Pesquisar este blog

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

"Will you still love me tomorrow" - Dianne Reeves

Luiz Melodia dá o recado...







Definição da moça



Como defini-la
quando está vestida
se ela me desbunda
como se despida?

Como defini-la
quando está desnuda
se ela é viagem
como toda nuvem?

Como desnudá-la
quando está vestida
se está mais despida
do que quando nua?

Como possui-la
quando está desnuda
se ela toda é chuva?
se ela é toda vulva?


Ferreira Gullar
(1930)

Sundance tem filmes sobre Elvis argentino e blogueira sexual

FERNANDA EZABELLA
ENVIADA ESPECIAL A PARK CITY, UTAH

Sundance: Brasil x Argentina x Chile



O Brasil está nesta edição de Sundance na competição de drama internacional com o filme "A Cadeira do Pai" (foto acima, teaser abaixo), do estreante em longas Luciano Moura.

Wagner Moura é o protagonista, um médico que precisa ir atrás do filho adolescente que fugiu de casa.

Entrevistei os dois Mouras (sem parentesco), está na Ilustrada de hoje ou aqui para assinantes da Folha/Uol:


Outros três latinos estão na lista de 14 trabalhos selecionados na competição, dois deles chilenos e um argentino.
"El Último Elvis", do argentino Armando Bo, se passa no mundo dos sósias de Buenos Aires e segue “Elvis” Gutiérrez, que de dia tem um emprego enfadonho numa fábrica.
Sua ex-mulher se preocupa que seu comportamento obsessivo afeta sua filha mais jovem, Lisa Marie. Trailer abaixo.

Andrés Wood, diretor chileno de "Machuca" (2004), apresenta "Violeta se Fue a los Cielos", sobre a cantora folk Violeta Parra, uma espécie de Edith Piaf ou Bob Dylan chilena, segundo a resenha.
O filme é uma coprodução do Chile com Brasil, Argentina e Espanha.

"Young & Wild" (foto abaixo) é a outra obra chilena, da diretora Marialy Rivas, sobre uma garota de 17 anos em Santiago que começa um blog para contar suas aventuras sexuais, com medo de que sua família religiosa descubra.


Conversei com diretores e atores de "El Ultimo Elvis" e "Young & Wild". A matéria está na Folha.com:
Sundance tem filme sobre Elvis argentino e blogueira chilena

Carlos Gutiérrez insiste em chamar a ex-mulher de Priscilla, embora ela se chame Alejandra. Os dois têm uma filha pequena, Lisa Marie, para quem ele só faz sanduíche de pasta de amendoim com banana. Carlos acha que é Elvis Presley, em plena Buenos Aires.
"Deus me deu sua voz", explica o personagem, centro do filme de ficção argentino "The Last Elvis", que compete no Sundance Film Festival com outros 14 longas internacionais, incluindo três latinos: o brasileiro "A Cadeira do Pai" e os chilenos "Young & Wild" e "Violeta Went to Heaven".
O trabalho é a estreia na direção de longas do argentino Armando Bo, corroteirista do mexicano "Biutiful", indicado a dois Oscars em 2011. Ele conta que teve a ideia do filme quando rodou um comercial com uma sósia de Elvis há seis anos e ficou intrigado com a ideia de pessoas que vivem as vidas de outras pessoas.
Divulgação
Cena do filme argentino "The Last Elvis", que compete no Sundance Film Festival
Cena do filme argentino "The Last Elvis", que compete no Sundance Film Festival
Para protagonizar a história ele chamou John McInerny, que já fazia performances nos arredores de Buenos Aires imitando Elvis. Por quatro meses, ele treinou para virar ator. "John é neto de irlandês, não se parece muito com argentino e isto dá um toque diferente à trama. O jeito como canta e como fala inglês é especial para o filme", explicou o diretor à Folha.
EM GRACELAND
No longa, Carlos "Elvis" Gutiérrez vive entre amigos que fazem sósias de outras celebridades, como Iggy Pop, Britney Spears e Freddie Mercury, todos membros de uma associação decadente que vive lhes devendo dinheiro.
Sua ex-mulher diz que sua obsessão com Elvis prejudica a relação com a filha, mas um acidente o faz cair na real. "É um momento importante, ele é exposto à realidade e tem este pequeno momento entre pai e filha", diz Bo, que recriou em estúdio os quartos de Graceland, mansão de Elvis em Memphis, que aparece nas cenas finais.
A história lembra o chileno "Tony Manero" (2008), sobre um homem obcecado pelo personagem de John Travolta em "Os Embalos de Sábado à Noite", mas sem o contexto político da ditadura de Pinochet.
BLOGUEIRA SEXUAL
"Young & Wild", da diretora estreante Marialy Rivas, é livremente baseado num blog extinto da hoje jornalista chilena Camila Gutiérrez, 26, que colaborou com o roteiro.
Criada por uma família evangélica, Camila começou aos 21 anos a postar sobre suas aventuras sexuais e devaneios religiosos, num blog que durou quase três anos. "Ela era muito famosa na internet, como uma rockstar", exagera a atriz Alicia Rodríguez, que a interpreta no filme, feito numa linguagem jovem e cheio de ilustrações sexuais.
A história segue a vida de Daniela, expulsa da escola no último ano por transar com um colega no banheiro. Em meio a brigas com os pais fervorosos, ela arranja um namorado evangélico que quer se casar
virgem e começa a ter um caso com uma colega do trabalho, num canal de TV religioso.
Enquanto isso, ela posta as experiências no blog, em textos repletos de referências bíblicas, torcendo para a mãe histérica nunca descobrir. Na vida real, Camila diz que a mãe nunca soube, até seis dias atrás, provavelmente por conta do filme. "Deve ter sido alguém da igreja", diz. "Nem lembro do que ela falou ao telefone, fiquei surpreendida e ela estava enlouquecida."

http://fernandaezabella.folha.blog.uol.com.br/

Mas existe gravação original?

