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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Vinicius de Moraes, O poetinha centenário





Soneto da Fidelidade


De tudo ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.


Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento


E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama


Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes





Palavra de poeta:

A gente não faz amigos, reconhece-os.

Amai, porque nada melhor para a saúde que um amor correspondido.

Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia.

O uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado.

A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

Quem já passou por essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu...

Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém.

Vinicius de Moraes



Procure saber: biografias que comem fígados

 - Escritor e médico.

Botar pra foder, este é o ponto. Barbarizar. Mais do que procurar saber, mano caetano, procure confundir, pois, na seara da arte, diz o poeta, é proibido proibir. E se aquilo, na verdade, não é arte, mas, maldade, má fé ou sacanagem? Como ter certeza dos reais propósitos de um escriba?
Manual das biografias sensacionalistas: pinçar, garimpar, arrancar das fontes secretas as minúcias mais picantes, quiçá humilhantes, os detalhes alegóricos sem valor histórico, porquanto, histéricos. Não tem erro: são três palitos. É nhambu na capanga da editora.
O raciocínio do cidadão comum — o idiota comum, aquele que, em termos de relevância cultural e histórica, nem cheira, nem fede — funciona assim: se um sujeito é famoso, e este sujeito não é ele próprio, que aguente a bucha. Afinal de contas, as regras hidrofóbicas do mundo cão são claras, senhores arnaldos: em se tratando de celebridades, os incógnitos têm todo direito de contribuírem para a desconstrução, a demolição da imagem, uma espécie de revestrés da idolatria.
Quem, gozando de plena adimplência das faculdades mentais, vai querer biografar um médico cubano arrancando unhas no Acre, um ex-bóia fria que ajudou a construir Brasília, uma freira estrangeira assassinada de qualquer maneira numa tocaia à beira do caminho no Pará, o soldado desconhecido que não conhecia o amor até ser alvejado no peito na Guerra do Paraguai? Não se engane: deseja publicar e vender livros a rodo? Mire, não nos meus, nos seus, nos nossos, mas, nos podres dos ídolos pop.
Cumpre ressaltar — como se isso não estivesse claro — que um famoso não passa de um pobre diabo como outro qualquer, só que possui notoriedade, a lataria tá impecável, brilhando. No frigir dos ovos, ele é parecido com a gente quando sente dor, quando senta na latrina pra cagar de rir dos outros, quando pare criaturinhas com cara-de-joelho mais conhecidos como “fetos”, quando tem um orgasmo, quando deixa escapulir um orgasmo, quando perde o afeto, quando sente medo, quando erra feio, quando não se parece mais com a imagem pintada pela mídia.
Enfim, para escritores mal intencionados e sua ralé de leitores, biografar os famosos é arrancar-lhes a pele, o encanto e a mística. Por exemplo, as biografias bombásticas atreladas às mazelas humanas de alcova e às peripécias sexuais supostamente picantes (o sexo que os outros fazem parece coisa de outro mundo) são, sem dúvida, um desserviço à fantasia e à sublimação, um atentado violento ao “faz de conta que existe alguém mais legal do que a gente no planeta”.
