O texto abaixo, de autoria de Augusto de Campos, foi extraído do folder da exposição Erthos Albino de Souza. Poesia: do dáctilo ao dígito, que ficou em cartaz no IMS-RJ, em 2010 .
ESTRanHO ERTHOS – POESIGNOS
Augusto de Campos
Jamais conheci um intelectual tão generoso como ele. Erthos Albino de Souza (1932-2000).
Em ERRÂNCIAS, seu livro de memórias, prosa única, semiótico-futurista, publicado no ano em que Erthos falecera, Décio Pignatari deu-nos dele uma significativa e emocionante memorabilia. Carlos Ávila conseguiu arrancar-lhe uma rara entrevista, em 1983, e organizou uma primeira bibliografia de seus trabalhos, que veio a ser acrescida ao estudo “O engenheiro da poesia”, incluído no livro POESIA PENSADA (2004), que Carlos dedicou ao poeta mineiro-baiano. Faltava preencher o branco da obra desse estranho personagem que nos fascinou a todos, um albino “livro-livre” que esta exposição começa a preencher.
Que era um grande pesquisador, responsável que foi por inúmeras descobertas de textos de Sousândrade, Kilkerry e Patrícia Galvão, é um fato conhecido, reconhecido e proclamado nos livros dos concretos. Que financiou, espontaneamente, muitas das nossas produções, é também sabido e consabido. Mas e o Erthos poeta?
“Amava os livros, não lê-los: em consequência, literatura sem literatura.” “Bibliófilo amador e errático, era um livro a procura de autor.” – sintetiza drasticamente Pignatari o seu ”desretrato” verbo-reticular do poeta. Imagens pirandelloborgianas, que recarregam, com tintas de propositado alto-contraste, os traços de um vulto que nos evoca algo de Bartleby, o personagem de Melville: “Prefiro não fazer”. Mas fazia. Só que, por timidez ou bloqueio, não se animava a publicar um livro. Preocupava-se, angelicalmente, acima de tudo com os outros, e ficava feliz com o êxito dos projetos e das obras dos poetas em quem acreditava e que financiava com a maior e mais desinteressada generosidade. Curiosamente, embora mostrasse extrema sensibilidade estética, não tinha animus crítico ou ensaístico. Suas cartas eram sucintas e pragmáticas, no indicar as suas aprovações ou desaprovações, concentrando-se em registrar os achados de suas pesquisas, as sugestões e as correções bibliográficas que fazia, com apuro, além das expressões de sua admiração e amizade. Minha correspondência com ele vai de 1962 a 1994 — mais de 30 anos. Com suas cartas me chegavam, em primeira mão, muitos dos poemas, dactilo ou digitografados que integram esta mostra.
Crisálida, 1967
Depois nossos contactos foram escasseando, limitando-se a telefonemas e envio de livros, até que, aos poucos, foi deixando de se comunicar comigo e com todos os amigos, à medida que se agravava a enfermidade que o fez perder, de todo, a memória, e da qual só tivemos tardias notícias.
Nascido em Ubá (MG), viveu a sua maturidade intelectual em Salvador, profissionalmente como engenheiro da Petrobras. Nos dois apartamentos que lá adquiriu, um na Barra e outro em Pituba, repletos de livros, ele hospedava, cheio de cuidados, os amigos visitantes — eu e Lygia, Décio, Haroldo, Leminski e tantos outros.
Como começou tudo? Em 1960, o crítico Oliveira Bastos me fez conhecer um volume de O GUESA , de Sousândrade, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Entre dezembro do mesmo ano e fevereiro de 1961, Haroldo e eu publicamos os primeiros estudos abrangentes sobre o esquecido poeta maranhense: MONTAGEM: SOUSÂNDRADE, na página “Invenção”, do jornal Correio Paulistano. O ensaio veio a ser republicado na revista pernambucana Estudos Universitários, no ano seguinte, e voltou a sair, ampliado, sob o título SOUSÂNDRADE: O TERREMOTO CLANDESTINO , naRevista do Livro, RJ, em março de 1964. Desde que tomou conhecimento do trabalho, em 1962, Erthos entusiasmou-se por ele e nos escreveu, propondo-se financiar o nosso projeto de resgate da obra do poeta, RE -VISÃO DE SOUSÂNDRADE . Conseguimos uma pequena editora, que assumiu o compromisso de imprimi-lo e nos ofereceu um orçamento. Passamos para o Erthos e ele nos mandou um cheque para cobrir as despesas. Nunca nos tinha visto. O livro saiu em 1964 e ainda com uma separata de O INFERNO DE WALL STREET, com capa de Pignatari, sob a rubrica “Edições Invenção”.
