decididamente querer não é poder (1973), Aninha Franco (Salvador, 1951):
se eu fosse um bicho e você fosse gente eu me faria animal de estimação seria um leão manso deitaria sobre assoalhos com você sobre meu pelo te veria dormir e te deixaria dormir afastando com as patas as baratas e os ratos
se eu fosse gente e você fosse uma coisa eu me permitiria usar coleiras você seria o enfeite da minha prisão e eu desistiria da liberdade dos becos seria um cão com dono
mas se você fosse um bicho e eu fosse um bicho eu te comeria.
Maria do Céu Santo – parece nome inventado, não é não? Ou nome de freira. Trata-se, porém, de uma ginecologista e obstetra, nova estrela da televisão portuguesa. Loura bonitona, bem-humorada e bem casada há 30 anos, virou uma espécie de guru das assinantes do Sic Mulher, onde comanda o programa Amor sem Limites com a desenvoltura e a polêmica sinceridade de uma Oprah Winfrey.
Diz coisas assim: “Uma mulher apaixonada não conquista ninguém. Você só consegue conquistar um homem se não estiver apaixonada por ele”. Para a doutora, paixão não passa de um coquetel de neurotransmissores e processos obsessivos que tem prazo de validade. Se durar muito, nunca é mais do que três anos. Depois, vira amor ou pesadelo.
Não existe paixão até que a morte nos separe. A menos que seja platônica ou alimentada por muita insegurança. Quer dizer, para manter um parceiro fissurado, só não dando o que ele quer ou fazendo o infeliz se sentir eternamentena marca do pênalti.
As feministas não são muito chegadas a certas afirmações bombásticas da nova consultora do mulherio. Arrepiam-se todas quando garante que os problemas e as brigas de um casal podem ser resolvidos com sexo, sim senhora. Pela simples razão de que transar relaxa, faz a gente ver os aborrecimentos com outros olhos e perceber que são menores do que pareciam.
Outro conselho que ela garante ser o melhor que pode dar a esposas estressadas ou de alguma forma entediadas: faça amor mesmo que não esteja muito a fim. Porque depois que você começa, a vontade aparece e costuma ser mais gostoso do que ir dormir chateada.
Adorei a opinião dela sobre essa mania dos sexólogos de garantir que é possível ter orgasmo em qualquer posição – “no chuveiro, por exemplo, dificilmente dá certo”; na melhor das hipóteses, a água quente relaxante é boa para aquecer as preliminares.
Maria do Céu também contesta a verdade pétrea de que mulher é dada a disfunções sexuais. Coisa nenhuma! As realmente problemáticas são a minoria da minoria. O que atrapalha nossa vida sexual é que, ao contrário dos homens, recebemos verdadeiros compêndios sobre como seduzir, mas ninguém nos ensina a transar, e acontece que “fazer amor exige uma técnica que você só aprende na base da tentativa e erro”.
Ela também não concorda que sexo é coisa que se faz na calada da noite. Idéia mais antiquada e fora da realidade! Para quem quiser “treinar”, a melhor hora é de manhã, antes da maratona de trabalho e das mais variadas encheções de saco. Principalmente depois de três anos de vida em comum, que é quando a atividade sexual costuma cair por volta de 30% e muita gente começa a considerar a possibilidade de partir para outra.
Mas não se trata apenas de não deixar a peteca cair; o que realmente importa é prestar atenção no “jogo”. Mulher tem a tendência de só olhar para o próprio umbigo, diz ela. Prova disso são as insatisfeitas que vão procurá-la no consultório, queixando-se de que o marido não faz isso ou não faz aquilo. Quando pergunta “e ele, do que gosta?”, a maioria não sabe responder.
Como boa conselheira, claro que a dra. Maria do Céu também tem o que dizer aos homens. E vai direto ao ponto: se quiser mais sexo, faça de conta que não está nem aí para a parceira. É receita infalível para atiçar o desejo feminino.
O considerado José Nêumanne Pinto, jornalista, escritor e poeta dos maiores do Brasil, contou a história:
Quando voltei a Bahia para tentar resistir ao naufrágio da barca municipal Gregório de Mattos, fui "freguês" do poeta Ildásio Tavares em intermináveis "facadas".