Se um dia eu me tornar biografiável, ao ponto de um desocupado se dar ao trabalho de contar a minha desautorizada história de vida, poderei ficar bastante constrangido — se ainda não tiver sido devorado pelos micróbios — caso seja revelado, por exemplo, que, de tão gordas, eu comia as terças-feiras de carnaval pelas beiradas.
Atenção! Informe caritativo: não perca o seu tempo a vasculhar nas entrelinhas da frase anterior uma sacada genial deste escritor. Ela quer dizer nada. Jamais se esqueça, cabeça-de-bagre: eu não sou um escritor-cabeça. Anote isto aí. Se preferir, publique. Desde já, eu deixo autorizado.
Nos últimos dias, a polêmica acerca da proibição ou não das biografias não autorizadas no Brasil tem agitado o meio editorial já que, fora dele, a coisa anda meio devagar quase parando. Artistas e intelectuais veteranos que se manifestaram contrariamente a elas têm sido acusados de censores, reacionários e velhos (putz!).
Aliás, neste quesito das adjetivações diminutivo-escorchantes, não tem psicólogo, nem Liga da Melhor Idade que dê jeito: hoje em dia, chamar alguém de “velho” já virou até ofensa. Só tomando tiro na têmpora ou conhaque com rivotril pra suportar tamanha humilhação.
Em essência, as biografias escandalosas buscam catapultar biógrafos medíocres, além, é claro, de entulhar com grana os cofres das editoras. A sordidez dos leitores carniceiros orbita em curiosidades do tipo: descobrir, de uma vez por todas, se um famosíssimo cantor romântico realmente tinha uma perna mecânica; se aquele humorista já falecido teve o septo nasal corroído de tanto cheirar cocaína; se um famoso diretor novaiorquino de cinema engravidou mesmo a própria enteada; se uma famosa apresentadora da TV tinha predileção pelo coito anual, ao invés do anal; se aqueles quatro roqueiros ingleses fumaram maconha escondidos no banheiro do palácio antes de serem condecorados pela rainha; se o galã da novela das oito curtia, na verdade, um sessenta e nove com rapagões de vinte e poucos anos; e outras particularidades da intimidade humana.
Do jeito que os medíocres fazem escola hoje em dia, encontrar pessoas cuja leitura ultrapasse os patéticos perfis facebookianos com suas repetitivas mensagens alvissareiras, por si só, já parece uma tremenda aberração. Eu desconfio das estatísticas. Após o advento das redes sociais, eu receio que a cada dia os brasileiros, que já não eram muito chegados, leiam menos livros. Ocorre que, essencialmente, o mercado clama pela esculhambação. Humilhar, constranger, desencantar, colocar alguém pra baixo… Eis aí o papel do homem esperto: subtrair, faturar e ainda sair cantando de galo. Ou de galinha. Mulheres, quando querem, também saber ser malvadinhas.
Não é proposital, nem por excesso de burrice, mas, eu costumo mudar de opinião mais do que deputados federais mudam os seus votos durante as votações secretas na Câmara e as lobistas gostosas mudam de calcinha para convencerem as autoridades na cama. Por enquanto, até que o dia amanheça, eu acho que sou contra as biografias não autorizadas. Contudo, sou aberto a bons argumentos e caldo de galinha.
Nunca se sabe que proporção um deslizezinho do passado poderá adquirir na pena de um biógrafo pouco criterioso em busca do estrelato. Pra terminar: posso contar-lhe um segredo? Quando eu era criança, subia no livro de receitas culinárias da vovó para espiar a empregada pegando uma ducha. Por falar em gastronomia e putaria, se um dia você cismar em escrever uma biografia para comer o meu fígado, ao menos use camisinha. Estamos combinados?