Por Túlio Villaça

Existe este conceito, ele faz sentido? Uma gravação de uma canção pode ser a primeira, e então a música é inédita, ou ser uma regravação. Ser o primeiro a gravar uma canção faz diferença de cantá-la conhecendo uma interpretação anterior de outra pessoa? É possível considerar a primeira gravação como sendo a referência de todas as outras posteriores, para o bem ou para o mal?
Quando ouvimos uma regravação ouvimos também a gravação original por trás dela. Se conhecemos uma gravação anterior, estabelecemos automaticamente uma relação nesta reaudição. Mas mesmo que não a conheçamos, ouvimos o seu eco na regravação – se o cantor conhece a gravação original. E se ele não conhece, há este eco em sua interpretação, sem que ele perceba ou controle?
Me acostumei ao longo do tempo com a idéia de uma gravação original que fosse considerada a referência da canção, idéia muito dos pesquisadores da música brasileira pré-bossa nova. Mais tarde descobri que no meio acadêmico hoje esta idéia é repudiada por muitos. Não sei se posso concordar inteiramente com nenhuma das duas posições. Trago quatro exemplos bem diversos, em que a ligação entre duas ou mais gravações obedece a diferentes critérios:

Primeiro exemplo: descobri há dias que Ai, se eu te pego, o sucesso internacional que acaba de ser gravado em hebraico, tem a seguinte e mirabolante história: foi composta e gravada por uma funkeira baiana, adaptada por um forrozeiro e gravada por um grupo chamado Cangaia de Jegue, e só então por Michel Teló, que é classificado como sertanejo universitário (sic).
Antes de qualquer coisa, uma informação como esta se presta a uma análise e tanto sobre a nossa indústria cultural de massa descaracterizando tudo que toca. Mas isto só se torna possível porque ela encontra uma canção como esta, que passa incólume por essas sucessivas mutações. Comentei no Facebook que ela tem que ser absolutamente genial ou não ser absolutamente nada para conseguir ser todas estas coisas sem realmente ser nenhuma, e no fundo acho que ela junta as duas coisas, sendo genial em sua capacidade de ser nada. Não vai ironia aqui. Será que a gravação da baiana Sharon Acioly (autora também da Dança do quadrado!) pode ser considerada a verdadeira, cantada do ponto de vista feminino? Ou a do Cangaia de Jegue, que não é a que foi ouvida por quem fez a tradução para o hebraico? E no entanto, foi a partir destas gravações que foi definida a versão que explodiu nas paradas de sucesso.
Certo, esta canção certamente será esquecida dentro de pouco tempo, ela foi feita para isso. Mas a reflexão acima vale não somente para ela, mas para a obra de arte de massa em geral, em que o processo de criação é bem outro, seguindo critérios de autoria muito diversos, e que ainda vão ter que ser estudados pelos teóricos de Comunicação.

Segundo exemplo:
Fadas – Luiz Melodia

Luiz Melodia gravou Fadas em seu álbum de 1978, Mico de circo, como um vigoroso choro, cheio de ironias típicas de seu samba sofisticado, como o erro de português proposital logo no primeiro verso, Devo de ir (ele também usa a preposição de fora de propósito num verso de Ébano, Espero de te encontrar com mais saúde, assumindo uma sintaxe de pessoa iletrada tentando falar na forma culta), mas com um lirismo igualmente vigoroso.
Fadas – Elza Soares

Elza Soares regravou Fadas em 2002, no álbum Do cóccix até o pescoço, tranformando o choro num inesperado tango. A canção perdeu algo da ironia da gravação original, mas permaneceu lírica e um tanto ácida na leitura de Elza. Ainda assim, são visões muito diversas da mesma canção. Mas Luiz Melodia, depois desta gravação, passou a frequentemente apresentá-la em shows com o arranjo da gravação de Elza! É o caso de uma regravação influenciar o autor (Lembra-me também Bob Dylan, que após a gravação de Knockin’ on the heavens door por Bob Marley, passou a também cantar sua própria canção como reggae).

Terceiro exemplo:
Dura na queda – Elza Soares

Dura na queda foi composta por Chico Buarque especialmente para Elza Soares, e gravada por ela no mesmo álbum de 2002. José Miguel Wisnik, produtor do álbum, conta que foi à casa do Chico para anotar a tortuosa melodia da voz do próprio autor, contendo inclusive uma citação de An american in Paris, de George Gershwin, e que na hora de cantar Elza arredondou completamente a melodia, chegando a tornar descendentes frases ascendentes e vice-versa, o que levou Chico a gravar a canção depois eu seu álbum Carioca:
Dura na queda – Chico Buarque

E neste caso, qual deverá ser a versão real? A que tem a melodia correta, a do autor – que não é a primeira, ou a da cantora para quem a música foi feita, esta sim a original em seu significado estrito?

Quarto e último exemplo: Luiz Tatit diz que João Gilberto é recompositor, por tomar uma canção que muitas vezes é consagrada e muito conhecida, e nos revelar arestas insuspeitadas, como disse Caetano, e resolver o dilema à sua maneira particular, criando versões que soam definitivas das canções, sem deixar de remeter continuamente à história de cada uma, às gravações anteriores, originais, sempre referencial, sempre sobejamente autosuficiente. Cito a partir daqui, ipse litteris , um trecho do documentário Tim tim por tim tim – a música de João Gilberto, texto do pesquisador Paulo da Costa e Silva, e eu não poderia dizer melhor:
Muitas vezes, a canção recriada por João é tão difundida, tão fincada no repertório comum, que não é mais possível remetê-la a uma única fonte primordial, a essa ou aquila matriz de referência. As inúmeras gravações de Garota de Ipanema, Aquarela do Brasil e Desafinado sobrepõe-se de tal maneira que terminam por formar uma espécie de original ideal da canção, que jamais é realizado concretamente. A memória não é apenas uma máquina de registro, na qual eventos passados e experiências são armazenados de forma imutável. A memória é ativa, modifica o que guarda. Costuma agir sobre as melodias armazenadas de modo a torná-las mais padronizadas e confortáveis para a própria mente, mais redondas e esquemáticas, portanto mais facilmente assimiláveis e rememoráveis. Ao ser retida, a forma musical geralmente é alterada na direção da regularidade, da simetria e da completude. Ou seja, tendemos a lembrar dos temas musicais como sendo mais simples do que eles realmente são, como tipos ideais mais do que como objetos particulares dessa ou daquela interpretação. A música de João nos induz continuamente a essa comparação com o tipo ideal, com a lembrança que temos de determinada canção. Talvez nenhum exemplo da capacidade de João de dar vida nova a uma canção já gasta seja mais indicativo do que suas gravações de Garota de Ipanema.

http://tuliovillaca.wordpress.com/

Beco - Mart'nalia

POUCA DIFERENÇA


que diferença da mulher o homen tem
espera ai q eu vou dizer meu bem....


Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come

 

Laerte, Muchacha e memória afetiva

 
10/11/2010


Lembro-me bem da primeira vez que li alguma coisa do Laerte. Procurando pela rede para ser mais preciso, já que não tenho mais aquela edição, descobri que foi a história Ameaça Nuclear, do número 7 da finada Circo.

Leio quadrinhos desde muito guri e ná época, em 1987 ou 1988, quando tinha nove ou dez anos, já devorava coisas de Sherlock Holmes e de Júlio Verne, começava a me aventurar pelo policial juvenil Marcos Rey; era um nerd viciado em MSX.

E, mesmo assim, Ameaça Nuclear foi impactante. Caiu como uma bomba em meu cérebro e teria efeito semelhante, anos depois, com o que Watchmen, V de Vingança, Sandman e Cavaleiro das Trevas causou em minha mente.



O trabalho de Laerte, desde aquelas olhadelas quando criança, passou a ser uma constante em minha vida. Virou um troço pulsante, capaz de me tornar ainda mais inquieto. Impulsionou a me fazer escrever e criar, desenhar. ”Como é que esse cara consegue fazer traços tão soltos? Mesmo depois do nanquim?” Um mistério adolescente.

Já mais crescidinho, reli Ameaça Nuclear ao comprar novamente aquela Circo em um sebo. Depois li novamente anos depois. Em seguida perdi a revista, mas nunca mais deixei de pensar naquilo de tempos em tempos. E fui acompanhando a saga de nosso artista ao longo desse tempo.

Sempre gostei mais dele porque foi o que sempre se preocupou (ou não, de repente foi uma necessidade) em se reinventar. De expressar realmente aquilo que não cabe em si mesmo, não somente o que precisa expressar pra sobreviver.

Bem, enfim, depois desse blablablá todo, tenho o enorme prazer de apresentar a entrevista que fiz com ele recentemente, para o jornal que trabalho aqui em Curitiba, a Folha de Londrina.



Você já tem ideia de quantos álbuns já lançou?

- São sempre coletâneas de trabalhos que fiz, então deve ter uns 20 e poucos livros, acho. Uma conta um pouco confusa porque tem algumas editoras que foram à falência e livros que não estão mais disponíveis.

De onde saiu a iniciativa de publicar Muchacha’?

- Eu tinha negociado com a Companhia das Letras quando estava produzindo a história para o caderno Ilustrada (da Folha de S. Paulo). Essa história da Muchacha sucede uma série que estava fazendo sobre memórias da televisão, que foram publicadas no álbum Laertevisão (publicado pela Conrad Editora). Quando terminei, dei o ciclo de memórias pessoais encerrado. Mas eu gostei de ter acessado esse mundo dos anos 50, da televisão. Então comecei a investigar, a trabalhar esses seriados de ação que tinham na época pré-videotape…

Como quais?

- Falcão Negro. O Falcão Negro é a referência. O Capitão Tigre é uma espécie de Falcão Negro. Então fui criando outros personagens e aos poucos fui sentindo que aquilo era uma história. Daí passei a construir um roteiro fora da intenção inicial, que era só curtir um pouco.

O projeto foi mudando então conforme você foi produzindo?

- Comecei a fazer a história com uma ideia geral do que ia ser. Depois de um tempo fui achando que aquilo poderia ficar de pé e fui inventando um background para cada personagem. E aí comecei a construir capítulos para manter essa história em pé.



Você disse que tinha encerrado um ciclo de memórias com o Laertevisão mas depois se empolgou e prolongou esse ciclo com Muchacha. Sente ter encerrado esse ciclo agora?

- Estou na idade em que as pessoas começam a fazer memórias. É interessante fazer memórias quando você chega aos 60 anos, tem muito material. Não sei, as coisas que vivi nesse mundo do passado tem elementos que ajudam a pensar o presente.

Que exemplos você pode dar sobre isso?

- É simples quanto comparar as coisas. Hoje quando você pensa em seriado de televisão você pensa no modo americano de produzir, com 20 e tantos episódios, cumprir uma temporada, negociar essa temporada… Existe uma tradição firmada neste território de ficção que permite as pessoas trabalharem em cima de um terreno sólido. E naquela época não, era tudo improviso, tudo uma invenção a partir de quase zero. Isso faz a gente pensar que hoje em dia a gente pode estar numa fase zero, num terreno zero em relação a alguma coisa. Do que a gente vai lembrar daqui a 30 ou 40 anos que tinha hoje ou não tinha hoje? É um exercício legal de fazer. A televisão existe ainda, a televisão é um elemento comum, as pessoas assistem muito. Ela se tornou uma presença absolutamente total. Ter televisão é como ter uma casa.

Muito se fala sobre a ruptura de sua obra a partir de certo momento, especialmente com relação aos personagens, que você teria se cansado deles. Que fase é está que está vivendo?

- Eu cansei dos personagens. Acho que cansar não é a palavra certa. Senti que existia um ciclo que acabou, está cumprido. Fecha um período que me deu muito prazer, tenho muita satisfação pelo trabalho realizado nesses anos todos. Senti que está esgotado, já disse o que tinha que ser dito ali e senti a necessidade de uma busca nova. Parti para essa busca há uns cinco ou seis anos e estou nela, estou na estrada.

Sei que é muito abstrato falar sobre isso, mas você poderia dizer de onde vem essa diferente força criativa que vive neste momento?

- Não é de um lugar só. Identifico claramente uma época, que era o final da adolescência, quando tinha 19 ou 20 anos, como uma fase rica de significados, de busca, de procedimentos e pesquisa gráficos. Liberdade de ação, eram os anos 60, uma explosão geral. Eu também estava explodindo naquele negócio. De uma maneira esquemática, quando comecei a me profissionalizar, bloqueei várias dessas tendências e outras coisas e formatei um modus operandi profissional. ”Vou fazer humor, vou fazer piadas, meu desenho é mais ou menos assim…” Todo mundo faz isso de uma certa maneira na área de entretenimento e de comunicação, em busca de ser reconhecido, de ter sua assinatura associada a determinado tipo de trabalho. ”Ah, esse desenho eu conheço, é do fulano.” Sabe? Esse tipo de coisa. É uma preciosidade para o profissional. Agora, isso tudo entrou no pacote do ciclo cumprido pra mim. Não preciso mais desse tipo de afirmação de personalidade gráfica e senti vontade de voltar aos procedimentos e buscas quando tinha 20 anos. Não exatamente voltar no tempo, não estou me iludindo quanto a isso. Tenho a pretensão de buscar um pouco aquela energia criativa, aquela inquietação, aquela abertura de possibilidades.



