"E para onde vai Cuba? Seu futuro é incerto, a despeito das declarações oficiais. O país desenvolveu sua nacionalidade aos trancos e barrancos ao longo do século XX, e Guantanamera foi refletindo este desenvolvimento no seu próprio, passando de canto de lavradores a hino político, sem deixar de ser, no fundo, o que sempre foi, mesmo antes de receber a poesia de José Martí: uma canção que fala da mulher, da pátria, da natureza e dos filhos a quem se deixará esta terra. Ao cantar o refrão guajira guantanamera, canta-se o amor à mulher camponesa, ao estilo musical dos antepassados (e por extensão à riquíssima cultura cubana), ao território cubano expropriado pelo estrangeiro, à toda a ilha e seu povo, seu sofrimento e suas histórias. Guantanamera é a soma de todos estes sentidos que lhe foram acrescentados pelo tempo, e é maior do que a soma deles. Porque cada uma desta épocas históricas, colonial, ditatorial, socialista, revolucionária, passou ou passará, e Cuba permaneceu e permanecerá. E certamente Guantanamera a acompanhará."
com Compay Segundo
com Zé Rodrix, numa belíssima versão vocal. (Zé adorava rítmos caribenhos, e alguns anos depois compôs outra guajira, mais bem humorada, que nomeou seu álbum de 1978: Soy Latino Americano)
Leonardo Davino é um estudioso sobre Literatura e música que durante o ano de 2010 enfrentou o tremendo desafio de fazer a análise de uma canção por dia (!) O resultado foi o blog 365 canções. E quando o exercício auto-proposto acabou, ele logo achou um modo de estendê-lo. Assim, hoje ele tem o blog Lendo canção, que pelo título considero desde já primo deste, com a intenção de ouvir, acompanhar e ler de modo crítico e ensaístico a canção mediatizada criada a partir dos anos 00, e dividindo o foco entre as poéticas vocais (pois uma canção que muda de intérprete muda a sim própria junto) e a metacanção (a canção que fala de si mesma, prato cheio para análises, mas também a relação entre canções). Trago um exemplo das análises do Leo, que partem de viezews muito diferentes dos meus – o que é ótimo – recomendando ao mesmo tempo seu blog. Esta se concentra na canção Feira de Mangaio, de Sivuca e Glorinha Gadelha, na gravação de Clara Nunes (que não foi composta nem gravada depois de 2000, mas e daí?) Mas o que me encantou nela foi a ponte que ele enxerga e assinala quase de passagem, partindo de Carmem Miranda e chegando a Rita Ribeiro através de Clara, por ambos os trajetos a que se propôs: pelo diálogo entre seus repertórios e entre suas vozes brasileiras, espalhadas no mapa, encadeadas no tempo. Eis aqui:
Um dos grandes benefícios da remasterização sonora é a possibilidade que ela nos dá de contato com artistas e vozes que circularam “presencialmente” por outras épocas. Se a gravação vocal em si já amplia a noção de permanência e presença do artista, cuja voz pode ser acessada ao sabor do prazer do ouvinte, a remasterização traz para nosso redor vozes registradas noutros suportes e técnicas. E isso é maravilhoso. Desperta comparações, promove novas análises e aproximações entre os próprios cancionistas.
Penso nisso quando ouço Rita Ribeiro, em sua cartática performance tecnomacumba, cantar acompanhada por um vigoroso coro os versos “Saia do mar, linda sereia, saia do mar, vem brincar na areia” e me vem à lembrança da imagem de Clara Nunes na TV, sambando à beira mar, com o vento buliçoso balançando seus cabelos soltos. E assim sou levado a pensamentos que só a experiência estética (me) oferece.
A imagem que resulta da sobreposição imaginativa de Carmen Miranda e seu turbante frutal e Clara Nunes e seu chocalho amarrado na canela é reveladora: desperta uma entidade feita de “amor da cabeça aos pés”, pura dança e sexo e glória. Tutti-frutti hat e chocalho. Uma portuguesa-brasileira até o último balangandã e uma mineira “filha de Angola, de Ketu e Nagô, de Ogum com Yansã”.
Ambas unidas inconsciente e (talvez) involuntariamente numa ação sincrética. Situadas em “um espaço de (mais raramente harmônico que conflituado) de fusões, transfusões e confusões. Espaço de convergências, justaposições, amálgamas, padês”, na definição de Antonio Risério para sincretismo, em A Utopia brasileira e os movimentos negros.
Do “tabuleiro da baiana” à “feira de mangaio”, há uma cordialidade antropofágica entre os signos de africanidade e europeização. Por isso não entendo quem analisa a mestiçagem no Brasil apenas pelo viés do embranquecimento da cultura afro. Subestimando a capacidade de reinvenção e manutenção dessa cultura.
Guardada no disco Esperança (1979), “Feira de Mangaio”, de Sivuca e GlorinhaGadelha, encontra na voz e na persona artística de Clara Nunes a melhor representação. A sofisticação na hibridização dos elementos verbais e melódicos dançam ao ritmo do remelexo de Clara Nunes.
Tal e qual a baiana do acarajé defendida por Carmen Miranda, Clara Nunes aqui é uma feirante a cantar e oferecer suas prendas e lindezas: “Fumo de rolo arreio e cangalha (…) Bolo de milho broa e cocada (…) Pé de moleque, alecrim, canela”.
Mas transmutada no sujeito da canção Clara é também uma observadora e cantora da cultura popular (ainda) não mediatizada: cindida entre o urbano e o interior. Como não acreditar (e visualizar a cena) quando ela canta que “tem um sanfoneiro no canto da rua / Fazendo floreio pra gente dançar / Tem Zefa de purcina fazendo renda / E o ronco do fole sem parar”?
Clara Nunes canta tudo com uma verdade (alegria) irresistível. Há uma potência mestiça em mutação na sua performance. “Nossa população nunca foi obrigada a amputar antepassados. É majoritariamente mestiça. E se reconhece como tal”, anota Risério. Clara Nunes identificava isso e transformava o Brasil mestiço em objeto estético. Como Carmen também fez a seu tempo.
“Vem desde o tempo da senzala / Do batuque e da cabala / O som que a todo povo embala / E quanto mais o chicote estala / E o povo se encurrala / O som mais forte se propala”, diz o sujeito de outra canção do repertório de Clara Nunes intensificando a discussão.
Carmen e Clara deram vida (voz) a sujeitos comuns, interpretaram canções de rápida identificação popular. Para o povo não se desesperar, elas não deixavam de cantar. Duas sereias cantando pelos sete cantos a tolerância, a democracia, o diálogo entre culturas afins, que se desconheciam, mas que se reconhecem.
Carmen e Clara deram vida (voz) a sujeitos comuns, interpretaram canções de rápida identificação popular. Para o povo não se desesperar, elas não deixavam de cantar. Duas sereias cantando pelos sete cantos a tolerância, a democracia, o diálogo entre culturas afins, que se desconheciam, mas que se reconhecem.
No tabuleiro da baiana – de Ary Barroso, com Carmen Miranda