15 melhores poemas de Paulo Leminski

Paulo Leminski


Pedimos a 15 convidados — escritores, críticos, jornalistas — que escolhessem os poemas mais significativos de Paulo Leminski. Cada participante poderia indicar entre um e 15 poemas. Escritor, crítico literário e tradutor, Paulo Leminski foi um dos mais expressivos poetas de sua geração. Influenciado pelos dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos deixou uma obra vasta que, passados 25 anos de sua morte, continua exercendo forte influência nas novas gerações de poetas brasileiros. Seu livro “Metamorfose” foi o ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia, em 1995. Entre suas traduções estão obras de James Joyce, John Fante, Samuel Beckett e Yukio Mishima. Na música teve poemas gravados por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Guilherme Arantes; e parcerias com Itamar Assumpção, José Miguel Wisnik e Wally Salomão.
Paulo Leminski morreu no dia 7 de junho de 1989, em consequência de uma cirrose hepática que o acompanhou por vários anos. Os poemas citados pelos participantes convidados fazem parte do livro “Melhores Poemas de Paulo Leminski”, organização de Fred Góes, editora Global. Abaixo, a lista baseada no número de citações obtidas.

Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Dor elegante

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha
Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Invernáculo

Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.

O que quer dizer

O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.

M. de memória

Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

Parada cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

Aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

Amar você é
coisa de minutos…

Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui

Poesia:

“words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakóvski), “cernes
e medulas” (Ezra Pound), “a fala do
infalável” (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jakobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Valery), “fundação do
ser mediante a palavra” (Heidegger),
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranquilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com ideias” (Mallarmé),
“música que se faz com ideias”
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticismo of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
impossible hecho possible” (Garcia
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo Leminski)…

Adminimistério

Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.
Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

Sintonia para pressa e presságio

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Não discuto

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

Sem título

Eu tão isósceles
Você ângulo
Hipóteses
Sobre o meu tesão
Teses sínteses
Antíteses
Vê bem onde pises
Pode ser meu coração

Poesia: do dáctilo ao dígito


O texto abaixo, de autoria de Augusto de Campos, foi extraído do folder da exposição Erthos Albino de Souza. Poesia: do dáctilo ao dígito, que ficou em cartaz no IMS-RJ, em 2010 .

ESTRanHO ERTHOS – POESIGNOS
Augusto de Campos 
Jamais conheci um intelectual tão generoso como ele. Erthos Albino de Souza (1932-2000). 
Em ERRÂNCIAS, seu livro de memórias, prosa única, semiótico-futurista, publicado no ano em que Erthos falecera, Décio Pignatari deu-nos dele uma significativa e emocionante memorabilia. Carlos Ávila conseguiu arrancar-lhe uma rara entrevista, em 1983, e organizou uma primeira bibliografia de seus trabalhos, que veio a ser acrescida ao estudo “O engenheiro da poesia”, incluído no livro POESIA PENSADA (2004), que Carlos dedicou ao poeta mineiro-baiano. Faltava preencher o branco da obra desse estranho personagem que nos fascinou a todos, um albino “livro-livre” que esta exposição começa a preencher. 
Que era um grande pesquisador, responsável que foi por inúmeras descobertas de textos de Sousândrade, Kilkerry e Patrícia Galvão, é um fato conhecido, reconhecido e proclamado nos livros dos concretos. Que financiou, espontaneamente, muitas das nossas produções, é tam­bém sabido e consabido. Mas e o Erthos poeta?
“Amava os livros, não lê-los: em consequência, literatura sem literatura.” “Bibliófilo amador e errático, era um livro a procura de autor.” – sintetiza drasticamente Pignatari o seu ”desretrato” verbo-reticular do poeta. Imagens pirandelloborgianas, que recarregam, com tintas de propositado alto-contraste, os traços de um vulto que nos evoca algo de Bartleby, o personagem de Melville: “Prefiro não fazer”. Mas fazia. Só que, por timidez ou bloqueio, não se animava a publicar um livro. Preocupava-se, angelicalmente, acima de tudo com os outros, e ficava feliz com o êxito dos projetos e das obras dos poetas em quem acreditava e que financiava com a maior e mais desinteressada generosidade. Curiosamente, embora mostrasse extrema sensibilidade estética, não tinha animus crítico ou ensaístico. Suas cartas eram sucintas e pragmáticas, no indicar as suas aprovações ou desaprovações, concentrando-se em registrar os achados de suas pesquisas, as sugestões e as correções bibliográficas que fazia, com apuro, além das expressões de sua admiração e amizade. Minha correspondência com ele vai de 1962 a 1994 — mais de 30 anos. Com suas cartas me chegavam, em primeira mão, muitos dos poemas, dactilo ou digitografados que integram esta mostra. 
Crisálida, 1967

Depois nossos contactos foram escasseando, limitando-se a telefonemas e envio de livros, até que, aos poucos, foi deixando de se comunicar comigo e com todos os amigos, à medida que se agravava a enfermidade que o fez perder, de todo, a memória, e da qual só tivemos tardias notícias.