O que não cabe mais dentro de você que precisa liberar criativamente? Digo, o que tem a dizer?

- Um artista nunca tem uma coisa pra dizer, acho eu. E estou me incluindo entre artistas só por uma questão expositiva. Nunca tenho uma coisa fechada pra dizer. Em princípio, o modo como vejo a atividade de desenho, ilustração, criação de histórias e autoria é busca, basicamente busca. Nesse sentido, estou sempre buscando, não tenho uma ideia muito clara de que tipo de conclusão posso chegar.

Não poderia deixar de tocar neste assunto. O crossdressing faz parte dessas mudanças, desta fase criativa que vive? Li que faz parte também de uma investigação sobre o universo feminino. Que conclusão chegou até agora?

- Também ainda não concluí nada (risos). A conclusão que chego é que é uma delícia. É um exercício de liberdade maravilhoso. Abrir a cabeça para esse tipo de possibilidade, compreender a vestimenta como algo que você pode manipular e conduzir de acordo com suas necessidades e fantasias e não apenas se submeter aos códigos de gêneros, essa descoberta é uma delícia incrível.

Você já tinha pensado nisso no passado?

- Já, mas de maneira confusa e obscura. Neste momento apenas cheguei à conclusão de que é possível mexer com roupas, sair com saias, sapatos e brincos e coisas assim.

Quando lembro desse assunto sempre me vem à cabeça Ed Wood e como ele enfrentou o estranhamento de se vestir como mulher. Esse estranhamento também acontece com você?

- Sim, um pouco. Não tenho sentido hostilidade muito grande. Tenho sentido estranhamento e um pouco de constrangimento. E uma certa surpresa, uma insegurança grande por parte das pessoas. Não estou completamente seguro também, vou ficando à medida com o tempo. Quando saio por aí vestido dessa forma, fico sempre de antena ligada. Muitas pessoas que me observam querem fazer uma crítica mas não sentem muito habilitadas a fazer essa crítica, existe de tudo…

Essa liberdade tem trazido benefícios na forma como cria, na sua profissão?

- Tem. Aí já é uma ligação um pouco mais abstrata. É uma coisa ligada com o estado de espírito de quando eu trabalho, que não dá pra definir direito.

O que você acha dessa nova geração que vem produzindo trabalhos legais, como o Bá e o Moon, o Rafa, seu filho, e outros?

- O trabalho do Rafa é bastante diverso e original. O caminho que eles estão tomando é complicado em relação ao caminho que eu tomei quando comecei. Se a gente pode resumir as condições da época, não existiam jornais e revistas. Essas coisas estavam sendo criadas à medida que a gente fazia o nosso debut no mundo profissional. Por exemplo, na questão da remuneração é claro pra mim isso. Quando comecei, com dois ou três trabalhos fixos conseguia pagar aluguel, gasolina do carro, monte de coisas e me sustentava, com uma grande folga… Nah, com uma pequena folga. Enfim, hoje isso é inviável, completamente impossível, as pessoas têm que inventar um troço a cada dia pra ir buscar recursos e tal. Não é nem um pouco simples. O Rafa tem uma atividade em artes plásticas que é uma arma na mão dele, é um recurso que ele se defende nessa área. O que eu tinha de formação em artes plásticas ou de vontade de fazer artes plásticas mandei pro espaço rápido quando comecei a desenhar profissionalmente. Esses meninos chegam numa hora em que já aconteceu todo o boom de quadrinhos e uma explosão de revistas nas bancas e tudo… Muitas editoras já foram à falência e de um modo geral os quadrinhos hoje estão se comportando mais ou menos à europeia: a ideia está muito mais centrada em fazer álbuns e vender nas livrarias e coisas assim, do que fazer gibis e conquistar bancas. É uma outra perspectiva. Acho legal pra caralho, conhecer coisas novas.

Você tem lido muita coisa nova, o que tem acompanhado?

- Pouca, em relação ao que tem por aí. Tenho visto o trabalho do Rafa, do Grampá… Revistas eu tenho lido a Beleléu, a Samba... Tem algumas coisas que eu sou fã permanentemente. O trabalho do Berardi, que hoje faz os trabalhos da Julia, a criminóloga. Esse cara vou ler sempre que pintar. Infelizmente foi cancelado o título por aqui. Os irmãos Hernandez, o que eles fizerem eu estou lendo. Difícil eu ficar citando porque esqueço um monte de gente. O Liniers… Vários autores japoneses que não consigo lembrar o nome, como o cara que fez Gourmet, o cara que fez Na Prisão… Europeus também, o Christophe Bléin, do Isaac, o Pirata, O Gato do Rabino… Vou conhecendo e trabalhando e me surpreendo de ver que são trabalhos já de alguns anos, o cara fez aquilo em 2003 ou 2002 e de eu só estar conhecendo isso agora.

O mercado cresceu assustadoramente nos últimos 20 e 30 anos…

- Sim, esse mercado sim, o das livrarias. Mas é engraçado, o mercado de livros é um mercado pequeno. As multidões que vão às feiras, às bienais de livro, na verdade elas estão atrás da feira e não dos livros. Existem alguns livros que vendem estupidamente, mas o livro mesmo, o mercado normal é reduzido no Brasil. E os quadrinhos foram, progressivamente, se enquandrando nesse mercado e abandonando um mercado que era muito grande, onde os leitores, pelo menos os que me interessam muito, o de pouco dinheiro na mão e que gosta de quadrinhos, está desprovido, não está sendo servido. O que está vindo para as bancas são os mangás, que é possível produzir barato. Revista de quadrinhos brasileira, a nossa turma, está indo toda para a livraria. É uma pena isso. Então, está havendo um boom de mercado nesse segmento de livraria, mas que pra mim, com a memória que tenho de quando a gente vendia até 100 mil exemplares em bancas, é um retrocesso, é um ‘desboom’.

E o que pensa em fazer depois de Muchacha? Já tem alguma coisa preparada?

- Vou fazendo um pé depois de outro. Não consigo mais fazer planos balzaquianos. Digo isso porque ele (Balzac), com 20 e poucos anos, teve a visão do que seria o trabalho da vida inteira dele. Escreveu, planificou, dividiu em segmentos e antes de escrever os 100 e poucos novelas, romances e contos, planificou tudo. Sou absolutamente ao contrário. Nunca sei o que vou fazer. Tenho um trabalho com o Otto Guerra, de animação, que mudou completamente, era pra ser a história dos Piratas (do Tietê) e agora vai ser uma baseada na história geral das tiras que faço…

Tem alguma coisa que gostaria muito de ter feito e não fez, deixou passar?