Cygnus, 1974. Poema-objeto
Só viemos a nos conhecer pessoalmente em 1969 , quando fui a Salvador completar as pesquisas de outro projeto, RE -VISÃO DE KILKERRY , iniciado ainda em 1962, com a inestimável cooperação de Erthos. Mais adiante, com a colaboração do juvenilíssimo Antonio Risério, que, aos 20 anos, despontava brilhantemente para a poesia e para a ensaística, fundou e financiou a revista CÓDIGO, que teve 12 números — de 1973 a 1989 .
Suas obras criativas estão disseminadas nas revistas experimentais da época, como CÓDIGO , POLEM , QORPO ESTRANHO , ARTÉRIA , MUDA , ATLAS . O poeta Omar Khouri que, com Paulo Miranda, lançou heroicamente várias delas, publicou em livro a sua tese de doutorado — REVISTAS NA ERA PÓS-VERSO — Revistas experimentais e edições autônomas de poemas no Brasil, dos anos 70 aos 90 (Ateliê Editorial, 2004), que recenseiam as principais dessas publicações, ainda hoje, de impressionante novidade, mas que têm permanecido “à margem da margem” dos estudos literários que abrangem o período.
Livre, 1973. Poema-objeto
Pode-se situar em três fases e faces distintas a prática poética de Erthos: 1 ) DACTILOGRAMAS — 1967 ; 2 ) POESIGNOS e 3 ) MUSA SPECULATRIX, os poemas digitais — as últimas obras, desenvolvidas na década de 1970. O terceiro título aqui sugerido aparece na nota de um texto visual computadorizado, onde estão dispostas circularmente as palavras latinas SORTE PALUDE SEDULA PETROSA , com a nota “poema da série Musa Speculatrix, dedicado a Lola [gata de estimação do poeta] por ocasião de sua operação devido a uma palindromia — Bahia Junho de1974” . Erthos joga com a expressão “palindromia” — no sentido mais comum (palíndromo: palavra ou frase que podem ser lidas da esquerda para a direita ou ao contrário) e no sentido clínico de “recaída de certas doenças nas quais os líquidos se acumulam nos órgãos inferiores” (segundo o Dicionário Cândido Figueiredo). A frase latina completa seria SEDULA PETROSAS IRRISA SORTE PALUDES, a primeira linha de uma quadra de versos palindrômicos, de significado conjectural.
Numa carta de 4 de julho de 1972 , anunciou-me que estava trabalhando em computador e já fizera algumas experiências com letras e palavras. Do computador serviu-se também ele para fazer contagens vocabulares — o da frequência de palavras na poesia de Kilkerry, que utilizei para o estudo do poeta de O VERME E A ESTRELA; o dos vocábulos de UN COUP DE DÉS; o das combinações possíveis dos meus poemas PERDE -GANHA , 1968 (deste, apenas alguns exemplos das 1.625.702.400 permutações possíveis, segundo cálculo feito à época por Roland de Azeredo Campos) e COLIDOUESCAPO (1970). Erthos também colaborara com Pedro Xisto na contagem estatística do poema permutacional VOGALÁXIA (1966). Foram anos em que os poetas concretos se interessaram pela poesia aleatória (o meu ACASO , ALEA I de Haroldo, TORRE DE BABEL , de Décio Pignatari, todos de 1963). E foi Erthos também o autor da espiral verbo-digital de PARTÍCULAS (capa do livro de Xisto, publicado em 1984), um verdadeiro poema visual, que poderia ser incluído na série MUSA SPECULATRIX.
Soneto alfanumérico, 1973
Terá sido em 1968, na antologia 25 POETAS/BAHIA — dezembro — Salvador, que ele publicou pela primeira vez um poema, CRISÁLIDA, composto no ano anterior. Mas foi na década de 1970 , e principalmente depois que criou com Risério a revista CÓDIGO, que Erthos se tornou mais conhecido, passando a ser requisitado para divulgar seus poemas, principalmente nas revistas experimentais do eixo Bahia/São Paulo — ”a pororoca”, como a denominou Paulo Leminski num artigo definidor e definitivo. CRISÁLIDA e outros dactiloscritos foram reunidos em um projeto de livro, intitulado DACTILOGRAMAS 1967 (13 poemas), dos quais foram aquele poema e o primeiro da série, DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES… os únicos, que eu saiba, publicados. Tenho uma cópia original desse livro, inédito, que marca o início da criação poética de Erthos. Tributário, certamente, da poesia concreta da linha ortodoxa, mas com realizações distintas, e demonstrando muita habilidade de composição. CRISÁLIDA é um dos mais bem realizados, e resolve de modo inteligente e sutil a metamorfose do vocábulo em BORBOLETA, que tem o mesmo número de letras, mas configura uma impossibilia posta sob o desafio dos doublets de Lewis Carroll, nos quais, há que se passar de um termo ao outro mudando só uma letra de cada vez e sempre usando vocábulos vernaculizados.