Nascido em Ubá (MG), viveu a sua maturidade intelectual em Salvador, profissionalmente como engenheiro da Petrobras. Nos dois apartamentos que lá adquiriu, um na Barra e outro em Pituba, repletos de livros, ele hospedava, cheio de cuidados, os amigos visitantes — eu e Lygia, Décio, Haroldo, Leminski e tantos outros.

Como começou tudo? Em 1960, o crítico Oliveira Bastos me fez conhecer um volume de O GUESA , de Sousândrade, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Entre dezembro do mesmo ano e fevereiro de 1961, Haroldo e eu publicamos os primeiros estudos abrangentes sobre o esquecido poeta maranhense: MONTAGEM: SOUSÂNDRADE, na página “Invenção”, do jornal Correio Paulistano. O ensaio veio a ser republicado na revista pernambucana Estudos Universitários, no ano seguinte, e voltou a sair, ampliado, sob o título SOUSÂNDRADE: O TERREMOTO CLANDESTINO , naRevista do Livro, RJ, em março de 1964. Desde que tomou conhecimento do trabalho, em 1962, Erthos entusiasmou-se por ele e nos escreveu, propondo-se financiar o nosso projeto de resgate da obra do poeta, RE -VISÃO DE SOUSÂNDRADE . Conseguimos uma pequena editora, que assumiu o compromisso de imprimi-lo e nos ofereceu um orçamento. Passamos para o Erthos e ele nos mandou um cheque para cobrir as despesas. Nunca nos tinha visto. O livro saiu em 1964 e ainda com uma separata de O INFERNO DE WALL STREET, com capa de Pignatari, sob a rubrica “Edições Invenção”. 
Cygnus, 1974. Poema-objeto

Só viemos a nos conhecer pessoalmente em 1969 , quando fui a Salvador completar as pesquisas de outro projeto, RE -VISÃO DE KILKERRY , iniciado ainda em 1962, com a inestimável cooperação de Erthos. Mais adiante, com a colaboração do juvenilíssimo Antonio Risério, que, aos 20  anos, despontava brilhantemente para a poesia e para a ensaística, fundou e financiou a revista CÓDIGO, que teve 12 números — de 1973  a 1989 .

Suas obras criativas estão disseminadas nas revistas experimentais da época, como CÓDIGO , POLEM , QORPO ESTRANHO , ARTÉRIA , MUDA , ATLAS . O poeta Omar Khouri que, com Paulo Miranda, lançou heroicamente várias delas, publicou em livro a sua tese de doutorado — REVISTAS NA ERA PÓS-VERSO — Revistas experimentais e edições autônomas de poemas no Brasil, dos anos 70 aos 90 (Ateliê Editorial, 2004), que recenseiam as principais dessas publicações, ainda hoje, de impressionante novidade, mas que têm permanecido “à margem da margem” dos estudos literários que abrangem o período. 
Livre, 1973. Poema-objeto