- Putz, um monte, quase tudo…

Mas algo em especial?

- Não sei, não me arrependo, sei lá… É meio que punheta mental, porque não existe como reconstruir as coisas assim… Me arrependo, por exemplo de ter me enfiado em jornalismo sindical e ter trabalho dez anos na Gazeta Mercantil. Eu me arrependo mas não tinha como, na época, saber e fazer diferente. Eu, hoje, acho que tinha como. Mas isso é idealismo, uma coisa tonta, a gente se investir de uma onipotência e uma onisciência, uma coisa irreal. Ninguém tem isso, só o Balzac.

Você se arrepende em que sentido? No sentido criativo?

- Não me arrependo de fazer o que fiz no jornalismo sindical. Mas acho que esqueci de outras coisas. Esqueci de determinados apuramentos gráficos que gostaria de ter desenvolvido. De apuros técnicos que não busquei. Mas como disse, isso é punheta mental, a vida é o que é e o que a gente fez, essa é a verdade.



Só para encerrar: tem alguma história que você consegue lembrar agora na qual gostaria de ter seu nome assinado embaixo dela?

- Quase todas as que eu gostei (risos). Na verdade o meu trabalho é uma tentativa de assinar as histórias que eu gostaria de ter assinado. Não estou me autochamando de plágio ou plageador, acho que minha motivação principal, e desconfio que é o da maioria dos artistas, é a outra arte, a arte dos outros, outros trabalhos. Pra mim é muito claro isso. Desde criança, quando estava desenhando, estava querendo ir atrás de um sentimento ou de uma emoção que tinha sido despertada com um filme, um livro, um quadrinho, qualquer coisa. Quase tudo o que fiz foi uma tentativa de assinar outra arte. Nesse processo dialético de você ver uma coisa, apropriar-se de partes dela, elaborar e reapresentar é uma definição de trabalho artístico, processo criativo. Não acredito muito em partir do zero, do nada, do éter, do caos, sei lá. Partimos de um mundo de ideias, criamos coletivamente junto com os autores que a gente ama.

Depois da entrevista, Laerte ainda disse que deve lançar mais um álbum com seu personagem Deus e mais uma coletânea pela Cia. das Letras. Enquanto esperávamos pelo táxi que nos levaria para o lançamento de Muchacha na Itiban Comic Shop, disse que vem pouco pra Curitiba e, mesmo com o frio que estava fazendo, não sentia frio nas pernas. ”Sempre pensei que mulher passava frio de saia. Mas essas meias são muito quentinhas!”

Percebi que aquele momento seria semelhante ao que Ameaça Nuclear causou quando criança. Iria me ”perturbar” para o resto da vida. Impulsionar novamente a escrever, a desenhar, a criar. Principalmente depois do que ele me ensinou. Sim, Laerte me explicou como consegue criar desenhos tão soltos depois do nanquim.

E dali em diante aprendi mais do que isso. Aprendi que as memórias desse Laerte podem parecer nebulosas ou surreais, como suas atuais tiras, mas fazem sentido. Porque, conforme crescemos são essas recordações afetivas que, paradoxalmente, nos fazem menos saudosistas ou nostálgicos. São essas coisas que nos ensinam a valorizar os pequenos e inesquecíveis momentos, para seguir em frente. Assim estamos preparados para criar novos e inesquecíveis momentos.

Tentaria fazer aqui uma resenha sobre Muchacha. Mas não é o caso. Não é o momento de julgar Laerte, muito menos seu trabalho. Seria muito sem graça tentar explicar o que são aquelas memórias afetivas. O momento é de se divertir com o cara. De admirar e aplaudir. E assim, encerro aqui também um ciclo de minha memória afetiva com um gênio de nossos quadrinhos.

As fotos desta entrevista foram todas tiradas pelo sensacional Theo Marques.

Em tempo: Muchacha tem 96 páginas no formato 20,5 x 19 cm e custa R$ 29.

http://www.ideafixa.com/hqs-laerte-muchacha-e-memoria-afetiva/

Muchacha (Laerte)

Considerado pelo próprio autor um graphic-folhetim, o autor de Piratas do Tietê afirma que sua “intenção não é mais fazer piada, e sim evocar sensações, idéias. Acho saudável dar um choque no leitor, estimular certa confusão.” Por isso que Muchacha não é linear logo de início, pois são, na verdade, diversas histórias interligadas.
Originalmente publicadas no jornal Folha de São Paulo, as tiras que formam esse livro são um mergulho cultural em direção à glamorosa década de 50 e no início corajoso da televisão no país. Laerte certamente é conhecido por seus personagens de fácil aceitação e pelo seu humor nada ortodoxo, como em Piratas do Tietê, Overman, os Gatos, entre outros. Porém, Muchacha representa uma nova fase em sua carreira, algo como ele mesmo define como mais filosófico e menos nonsense.
Na história, temos o Capitão Tigre e a misteriosa Muchacha, uma cantora de rádio. E também Sulfana, Milhafre, Lauro, Djalma e Carayba. Todos ligados diretamente a uma série de televisão, como se fosse uma novela dentro de uma novela. Laerte brinca com os leitores ao inserir romance, vinganças e reviravoltas dando certo clima de tensão, o que aumenta a sensação de que a obra é na verdade um grande folhetim digno de horário nobre.
A cada uma ou duas páginas, a história fecha e ao mesmo tempo se abre o que pode torná-la um pouco difícil de compreender, levando em consideração que Laerte o fez propositalmente, deixa a graphic-folhetim/novel ainda mais interessante e charmosa. Podemos encontrar Laerte inserido na história não só através dos desenhos dos personagens, mas também em algumas características psicológicas deles e é válido citar também, que em Muchacha ainda encontramos espaço para um novo perfil do cartunista, conhecido pela riqueza de detalhes em seus desenhos, passou a focar apenas no que era mais essencial (de acordo com entrevistas, devido a crises e problemas pessoais).
Muchacha surpreende por não ser óbvio, o leitor acaba viajando nos traços delicados e simples de Laerte e se depara com suspense, memórias dos tempos de criança e política. A cada nova página, uma surpresa. E ao final do livro, temos a participação de seu filho, Rafael Coutinho, co-autor de Cachalote, ilustrando uma aventura do Capitão Tigre, elevando assim esse graphic-folhetim/novel a uma edição de colecionador.