Aos seus DACTILOGRAMAS acresceu o poeta um caderno de iguais dimensões, em folhas soltas (12 ao todo), que também me presenteou, e onde transita dos dactiloscritos aos poemas executados com letra-set, nos anos 1970 — dos quais apenas STRIP-TEASE e RASGAR vieram a ser difundidos.
Nessa época, certamente por influência dos “logogramas” de Pedro Xisto publicados, na bela arte-final de J .R. Stroeter, no nº 5 da revista INVENÇÃO (1967), interessou-se também por criar logotipos para homenagear determinados autores, como os que dedicou a Pagu e a mim, este estampado numa caixa preta, que ele criou para que eu abrigasse meus poemas. Dos logotipos passou aos menos despretensiosos logopoemas, que chamava de POESIGNOS , pautados pelo significativo CYGNUS (1974), que foi capa da revista CÓDIGO nº 2 no ano seguinte.
Muitos desses poemas Erthos me enviava para apreciação, sem contudo se decidir a editá-los em coletânea. Apareciam , sempre, esparsos, nalguma revista experimental. Não lhe faltava humor – sorriso despretensioso com que produziu o seu “dactilograma” DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES… e, mais adiante, um duchampiano WANTED, em homenagem a Duchamp, com os retratos de frente e de perfil de Ruy Barbosa, no cinquentenário da sua morte, em 1973. Por essa época também me deu de presente um retrato anamórfico, formado com tiras recortadas de uma foto minha na exposição de poesia concreta realizada em Salvador no mesmo ano.
Stsioei, 1985 [Cartão “Feliz 1986”]. Poema-objeto
Foi também em meados de 1970 que Erthos iniciou a sua fase mais característica, e que o faz indiscutível precursor da poesia de computador entre nós. Ignoro o quanto ele chegou a conhecer das pesquisas de Waldemar Cordeiro, que já começara a desenvolver os seus trabalhos, dois anos antes, em colaboração com o físico Giorgio Moscati, da Unicamp, em um computador IBM/360, então dos mais modernos, chegando a realizar, em 1971, uma exposição internacional de arte de computação, ARTEÔNICA, na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. Não se pode esquecer que Décio Pignatari vinha pesquisando a informática desde o início da década de 1960, tendo publicado na revista INVENÇÃO nº 4 (1964 ), com Luiz Ângelo Pinto, o artigo CRÍTICA, CRIAÇÃO, INFORMAÇÃO, em que dava notícia de experiências feitas em um computador mais antigo, o IBM 1620, na Escola Politécnica da USP , exemplificadas com deformações – vocalização e desvocalização – de textos de João Cabral. Experimentos de exploração das probabilidades estatísticas de ocorrência vocabular que suscitariam, anos depois, divertidas provocações pignatarianas de prioridade a Cordeiro, que em 1964 expunha e publicava comigo ospopcretos, nem um pouco digitais…
Cordeiro e Erthos trabalhavam com as primeiras linguagens de programação computadorizada, como o sistema conhecido sob o nome Fortran, com entrada por cartões perfurados, que veio a ser logo muito utilizado para a confecção de holerites. Entre nós, o desvio para as artes foi obra deles. Vindo de um convívio intenso com os poetas — seus companheiros de viagem concretista —, Cordeiro não deixou de aventurar-se também com palavras (sua primeira experiência, BEABÁ, a partir de um programa para gerar vocábulos de seis letras ao acaso, foi exposta em 1968), mas como era natural explorou com mais consistência o universo não-verbal (DERIVADAS DE UMA IMAGEM, 1969 ), Erthos, sem deixar de experimentar ocasionalmente com imagens — como na sequência anamórfica sobre um retrato de Brigitte Bardot (VOLAT IRREVOCABILE TEMPUS), e nos seus desenhos geométricos —, fixou-se mais definidamente na linguagem verbal, seja partindo de nomes ou títulos, MALLARMÉ , SOUSÂNDRADE , NOIGANDRES , 0 , LEMINSKI, seja construindo um texto palindrômico para desenvolver suas implosões e explosões de letras a partir de vocábulos retrogradáveis de duplo sentido — SERVILIVRES. Nesta série se incluiria também o SONETO ALFANUMÉRICO , resultado de estudos de tradução criptográfica de sonetos de Mallarmé — no caso, LE VIERGE , LE VIVACE ET LE BEL AUJOURD’HUI . Ex:
por Cygne. Guardo alguns desses poemas, tais como me chegaram às mãos, impressos nas resmas pautadas dos papéis característicos da Petrobras, utilizados pelo sistema Fortran, e que podem ser vistos nesta exposição. Da mesma série são também as variações do TOMBEAU DE MALLARMÉ, que Erthos me enviou em 1972 e Décio, Haroldo e eu fizemos estampar na nossa edição dedicada ao mestre francês (1975). Casos especiais de poema-objeto são a magnífica transcriação semiótica do poema CIDADE CITY CITÉ , também de 1972, incluída na CAIXA PRETA (1975 ) que fiz com Julio Plaza, edição para a qual o poeta contribuiu também financeiramente: e o pequeno “livro livre”, em branco, recortado dos cartões perfurados, com o qual me presenteou no ano seguinte. Dou com minúcia os dados cronológicos, por realçarem o mérito da atuação de Erthos.