Pode-se situar em três fases e faces distintas a prática poética de Erthos: 1 ) DACTILOGRAMAS  — 1967 ; 2 ) POESIGNOS  e 3 ) MUSA SPECULATRIX, os poemas digitais — as últimas obras, desenvolvidas na década de 1970. O terceiro título aqui sugerido aparece na nota de um texto visual compu­tadorizado, onde estão dispostas circularmente as palavras latinas SORTE PALUDE SEDULA PETROSA , com a nota “poema da série Musa Speculatrix, dedicado a Lola [gata de estimação do poeta] por ocasião de sua operação devido a uma palindromia — Bahia Junho de1974”. Erthos joga com a expressão “palindromia” — no sentido mais comum (palíndromo: palavra ou frase que podem ser lidas da esquerda para a direita ou ao contrário) e no sentido clínico de “recaída de certas doenças nas quais os líquidos se acumulam nos órgãos inferiores” (segundo o Dicionário Cândido Figueiredo). A frase latina completa seria SEDULA PETROSAS IRRISA SORTE PALUDES, a primeira linha de uma quadra de ver­sos palindrômicos, de significado conjectural. 
Numa carta de 4 de julho de 1972 , anunciou-me que estava trabalhando em computador e já fizera algumas experiências com letras e palavras. Do computador serviu-se também ele para fazer contagens vocabulares — o da frequência de palavras na poesia de Kilkerry, que utilizei para o estudo do poeta de O VERME E A ESTRELA; o dos vocábulos de UN COUP DE DÉS; o das combinações possíveis dos meus poemas PERDE -GANHA , 1968 (deste, apenas alguns exem­plos das 1.625.702.400 permutações possíveis, segundo cálculo feito à época por Roland de Azeredo Campos) e COLIDOUESCAPO (1970). Erthos também colaborara com Pedro Xisto na contagem estatística do poema permutacional VOGALÁXIA (1966). Foram anos em que os poetas concretos se interessaram pela poesia aleatória (o meu ACASO , ALEA I de Haroldo, TORRE DE BABEL , de Décio Pignatari, todos de 1963). E foi Erthos também o autor da espiral verbo-digital de PARTÍCULAS (capa do livro de Xisto, publicado em 1984), um verdadeiro poema visual, que po­deria ser incluído na série MUSA SPECULATRIX. 
Soneto alfanumérico, 1973

Terá sido em 1968, na antologia 25 POETAS/BAHIA  — dezembro — Salvador, que ele publicou pela pri­meira vez um poema, CRISÁLIDA, composto no ano anterior. Mas foi na década de 1970 , e principalmente depois que criou com Risério a revista CÓDIGO, que Erthos se tornou mais conhecido, passando a ser requisitado para divulgar seus poemas, principalmente nas revistas experimentais do eixo Bahia/São Paulo — ”a pororoca”, como a denominou Paulo Leminski num artigo definidor e definitivo. CRISÁLIDA e outros dactiloscritos foram reunidos em um projeto de livro, intitulado DACTILOGRAMAS 1967  (13  poemas), dos quais foram aquele poema e o primeiro da série, DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES… os únicos, que eu saiba, publicados. Tenho uma cópia original desse livro, inédito, que marca o início da criação poética de Erthos. Tributário, certamente, da poesia concreta da linha ortodoxa, mas com realizações distintas, e demonstrando muita habilidade de composição. CRISÁLIDA é um dos mais bem realizados, e resolve de modo inteligente e sutil a metamorfose do vocábulo em BORBOLETA, que tem o mesmo número de letras, mas configura uma impossibilia posta sob o desafio dos doublets de Lewis Carroll, nos quais, há que se passar de um termo ao outro mudando só uma letra de cada vez e sempre usando vocá­bulos vernaculizados. 
Aos seus DACTILOGRAMAS acresceu o poeta um caderno de iguais dimensões, em folhas soltas (12  ao todo), que também me presenteou, e onde transita dos dactiloscritos aos poemas executados com letra-set, nos anos 1970 — dos quais apenas STRIP-TEASE e RASGAR vieram a ser difundidos. 
Nessa época, certamente por influência dos “logogramas” de Pedro Xisto publicados, na bela arte-final de J .R. Stroeter, no nº 5  da revista INVENÇÃO (1967), interessou-se também por criar logotipos para homenagear determinados autores, como os que dedicou a Pagu e a mim, este estampado numa caixa preta, que ele criou para que eu abrigasse meus poemas. Dos logotipos passou aos menos despretensiosos logopoemas, que chamava de POESIGNOS , pautados pelo significativo CYGNUS (1974), que foi capa da revista CÓDIGO nº 2 no ano seguinte. 
Muitos desses poemas Erthos me enviava para apreciação, sem contudo se decidir a editá-los em coletânea. Apareciam, sempre, esparsos, nalguma revista experimental. Não lhe faltava humor – sorriso despretensioso com que produziu o seu “dactilograma” DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES… e, mais adiante, um duchampiano WANTED, em homenagem a Duchamp, com os retratos de frente e de perfil de Ruy Barbosa, no cinquentenário da sua morte, em 1973. Por essa época também me deu de presente um retrato anamórfico, formado com tiras recortadas de uma foto minha na exposição de poesia concreta realizada em Salvador no mesmo ano. 
Stsioei, 1985 [Cartão “Feliz 1986”]. Poema-objeto

