosos pontos de vista (volta e meia, simultaneamente), Faulkner – no melhor estilo Balzac – coloniza todo um território imaginário, o condado de Yoknapatawpha. E inaugura um filão que dará pano para mangas: a temática do “Sul profundo”, com os fantasmas da Guerra Civil vivinhos da silva – tanto que chegam e sobram para puxar o pé (ou a mão) de escritoras tão admiráveis como Harper Lee, Flannery O’Connor e Tony Morrison. A partir daí, as correntes se espraiam em um dédalo de tendências. Se a trilogia USA, de John Dos Passos, e As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, são demasiado esquemáticos e sentimentais, O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, e O Homem Invisível, de Ralph Ellison, correspondem à representação romanesca de alguns supremos arquétipos norte-americanos: a traumática perda da inocência e as vicissitudes do individualismo. É uma diversidade de temas queespelha a galopante complexidade da sociedade norte-americana. O que um judeu nova-iorquino tem em comum com um mórmon de Salt Lake City? Brotam não propriamente efusões regionais (os Estados Unidos não têm aquilo que no Brasil se intitula de “literatura regionalista”), mas testemunhos e experiências contrastantes.
Cheguemos a Liberdade. Como em As Correções, no âmago do romance estão três décadas de uma família e os seus satélites emocionais. Desta vez, são os Berglund: Walter (“o cara mais legal do Minnesota”), a sua mulher, Patty, e os filhos, Joey e Jessica. Gravita em redor deles Richard, um veterano astro do folk-rock, ex e futuro amor de Patty – os norte-americanos o descreveriam como um “frenemy” de Walter, contração de amigo (friend) com inimigo (enemy). Enfim, um amigo da onça.Walter, a aparente efígie da decência e da responsabilidade, tem um lado negro que é um verdadeiro breu. Saliva pela sua jovem secretária – tão jovem que Franzen a batiza de Lalitha, uma óbvia homenagemà ninfeta de Vladimir Nabokov. Pior: advogado ambientalista e um apaixonado por aves (o próprio Franzen é um inveterado observador de pássaros), ele trabalha para uma empresa carbonífera de alto teor poluente.Walter e Patty, rebentos de pais disfuncionais, fazem das tripas coração para criar os seus filhos com a melhor das intenções. Mas não conseguem evitar um rol de desavenças e amarguras entre todos osintegrantes da família.
ERROS FORAM COMETIDOS
Se As Correções se ocupava das relações familiares quando o autor ainda estava na faixa etária dos filhos, em Liberdade, Franzen, aos 51 anos, emparelha claramente com os pais – mas não forçosamente para vestir a camisa deles. O romance começa nos anos 1980 e avança aos ziguezagues até 2004 e depois até o presente. Geograficamente, transita de Saint Paul, no Meio-Oeste (o berço de Franzen), para a capital, Washington.Há mais paralelismos obra/autor: o músico Richard (o “artista” do livro), depois de uma ascese estética mais ou menos voluntária, tira o pé da jaca e alcança a notoriedade em 2001, o mesmo ano em que Franzen ganhou o National Book Award com As Correções e se tornou uma (talvez “a”) figurinha carimbada das letras norte-americanas. Richard e Jonathan se locupletam com a mesma idade: aos 40 anos. Patty é uma das criaturas mais poliédricas do romance, desenhada até a mais ínfima filigrana. O título do diário dela, uma das seções narrativas de Liberdade, diz tudo: Erros Foram Cometidos. Botem erros nisso. Ex-estrela do basquete universitário, uma típica princesa do Minnesota e indefectível imperatriz do seu bairro chique, a partir daí a vida de Patty vai ladeira abaixo – sem freios de pé ou de mão (e vem uma jamanta no cruzamento).
Liberdade revolve laboriosamente os conteúdos e significados de “juventude” e “maturidade”, liberalismo e libertarismo. Assim, embora o cenário do romance seja a mais completa tradução do livre-mercado, a sacrossanta palavra do título acaba por assumir um inopinado sentido semipejorativo. Franzen celebra implicitamente os valores da responsabilidade e da probidade e relativiza uma liberdade à moda da casa. Por exemplo, a liberdade de impingir ao mundo Bush ou Sarah Palin, ou de infestar o planeta com os McDonald’s da vida. É, erros foram cometidos. Aquilo que o romancista escreve sobre outro personagem também se aplica a Walter, o mocinho/bandido da história: “A personalidade suscetível de sonhar com uma liberdade ilimitada é uma personalidade igualmente propensa à misantropia e à ira”. Apesar de o enredo sugerir isso, Franzen transcende a sátira, por mais impagável e virótica que esta seja. Os personagens de Liberdade são muito mais do que fantoches hilários. E, se acabamos por conhecer o clã Berglund e sua constelação como a palma da mão, algo neles permanece enigmático e intangível. São seres humanos, prismáticos e camaleônicos, gente como a gente.
Liberdade, com mais de 600 páginas, ganhava com uma lipoaspiração, como fungaram alguns críticos? Talvez. Mas não choremos de barriga cheia. A humanidade, a destreza, o humor e a tristeza do autor (que em alguns momentos lembram os filmes de Frank Capra) compensam esses hipotéticos pneuzinhos. Antes sobrar que faltar. E antes as calorias de Liberdade do que a anorexia de forma e conteúdo de tantos romances que bruxuleiam por aí.
Paulo Nogueira é escritor e jornalista, autor do romance O Suicida Feliz, entre outros.