"Uma hora o mundo vai me descobrir" - Cartunista Laerte

O cartunista Laerte, com 40 anos de carreira e 59 de idade, lança 'Muchacha', coletânea de quadrinhos sobre os bastidores de uma série televisiva. No livro, um dos personagens, Djalma, se veste de mulher - comportamento que o próprio ilustrador vem adotando desde 2009 como reflexo de uma crise pessoal e profissional.
por Armando Antenore
Foto Gabriel Rinaldi
artista-laerte-tratada
Laerte de batom, unhas pintadas, brincos e cabelos chanel, elementos que agregou recentemente às roupas masculinas. Desejo de explorar o universo feminino
Passava das 14h30 de uma quarta-feira e Laerte Coutinho ainda não chegara à entrevista. Eu o aguardava numa padaria da Vila Madalena, bairro notívago de São Paulo. O cartunista de 59 anos, que está completando quatro décadas de uma carreira elogiadíssima, deveria aparecer 30 minutos antes. Como não dava as caras, resolvi lhe telefonar. "Putz, rapaz! Me esqueci de você!", constatou, aflito. Saiu correndo do Butantã, onde mora num sobrado com dois gatos, e adentrou a padaria às 15h20. Exibia vistosos brincos de pérolas e um corte de cabelo chanel.
Apenas no fim da conversa, que durou quase três horas, esclareceu o motivo do visual peculiar: desde 2009, como resultado de uma profunda crise, mantém o hábito de se vestir de mulher, total ou parcialmente. A prática também pontua o livro Muchacha, que o desenhista paulistano acaba de lançar. A coletânea reúne quadrinhos publicados no jornal Folha de S.Paulo e retrata os bastidores de uma série televisiva dos anos 50. Um dos personagens, o ator gay Djalma, protagoniza espetáculos musicais sob a pele de uma transexual cubana.
BRAVO!: Você costuma esquecer compromissos? Laerte Coutinho: Não, não costumo. É verdade que, às vezes, me desligo um pouco da Terra e vou para o mundo da Lua. Mas, em geral, me julgo um camarada bem responsável.
Então por que você se esqueceu do nosso encontro? Tem ideia?
Sinceramente? Freud explica. Freud sempre explica. Na realidade, não queria dar entrevista. Estou me obrigando… Atravesso um período nebuloso, sabe? Uma crise gigantesca, tanto pessoal como profissionalmente. Não ando satisfeito com minhas criações e não imagino um modo de torná-las satisfatórias no curto ou no médio prazo. Talvez nem mesmo no longo. Uma sinuca de bico… Falar sobre minhas ilustrações, meus cartuns e minhas tiras neste momento me incomoda muito. É reivindicar importância para algo que já não avalio como tão relevante. Hoje não acredito que possa despertar o interesse de alguém. Sinto vergonha de quase tudo o que produzi em 40 anos de carreira. Gostaria de consertar a maioria das coisas.
Vergonha? A palavra me soa forte demais, entre outras razões, porque você ganhou inúmeros prêmios e porque diversos cartunistas, incluindo os jovens, frequentemente o classificam de genial.
O problema é que não me convenço. (risos) Genial? Considerava-me gênio quando adolescente. "Uma hora o mundo vai me descobrir", pensava, enquanto rabiscava carros, barcos, guerreiros. Tremenda bobagem… Claro que enxergo qualidades no que fiz e no que faço. Longe de mim bancar o coitadinho ou apelar para a falsa modéstia. Só que tais qualidades não chegam nem perto das que me atribuem. Eu não me contrataria. (risos) Na década de 1980, por exemplo, participei do Festival Internacional de Quadrinhos em Angoulême (sudoeste da França). Fui representar o Brasil com o Ziraldo e mais alguns colegas. Assim que desembarquei na cidade, bateu um desconforto horrível. Tive ímpetos de cavar um buraco e sumir. Os franceses, que publicam HQs sofisticadérrimas, maravilhosas, simplesmente nos desprezaram - ainda que de maneira diplomática. Eles examinavam as nossas produções, arrebitavam o nariz e comentavam: "Curioso, curioso…" Aquilo me pareceu uma baita injustiça contra o Ziraldo e o resto da turma, mas não em relação às charges que levei para lá. Confesso que adoraria adorar a minha profissão. Adoraria ser como o Angeli, que desenha com um amor imenso. Ou como o Robert Crumb, que desenha compulsivamente. Ou como o Paulo Caruso, que desenha com uma facilidade assombrosa.
Você não vê mais graça em desenhar?
Praticamente não vejo. Desenhar se tornou penoso, difícil. Mal começo um trabalho, percebo que estou me dedicando àquela tarefa apenas porque necessito cumprir prazos ou pelo simples fato de que já a incorporei no meu cotidiano. Fugir da burocracia virou o xis da questão. Descobrir rumos novos, prazeres diferentes… Há tardes em que travo e fico horas sem arriscar um mísero esboço, inteiramente refém da autocrítica. Não me agradam os motes que escolho para as tirinhas, o desenvolvimento das tramas, a redação dos textos, o jeito como lido com as cores, a plasticidade do meu traço. Por outro lado, também não me agrada a perspectiva de largar tudo e me refugiar numa ilha deserta, folgadão. Não pretendo me aposentar. O que desejo é me reinventar.
Quando a crise eclodiu?