Foi também em meados de 1970 que Erthos iniciou a sua fase mais característica, e que o faz indiscutível precursor da poesia de computador entre nós. Ignoro o quanto ele chegou a conhecer das pesquisas de Waldemar Cordeiro, que já começara a desenvolver os seus trabalhos, dois anos antes, em colaboração com o físico Giorgio Moscati, da Unicamp, em um computador IBM/360, então dos mais modernos, chegando a realizar, em 1971, uma exposição internacional de arte de computação, ARTEÔNICA, na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. Não se pode esquecer que Décio Pignatari vinha pesquisando a informática desde o início da década de 1960, tendo publicado na revista INVENÇÃO nº 4 (1964 ), com Luiz Ângelo Pinto, o artigo CRÍTICA, CRIAÇÃO, INFORMAÇÃO, em que dava notícia de experiências feitas em um computador mais antigo, o IBM 1620, na Escola Politécnica da USP , exemplificadas com deformações – vocalização e desvocalização – de textos de João Cabral. Experimentos de exploração das probabilidades estatísticas de ocorrência vocabular que suscitariam, anos depois, divertidas provocações pignatarianas de prioridade a Cordeiro, que em 1964 expunha e publicava comigo ospopcretos, nem um pouco digitais… 
Cordeiro e Erthos trabalhavam com as primeiras linguagens de programação computadorizada, como o sistema conhecido sob o nome Fortran, com entrada por cartões perfurados, que veio a ser logo muito utilizado para a confecção de holerites. Entre nós, o desvio para as artes foi obra deles. Vindo de um convívio intenso com os poetas — seus companheiros de viagem concretista —, Cordeiro não deixou de aventurar-se também com palavras (sua primeira experiência, BEABÁ, a partir de um programa para gerar vocábulos de seis letras ao acaso, foi exposta em 1968), mas como era natural explorou com mais consistência o universo não-verbal (DERIVADAS DE UMA IMAGEM, 1969 ), Erthos, sem deixar de experimentar ocasionalmente com imagens — como na sequência anamórfica sobre um retrato de Brigitte Bardot (VOLAT IRREVOCABILE TEMPUS), e nos seus desenhos geométricos —, fixou-se mais definidamente na linguagem verbal, seja partindo de nomes ou títulos, MALLARMÉ , SOUSÂNDRADE , NOIGANDRES , 0 , LEMINSKI, seja construindo um texto palindrômico para desenvolver suas implosões e explosões de letras a partir de vocábulos retrogradáveis de duplo sentido — SERVILIVRES. Nesta série se incluiria também o SONETO ALFANUMÉRICO , resultado de estudos de tradução criptográfica de sonetos de Mallarmé — no caso, LE VIERGE , LE VIVACE ET LE BEL AUJOURD’HUI . Ex: 

