Naquele tempo não havia Internet. Nem as comunicações móveis estavam generalizadas. Nem dialogávamos por sms. A informação global mais instantânea que nos chegava diariamente vinha ainda de um ecrã de televisão, não de um computador: as emissões da CNN, que acompanhávamos com o maior interesse, transmitiam-nos notícias sobre o rescaldo da Guerra do Golfo, o processo de irreversível desagregação da União Soviética ou o precário equilíbrio de poderes na China pós-Tiananmen. Sabíamos de cor os nomes dos repórteres da CNN, tal como decorávamos os nomes de várias personagens de Twin Peaks, a série de David Lynch que pouco antes havia assombrado toda uma geração de telespectadores, ou de X-Files, o grande êxito mundial seguinte.
E que mais? Vasco Rocha Vieira dava os primeiros passos à frente do Executivo de Macau e um tal Bill Clinton, governador do minúsculo estado do Arkansas, anunciava a intenção de concorrer à Casa Branca. Em Portugal, Basílio Horta assumia-se como o candidato presidencial mais à direita de sempre nas eleições de 1991, enfrentando o seu rival Mário Soares com uma questão incómoda: a das supostas irregularidades no processo de concessão do aeroporto de Macau. Vinham ainda muito longe os tempos em que o ex-secretário-geral do CDS se distinguiria como protagonista da bancada do PS nos debates parlamentares em São Bento.
O mundo estava perigoso, alertavam alguns oráculos. Sem imaginarem, há vinte anos, que se vivia então um dos tempos áureos de paz e prosperidade que o planeta em geral -- e o mundo ocidental em particular -- conheceram desde sempre. Ninguém falava então em crise sistémica, em tirania dos mercados, em recessão global. Éramos mais jovens e muito mais felizes, embora sem o saber, como diria Hemingway no final dos anos 50, aludindo aos dias solares que viveu em Paris, na década de 20. Também uma década de transição. Uma década de bonança antes da tempestade.
Alguns de nós podemos hoje orgulhar-nos de ter feito jornalismo numa época que mais tarde será recordada como tempo de pioneiros. Nós, os membros dessa vasta tribo do jornalismo pré-digital. Em que o acesso às fontes era mais difícil, a confirmação de factos não podia concretizar-se com um simples clique num rato, os modems e os telefones de satélite ainda tinham uma aura de ficção científica e o papel impresso parecia quase tão eterno como na geração de Guttenberg. Eram tempos agitados -- mas, paradoxalmente, mais calmos do que os de hoje, em que a tecnologia que devia facilitar-nos o quotidiano acaba por constituir uma nova espécie de escravatura. Tempos em que havia mais vagar para o convívio, para o ócio que estimula a criatividade, para a conversa de circunstância que permitia cimentar amizades que nunca acabam.
Orgulho-me de ter feito parte desta geração de pioneiros. E dessa época em que, fechada a edição do Ponto Final já de madrugada, no 17º andar do edifício Si Toi, contemplávamos as luzes e as águas plácidas do Porto Interior antes de rumarmos noite fora em celebração da vida.
E o que é o jornalismo senão isto -- a celebração da vida?
por Pedro Correia
Publicado no jornal Ponto Final, de Macau -- fundado há 20 anos. Imagem: a península de Macau em 1991 (foto do blogue Macau Antigo)