As primeiras insatisfações surgiram em 2001 ou 2002, no vácuo de uma tempestade maior que causara o fim do meu terceiro e último casamento. Pouco depois, em 2004, o incômodo cresceu e resolvi abdicar de vários elementos que marcavam minha trajetória. Abandonei personagens famosos, como o Overman, os Gatos e os Piratas do Tietê, certo tipo de humor, menos sutil, e a preocupação com a linearidade das histórias. Iniciei, ali, uma fase mais "filosófica", que muitos intitulam de nonsense e que ainda me caracteriza. Uma parcela dos jornais que divulgavam os meus quadrinhos estranhou a reviravolta e acabou me dispensando - caso do gaúcho Zero Hora e do capixaba A Tribuna. Reclamavam de um hermetismo excessivo, de uma obscuridade que atrapalharia a fruição do público. Evidente que não concordo. Rejeito, inclusive, o adjetivo nonsense para definir o meu trabalho. Nonsense pressupõe o caos, a ausência total de significado. Ocorre que minhas tiras buscam, sim, um sentido - mesmo que seja o de aplicar um golpe na lógica, o de implodir o senso comum. Discussões semânticas à parte, noto que a trilha inaugurada em 2004 vai se fechando. Preciso, no fundo, me reconectar com o adolescente atrevido que, 45 anos atrás, ingressou num curso livre de desenho e pintura doido para se expressar. Preciso reencontrar a chave daquela inquietação, daquele frescor, daquela ousadia.
Envelhecer o deprime?
Não, mas me assusta. Nunca almejei a longevidade e sempre achei que morreria cedo. Por isso, não me angustio quando lembro que completarei 60 anos em 2011. Penso que dei sorte, que estou no lucro. (risos) O que me espanta é a rapidez do tempo - a ligeireza com que os dias voam depois que passamos dos 40. Uma rapidez estonteante, que se associa à falta de produtividade. Para um garoto, 12 meses fazem uma diferença brutal. Quantas coisas se modificam num intervalo tão pequeno! Já para um cinquentão, 12 meses normalmente não representam nada. Tudo permanece idêntico.
Recém-lançada, a coletânea Muchacha leva o nome da cantora e dançarina que o ator gay Djalma interpreta na trama. Ele se traveste. Você, à semelhança de Djalma, está usando brincos e um corte de cabelo bem femininos. Também aprecia o guarda-roupa das mulheres?
Também. É uma descoberta nova, uma predileção que se insinua há séculos, mas que se manifestou com todas as letras apenas em 2009. Cinco anos antes, um dos meus personagens, o Hugo (veja acima), decidiu "se montar". Não sei exatamente por quê. Só sei que, de uma hora para outra, arranjou vestido, batom, salto alto e se jogou no mundo. Desde que nasceu, o Hugo se porta como um alter ego do Laerte. Ele costuma assumir nos quadrinhos grilos e desejos que se confundem com os meus. O fato de imitar o visual das mulheres certamente denunciava algo sobre mim - sobre ambições que eu me negava a explorar às claras. Foi quando recebi o e-mail de uma arquiteta, fã do Hugo. Quer dizer: de um arquiteto que abraçou a identidade feminina. O sujeito me perguntava se ouvira falar dos crossdressers, pessoas que gostam de botar roupas ou adereços do sexo oposto. Na época, não dei muita bola. Mas em 2009, por causa do aguçamento de minhas neuras existenciais, procurei um clube de crossdressers, frequentei reuniões organizadas pelo grupo e li a respeito do assunto. Depois, lentamente, agreguei enfeites femininos à indumentária masculina - brincos, colares, unhas pintadas. Hoje, dependendo da ocasião, me visto como mulher dos pés à cabeça, mesmo em lugares públicos, onde acabo passando despercebido. Outras vezes, ponho somente uma bijuteria, um esmalte. De início, meus filhos, minha namorada e meus amigos chiaram. Agora, já se acostumaram. Ou quase. (risos)
O que você sente quando se traveste?
Um prazer indescritível, que nunca cogitei sentir. Recorrendo à prática, não planejo mudar de gênero definitivamente nem colocar em xeque a minha bissexualidade. O crossdressing, no meu caso, se refere menos à atividade sexual e mais à transposição de limites. É uma necessidade imperiosa de perscrutar e vivenciar os códigos femininos. Há ocidentais que se deleitam em investigar o Oriente. Experimentam comidas exóticas, fazem ioga, visitam a China. Da mesma maneira, por que um homem não pode empreender uma viagem radical pelo planeta insondável das mulheres?
Em 2005, você perdeu um de seus três filhos num acidente de carro. A crise atual tem alguma relação com a morte dele?
Creio que sim. O desaparecimento repentino do Diogo, aos 22 anos, me abalou terrivelmente. Fiquei um mês mergulhado na absoluta incapacidade de desenhar. Quando retomei o trabalho, as dúvidas que me conduziram à guinada conceitual de 2004 recrudesceram. O entendimento de que um ciclo terminara se mostrou claríssimo. Desde então, vivo sem bússola, um tanto desnorteado. Ou melhor: existe um norte, só que é um norte débil, inseguro, mutante. Uma vertigem contínua. A perda do Diogo retirou o véu de tudo. Relativizou ainda mais quaisquer certezas, desnudou as minhas fragilidades e, paradoxalmente, revelou as minhas forças - ha medida em que toda fragilidade demanda uma força como resposta. Mas, na contramão do que parece, não extraí mensagens edificantes do episódio. A morte não nos traz lição nenhuma. É o desconhecimento pleno, um vazio que não se contenta com as justificativas da política, da sociologia, do direito, da psicanálise, da antropologia. Pegue o fim trágico do Glauco... (Glauco Villas Boas, cartunista e amigo de Laerte, assassinado em março junto do filho, Raoni, por um adepto da Igreja Céu de Maria). O que explica uma barbárie daquela? "Ah, como lideravam um culto religioso que ministra o santo-daime, Glauco e Raoni atraíram um punhado de malucos..." Será mesmo? Para mim, não importa! Nada esclarecerá o mistério de por que alguns partem do modo cruel como os dois partiram. Havia realmente necessidade daquilo? Daquele Armagedon doméstico? Do horror imensurável? Um pai presenciar a execução do próprio filho e depois morrer?