Fatava pagar a conta do gás ou a conta da luz, o poeta recorria ao "rico" amigo; faltava comprar farinha de mandioca ou a comida para o "totó", tome facada no "rico" amigo.
Dei um basta!
Ildásio se assustou.
Precisava de um dinheiro, segundo ele, para comprar urgentemente um terno de linho para o casamento de um suposto amigo.
E ofereceu-me em troca da última "facada", segundo prometeu-me, um poema inédito.
-- Pode dizer que é seu!!!.
E acabou me "vendendo" esta obra prima:
SONETO DA LUZ
Quando eu nasci, já recebi a cruz, Plantada no caminho à minha espera A projetar a sua sombra austera Onde eu busquei reduto paz e luz.
Quando eu nasci já recebi Jesus Como anúncio de dor e primavera. Mas era outra luz; Outra esfera- Meu caminho, não sei aonde conduz.
Resta-me a cruz e a dura provação Dos espinhos da vida, triste dança De enganos, dissabores, ilusão
Que me penetram o peito feito lança E afastam a luz que a vista não alcança- Numa só chaga pulsa o coração.
DE COMO O JORNALISTA-SITIANTE COMETEU GRAVE INFRAÇÃO CONTRA O MEIO AMBIENTE
Na manhã do domingo ensolarado este Sítio Maravalha recebeu a visita de três soldados da Polícia Florestal. Muito educados, explicaram que o Departamento havia recebido denúncia de que tínhamos derrubado alguns eucaliptos “ilegalmente” e comprovaram o crime. Disse-lhes ignorar a lei que me proibia cortar árvores que eu mesmo plantei há mais de 30 anos e que estavam com as pontas secas e ameaçavam cair.
É lógico que um jornalista com 51 anos de profissão, e ainda em atividade, não pode ignorar a lei que protege o meio ambiente, principalmente quando vive no meio do mato. Concordo. Todavia, se tenho mais de meio século de trabalho, é certo que também amargo 71 anos de idade, e, se li a respeito e vi as reportagens do Globo Rural, o assunto sumiu da memória como somem as lontras quando secam os rios.
Argumentei que nenhum outro sitiante desta região do Alto Paraíba havia cuidado tão bem da paisagem original; toda a vegetação nativa que encontramos neste terreno em 1975 tem sido preservada desde então e ainda pedimos à CESP que aqui plantasse árvores da Mata Atlântica. Da janela do escritório, contemplo uma delas, a mais alta e vigorosa: a paineira de tronco espinhento e belas flores.
Agora me digam: alguém com tal preocupação pode ser acusado de crime ambiental por cortar eucaliptos ameaçados de cair durante os vendavais tão comuns na região?
Trecho de Tenho sede, de Dominguinhos e Anastácia: “Traga-me um copo d’água, tenho sede / e essa sede pode me matar. / Minha garganta pede um pouco d’água / e os meus olhos pedem o teu olhar”.
“O sertanejo é antes de tudo um forte”, sapecou Euclides da Cunha em “Os sertões”. Os desavisados reconhecerão na definição o protótipo do cangaceiro, do cabra macho, do matuto destemido que não leva desaforo para casa. Ledo engano. Como o próprio Euclides deixou claro, essa força não reside na coragem, na valentia ou no destemor, mas repousa na improvável força interior contida no termo euclidiano Hércules-Quasímodo.
O sanfoneiro, compositor e cantor Dominguinhos encarnou o lado sensível, belo e pungente dessa força, contrapondo-o à valentia da cabroeira que dormia ao relento e lutava contra as tropas da lei e da ordem. Lampião era o sertanejo-mandacaru. Dominguinhos, o matuto-flor: a flor que brota do cacto com a beleza protegida pela agressividade bélica dos espinhos.
Desde cedo ungido príncipe da música regional nordestina que o Rei Gonzaga fundou e sustentou com o rebuliço mágico dos 180 baixos de sua sanfona, o garoto de Garanhuns, Pernambuco, cruzou as veredas da vida sem trocar de patente nem de coroa: sempre foi menino, sempre foi príncipe.