“No Brasil a Computer Art encontra antecedentes metodológicos na Arte Concreta”, afirmava Waldemar Cordeiro, no artigo “Arteônica”, de 1971, ano dessa mostra em São Paulo. Tanto o percurso de Erthos, como o do próprio pintor, que iniciou suas pesquisas digitais em 1968 e morreu prematuramente em 1973, ilustram convincentemente a sua tese. Como Cordeiro, o poeta, devido a sua enfermidade, não chegou a desfrutar dos avanços tecnológicos que a partir da década seguinte disponibilizaram os computadores domésticos e, em mais 20 anos, os favores da rede eletrônica. Mas ocupa como ele, com todos os méritos, um lugar privilegiado na arte digital brasileira. Impulsionada por softwares cada vez mais sofisticados, a “literatura sem livros” caminha hoje, celeremente, para as “páginas” dos monitores e para o cibercéu eletrônico.
Pignatari lembra que Erthos se atormentava com o fato de não ter chegado a decifrar o significado da palavra “stsioei”, que aparecia num verso do “Tatuturema” do GUESA de Sousândrade: “Stsioei, rei das flores.” (Estrofe 52 ). Transformou-a numa espécie de totem-tabu vocabular que exorcizou num “poesigno”, por sua vez convertido em logomarca de seu próprio nome. Quis o destino que me coubesse decifrá-la, a partir de uma viagem pela internet. Ao trabalhar num prefácio para a nova edição de O GUESA (Annablume, selo Demônio Negro, 2009 ) deparei-me no Google com uma cópia da edição original da enciclopédia francesa L’Univers (1837), onde se encontra o capítulo “Brésil”, de Ferdinand Denis, uma das fontes informativas de Sousândrade. Quando percorria os seus textos sobre a flora e a fauna da Amazônia, à procura de alguma referência que me pudesse ser útil, bati os olhos nesta frase: “Os índios de diversas partes da América o chamaram de stsioei, o pequeno rei das flores. Os portugueses lhe deram o nome poético debeija-flor…”
Ao me enviar o “poesigno” siqnd, que deve ser virado e lido ao revés para completa leitura, Erthos colocou ao lado do seu prenome um logo que constitui, de fato, o signo reduzido de um outro “poesigno” enigmático:
Apareceu também assim na revista QORPO ESTRANHO nº 1 (1976), junto ao poema STEP BY STEP . Visto em escala maior, formatado como um cartão de boas-festas de duas folhas, 22 por 11 cm , com o “logotipo” recortado sobre fundo prata-aluminizado interposto, o “poesigno”
me foi enviado por Erthos com o título STSIOEI , e a dedicatória ”a Augusto e Lygia — Feliz 1986 ” , posta na parte interna da última folha de forma a indicar a direção vertical de leitura.
Ideogramatizando a sua dúvida sousandradina, parecia insinuar o esfíngico protótipo de uma escultura in-finita. À primeira vista, horizontalizado como um postal comum, pareceria um logo para KilKerry. Mas lido verticalmente — levitando, quase asa — segundo o direcionamento sugerido pelo autor —, pode ser visto como um incerto E espectral e especular do próprio poeta. Enigma.
STSIOEI. Isto é. ERTHOS.
ESTRanHO nome. EstranHa SORTE. ErThos.
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