por Cygne. Guardo alguns desses poemas, tais como me chegaram às mãos, impressos nas resmas pautadas dos papéis característicos da Petrobras, utilizados pelo sistema Fortran, e que podem ser vistos nesta exposição. Da mesma série são também as variações do TOMBEAU DE MALLARMÉ, que Erthos me enviou em 1972 e Décio, Haroldo e eu fizemos estampar na nossa edição dedicada ao mestre francês (1975). Casos especiais de poema-objeto são a magnífica transcriação semiótica do poema CIDADE CITY CITÉ , também de 1972, incluída na CAIXA PRETA  (1975 ) que fiz com Julio Plaza, edição para a qual o poeta contribuiu também financeiramente: e o pequeno “livro livre”, em branco, recortado dos cartões perfurados, com o qual me presenteou no ano seguinte. Dou com minúcia os dados cronológicos, por realçarem o mérito da atuação de Erthos. 
“No Brasil a Computer Art encontra antecedentes metodológicos na Arte Concreta”, afirmava Waldemar Cordeiro, no artigo “Arteônica”, de 1971, ano dessa mostra em São Paulo. Tanto o percurso de Erthos, como o do próprio pintor, que iniciou suas pesquisas digitais em 1968 e morreu prematuramente em 1973, ilustram convincentemente a sua tese. Como Cordeiro, o poeta, devido a sua enfermidade, não chegou a desfrutar dos avanços tecnológicos que a partir da década seguinte disponibilizaram os computadores domésticos e, em mais 20 anos, os favores da rede eletrônica. Mas ocupa como ele, com todos os méritos, um lugar privilegiado na arte digital brasileira. Impulsionada por softwares cada vez mais sofisticados, a “literatura sem livros” caminha hoje, celeremente, para as “páginas” dos monitores e para o cibercéu eletrônico. 
Pignatari lembra que Erthos se atormentava com o fato de não ter chegado a decifrar o significado da palavra “stsioei”, que aparecia num verso do “Tatuturema” do GUESA de Sousândrade: “Stsioei, rei das flores.” (Estrofe 52 ). Transformou-a numa espécie de totem-tabu vocabular que exorcizou num “poesigno”, por sua vez convertido em logomarca de seu próprio nome. Quis o destino que me coubesse decifrá-la, a partir de uma viagem pela internet. Ao trabalhar num prefácio para a nova edição de O GUESA (Annablume, selo Demônio Negro, 2009 ) deparei-me no Google com uma cópia da edição original da enciclopédia francesa L’Univers (1837), onde se encontra o capítulo “Brésil”, de Ferdinand Denis, uma das fontes informativas de Sousândrade. Quando percorria os seus textos sobre a flora e a fauna da Amazônia, à procura de alguma referência que me pudesse ser útil, bati os olhos nesta frase: “Os índios de diversas partes da América o chamaram de stsioei, o pequeno rei das flores. Os portu­gueses lhe deram o nome poético debeija-flor…” 
Ao me enviar o “poesigno” siqnd, que deve ser virado e lido ao revés para completa lei­tura, Erthos colocou ao lado do seu prenome um logo que constitui, de fato, o signo redu­zido de um outro “poesigno” enigmático: 

Apareceu também assim na revista QORPO ESTRANHO nº 1  (1976), junto ao poema STEP BY STEP . Visto em escala maior, formatado como um cartão de boas-festas de duas folhas, 22 por 11 cm, com o “logotipo” recortado sobre fundo prata-aluminizado interposto, o “poesigno” 

me foi enviado por Erthos com o título STSIOEI , e a dedicatória ”a Augusto e Lygia — Feliz 1986 ”, posta na parte interna da última folha de forma a indicar a direção vertical de leitura. 
Ideogramatizando a sua dúvida sousandradina, parecia insinuar o esfíngico protótipo de uma escultura in-finita. À primeira vista, hori­zontalizado como um postal comum, pareceria um logo para KilKerry. Mas lido verticalmente — levitando, quase asa — segundo o direciona­mento sugerido pelo autor —, pode ser visto como um incerto E espectral e especular do próprio poeta. Enigma. 
STSIOEI. Isto é. ERTHOS. 
ESTRanHO nome. EstranHa SORTE. ErThos.