Consciente da majestade de seu Lua, legitimada pela dimensão universal de sua herança, a grandeza dele, caudatária da simplicidade, o tornou herdeiro perpétuo, impedindo-o de subir ao trono com o desaparecimento físico do criador do forró. Não se confunda, contudo, essa simplicidade com complexo de inferioridade ou desconhecimento do próprio potencial que levou Gonzaga a lhe transferir sanfona, cetro, reinado e gibão.
Nada disso: mantendo-se na infância, ele preservou o segredo da beleza e da variedade da obra que o fundador trouxe das brenhas para transformar no ponto de contato e de solidariedade dos deserdados da seca no bulício das metrópoles.
Em Dominguinhos comungavam a humildade dos mansos de espírito e a altivez dos gênios que reconhecem seu valor ao identificá-lo não nas glórias da fama, mas na consciência da fidelidade a sua grei, que a retribui com um amor mudo, sincero e pleno, que vai além do aplauso fácil.
Este reconhecimento passou, é claro, pela unção real, mas se confirmou em todos os contatos que o artista manteve com seu público, gente com quem partilhava as mesmas origens e com quem se comunicava pela mudez de cúmplices egressos dos mesmos roçados nos quais a necessidade e a escassez tornam a solidariedade gênero de primeira necessidade.
Esse povo aprendeu a linguagem das pausas longas e o reconhecimento da labuta na textura áspera da pele da palma da mão acostumada com a soleira que ofusca e a aridez do solo de pouca água.
Se o Rei do Baião fez de Asa Branca, com a letra do urbano Humberto Teixeira, o hino da diáspora nordestina pelo mundo afora, o príncipe da sanfona compôs em Lamento Sertanejo, com a letra-síntese de Gilberto Gil, negro e interiorano qual Gonzaga, a saga do retirante aculturado. “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação, / eu te asseguro, não chore não, viu, / eu voltarei, viu, pro meu sertão”: Gonzaga e Teixeira cantaram o mito da volta do homem à terra, bastando que caia a chuva do céu.
“Por ser de lá, / na certa por isso mesmo, / não gosto de cama mole, / não sei comer sem torresmo. / Eu quase não falo, / eu quase não sei de nada. / Sou como rês desgarrada / nessa multidão boiada caminhando a esmo“ - na melodia de Dominguinhos Gil decretou a saga de um Ulisses-Quasímodo que não retorna a Penélope, mas faz do desassossego solitário o jeito de ficar onde estiver, construindo Ítaca em si mesmo.
A Odisseia do cantor do vale do Araripe, nos confins onde Pernambuco acaba no Ceará, foi registrada no percurso do peixe em Riacho do Navio, com letra do parceiro Zé Dantas, partindo do Atlântico na direção do paraíso idílico perdido nas margens do riacho da Brígida, contra a correnteza.
Essa busca do cordão umbilical enterrado na porteira do curral avoengo se expressa na utopia do desterrado: “Pra ver o meu brejinho, / fazer umas caçada, / ver as ‘pegá’ de boi, / andar nas vaquejada, / dormir ao som do chocalho / e acordar com a passarada, / sem rádio e sem notícia / das terra civilizada”.
A Ilíada do sanfoneiro da “Suíça nordestina” mantém o desterrado no desterro, universo transportado de Garanhuns para os guetos nordestinos nas metrópoles - o Brás em São Paulo, o Campo de São Cristóvão no Rio... Nesses lugares, o cavalo de madeira transporta o retirante para os ambientes urbanos, tornando-o uma espécie de extra-terrestre adaptado aos hábitos e à cultura da Troia que desconhecia.
O retirante pede água, busca o amor e vai ficando: a obra de Dominguinhos é a consciência de que todo lugar é sertão e o sertão é aqui mesmo, reconhecido nas manchas de suor tornadas mapas da solidão que virou ritual de encontro. Como cantou em Tenho sede, com letra de Anastácia, sua mulher e parceira de origem: “Traga-me um copo d'água, tenho sede / e essa sede pode me matar. / Minha garganta pede um pouco d'água / e os meus olhos pedem teu olhar”.
por Moacir JapiassuJornalista, poeta e escritor
(Publicado na Pag.D03 do Caderno 2 do Estado de S. Paulo de quarta 24 de julho)