http://bravonline.abril.com.br/materia/tenho-vergonha-quase-tudo-desenhei-laerte

Proibido de entrar no banheiro feminino

Cartunista vai à Justiça para ter direito de usar banheiro feminino


NATÁLIA CANCIAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em uma noite de terça, uma senhora entra no banheiro feminino da Real Pizzaria e Lanchonete, na zona oeste de São Paulo. Ela veste uma minissaia jeans, uma blusa feminina listrada, meia-calça e sandália.
Momentos depois, é proibida de voltar ao banheiro pelo dono do estabelecimento. Motivo: uma cliente, com a filha de dez anos, reconheceu na senhora o cartunista da Folha Laerte Coutinho, 60, que se veste de mulher há três anos.
Ela reclamou com Renato Cunha, 19, sócio da pizzaria. Cunha reclamou com Laerte. Laerte reclamou no Twitter. E assim começou a polêmica. O caso chegou ontem à Secretaria da Justiça do Estado.
A coordenadora estadual de políticas para a diversidade sexual, Heloísa Alves, ligou para Laerte e avisou: ele pode reivindicar seus direitos. Segundo ela, a casa feriu a lei estadual 10.948/2001, sobre discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.
Proibido de entrar no banheiro feminino, mesmo tendo incorporado as roupas de mulher ao dia a dia, Laerte diz que pretende acionar a lei.
Ele conta que, avisado pelo dono, tentou argumentar com a cliente. "Até brinquei e passei para a minha personagem Muriel e disse: mas sou operado! E ela: mas não é o que você diz por aí."
Letícia Moreira/Folhapress
Cartunista Laerte vai recorrer à Justiça para ter o direito de usar banheiro feminino após polêmica
Cartunista Laerte vai recorrer à Justiça para ter o direito de usar banheiro feminino após polêmica
Laerte, que se define como alguém "com dupla cidadania", diz que passou a usar o banheiro feminino após aderir ao crossdressing (vestir-se como o sexo oposto) e se "consolidar" como travesti, mas não tem preferência por um banheiro específico.
"É uma questão de contexto, de como estou no dia. Não quero nem ter uma regra nem abrir mão do meu direito", disse o cartunista.
Cunha, o sócio da pizzaria, diz que não sabia da "dupla cidadania" do cartunista nem que o caso iria gerar polêmica.
"Eu nem sabia o que era crossdressing. Houve a confusão, e no final eu cometi esse erro de falar: se o senhor puder usar o banheiro masculino, por favor." Ele diz que se arrependeu do pedido.
Ontem, a proibição gerou comentários e dividiu usuários das redes sociais. A discussão ganhou apoio entre associações de travestis e transexuais.
Segundo Adriana Galvão, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB-SP, não há lei específica sobre o tema.

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1040192-cartunista-vai-a-justica-para-ter-direito-de-usar-banheiro-feminino.shtml

sempre teve vontade de se vestir de mulher - Laerte


De salto médio, meias coloridas, maquiagem leve e namorada a tiracolo, Laerte chega para dar entrevista à Folha sobre seu novo estilo de vida. Confira.
Para cartunista Laerte, amigos fingem que nada mudou
Título com travesti é novo lançamento do cartunista cross-dresser

Carlos Cecconello/Folhapress
O cartunista Laerte Coutinho na segunda-feira
O cartunista Laerte Coutinho na segunda-feira
Folha - Diversas possibilidades para a mudança do seu estilo de vida passam pela cabeça. A primeira delas é que você pirou, um processo que teria começado em 2005, com a morte de seu filho num acidente de carro, passou pelas tiras da Ilustrada, cada vez mais estranhas, e agora isso. Você está louco, Laerte?
Laerte Coutinho - Eu não me sinto fora do eixo, fora do tom, fora de nada. Comecei a me aproximar do travestimento, ou "cross-dressing", em 2004. Interrompi --e a morte de meu filho tem um peso nisso-- e retomei em 2009. Fiz a minha primeira montagem em 2009. Mas as coisas que se evidenciaram [em meu trabalho] a partir de 2005 já estavam ali, latentes, germinando em 2004.
Uma segunda possibilidade é que você se veste porque isso dá tesão.
Não, não é um fetiche sexual. Não é, nem é um tema que me interessa agora. O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. É um erro fazer essa mistura. "Ah, está vestido de mulher, então é viado." "Jogou bola, é macho." E eu que gostava de costurar e de jogar bola?
O que tenho feito é investigar essa parte de gênero. O que tenho descoberto é que isso é muito arraigado, essa cultura binária, essa divisão do mundo entre mulheres e homens é um dogma muito forte. Não se rompe isso facilmente. desafiar esses códigos perturba todo o ambiente ao redor de você.
Mas você é bissexual, certo?
Sou.
E não há ligação entre isso e o "cross-dressing"?
Não.
Você está fazendo isso para espantar o tédio?
Não faço isso porque a vida está sem graça. O problema é a vida submetida a essa ditadura dos gêneros, a esses tabus que não podem ser quebrados. É você sentir que sua liberdade está sendo tolhida, que as possibilidades infinitas que você tem de expressão na vida, ao sair, ao se vestir, ao se manifestar, ao tratar as pessoas, seu modo, seu gestual, sua fala, tudo isso é cerceado e limitado por códigos muito fortes e muito restritos. Isso é uma coisa que me incomoda.
As pessoas aparentam normalidade e tentam não demonstrar um espanto, certo?
Por uma razão: se demonstram espanto, estão ferindo um código de boa conduta intelectual. Demonstram que não são modernos, por exemplo.
E na rua?
Quando eu estou na rua de saia e passa uma kombi e o cara faz "fiu-fiu" pra mim, ele não teve dificuldade nenhuma em fazer aquilo. E eu também recebo de forma muito clara.
Você dá pistas de que vai estar travestido quando vai encontrar uma pessoa que ainda não sabe?
Existe uma tática, um modo de preparar um pouco. Vou na casa de uma pessoa que não conheço, não vou totalmente montado. Questão de bom senso.
Mas você pode ir de homem?
Estou abolindo esses negócios.
Você pode ir sem maquiagem?
Eu estou sem maquiagem. Ops, ah, não, estou com olho pintado! Mas posso, sim, ir sem maquiagem.
Como foi o Natal em família? Com vestido?
Não, não. Só unha mesmo. Não estava nem de bolsa. Acho que foi mais mãos mesmo. Rolou um certo estranhamento com o cabelo. Esse corte feminino, feito pela [minha namorada] Tuca.
Avisou de alguma forma para se prepararem?
Não, fui na louca.
E o Angeli? Você já encontrou o Angeli?
Eu estou dando pra ele! (risos)
Ele vai adorar ler isso!
(Risos) Brincadeira. O Angeli é uma beleza. Achou superlegal. O Angeli é um exemplo de que uma pessoa pode ser completamente hétero e legal.
Como você explica isso para as pessoas?
É como se a vida tivesse me levado a essa circunstância e, quando eu me vi, percebi que aquilo representava uma busca pra mim. Foi mais ou menos isso que senti. Quando vi, comecei a fazer tiras do Hugo virando a Muriel.
O lema do Brazilian Crossdresser Club, do qual você faz parte, é "existimos pelo prazer de ser mulher". Que prazer é esse, Laerte?
Eu não concordo muito com esse lema, porque é uma frase que procura construir uma certa fantasia que eu não partilho. Eu não vou ser mulher nunca. Mas acho que é possível sair na rua e ser aceita como uma pessoa que se veste daquela maneira, que se enfeita e se produz e se apresenta daquela maneira.

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/825136-cartunista-laerte-diz-que-sempre-teve-vontade-de-se-vestir-de-mulher.shtml