Existe este conceito, ele faz sentido? Uma gravação de uma canção pode ser a primeira, e então a música é inédita, ou ser uma regravação. Ser o primeiro a gravar uma canção faz diferença de cantá-la conhecendo uma interpretação anterior de outra pessoa? É possível considerar a primeira gravação como sendo a referência de todas as outras posteriores, para o bem ou para o mal?
Quando ouvimos uma regravação ouvimos também a gravação original por trás dela. Se conhecemos uma gravação anterior, estabelecemos automaticamente uma relação nesta reaudição. Mas mesmo que não a conheçamos, ouvimos o seu eco na regravação – se o cantor conhece a gravação original. E se ele não conhece, há este eco em sua interpretação, sem que ele perceba ou controle?
Me acostumei ao longo do tempo com a idéia de uma gravação original que fosse considerada a referência da canção, idéia muito dos pesquisadores da música brasileira pré-bossa nova. Mais tarde descobri que no meio acadêmico hoje esta idéia é repudiada por muitos. Não sei se posso concordar inteiramente com nenhuma das duas posições. Trago quatro exemplos bem diversos, em que a ligação entre duas ou mais gravações obedece a diferentes critérios:
Primeiro exemplo: descobri há dias que Ai, se eu te pego, o sucesso internacional que acaba de ser gravado em hebraico, tem a seguinte e mirabolante história: foi composta e gravada por uma funkeira baiana, adaptada por um forrozeiro e gravada por um grupo chamado Cangaia de Jegue, e só então por Michel Teló, que é classificado como sertanejo universitário (sic).
Antes de qualquer coisa, uma informação como esta se presta a uma análise e tanto sobre a nossa indústria cultural de massa descaracterizando tudo que toca. Mas isto só se torna possível porque ela encontra uma canção como esta, que passa incólume por essas sucessivas mutações. Comentei no Facebook que ela tem que ser absolutamente genial ou não ser absolutamente nada para conseguir ser todas estas coisas sem realmente ser nenhuma, e no fundo acho que ela junta as duas coisas, sendo genial em sua capacidade de ser nada. Não vai ironia aqui. Será que a gravação da baiana Sharon Acioly (autora também da Dança do quadrado!) pode ser considerada a verdadeira, cantada do ponto de vista feminino? Ou a do Cangaia de Jegue, que não é a que foi ouvida por quem fez a tradução para o hebraico? E no entanto, foi a partir destas gravações que foi definida a versão que explodiu nas paradas de sucesso.
Certo, esta canção certamente será esquecida dentro de pouco tempo, ela foi feita para isso. Mas a reflexão acima vale não somente para ela, mas para a obra de arte de massa em geral, em que o processo de criação é bem outro, seguindo critérios de autoria muito diversos, e que ainda vão ter que ser estudados pelos teóricos de Comunicação.
Segundo exemplo:
Fadas – Luiz Melodia
Luiz Melodia gravou Fadas em seu álbum de 1978, Mico de circo, como um vigoroso choro, cheio de ironias típicas de seu samba sofisticado, como o erro de português proposital logo no primeiro verso, Devo de ir (ele também usa a preposição de fora de propósito num verso de Ébano, Espero de te encontrar com mais saúde, assumindo uma sintaxe de pessoa iletrada tentando falar na forma culta), mas com um lirismo igualmente vigoroso.
Fadas – Elza Soares
Elza Soares regravou Fadas em 2002, no álbum Do cóccix até o pescoço, tranformando o choro num inesperado tango. A canção perdeu algo da ironia da gravação original, mas permaneceu lírica e um tanto ácida na leitura de Elza. Ainda assim, são visões muito diversas da mesma canção. Mas Luiz Melodia, depois desta gravação, passou a frequentemente apresentá-la em shows com o arranjo da gravação de Elza! É o caso de uma regravação influenciar o autor (Lembra-me também Bob Dylan, que após a gravação de Knockin’ on the heavens door por Bob Marley, passou a também cantar sua própria canção como reggae).
Terceiro exemplo:
Dura na queda – Elza Soares
Dura na queda foi composta por Chico Buarque especialmente para Elza Soares, e gravada por ela no mesmo álbum de 2002. José Miguel Wisnik, produtor do álbum, conta que foi à casa do Chico para anotar a tortuosa melodia da voz do próprio autor, contendo inclusive uma citação de An american in Paris, de George Gershwin, e que na hora de cantar Elza arredondou completamente a melodia, chegando a tornar descendentes frases ascendentes e vice-versa, o que levou Chico a gravar a canção depois eu seu álbum Carioca:
Dura na queda – Chico Buarque
E neste caso, qual deverá ser a versão real? A que tem a melodia correta, a do autor – que não é a primeira, ou a da cantora para quem a música foi feita, esta sim a original em seu significado estrito?
Quarto e último exemplo: Luiz Tatit diz que João Gilberto é recompositor, por tomar uma canção que muitas vezes é consagrada e muito conhecida, e nos revelar arestas insuspeitadas, como disse Caetano, e resolver o dilema à sua maneira particular, criando versões que soam definitivas das canções, sem deixar de remeter continuamente à história de cada uma, às gravações anteriores, originais, sempre referencial, sempre sobejamente autosuficiente. Cito a partir daqui, ipse litteris , um trecho do documentário Tim tim por tim tim – a música de João Gilberto, texto do pesquisador Paulo da Costa e Silva, e eu não poderia dizer melhor:
Muitas vezes, a canção recriada por João é tão difundida, tão fincada no repertório comum, que não é mais possível remetê-la a uma única fonte primordial, a essa ou aquila matriz de referência. As inúmeras gravações de Garota de Ipanema, Aquarela do Brasil e Desafinado sobrepõe-se de tal maneira que terminam por formar uma espécie de original ideal da canção, que jamais é realizado concretamente. A memória não é apenas uma máquina de registro, na qual eventos passados e experiências são armazenados de forma imutável. A memória é ativa, modifica o que guarda. Costuma agir sobre as melodias armazenadas de modo a torná-las mais padronizadas e confortáveis para a própria mente, mais redondas e esquemáticas, portanto mais facilmente assimiláveis e rememoráveis. Ao ser retida, a forma musical geralmente é alterada na direção da regularidade, da simetria e da completude. Ou seja, tendemos a lembrar dos temas musicais como sendo mais simples do que eles realmente são, como tipos ideais mais do que como objetos particulares dessa ou daquela interpretação. A música de João nos induz continuamente a essa comparação com o tipo ideal, com a lembrança que temos de determinada canção. Talvez nenhum exemplo da capacidade de João de dar vida nova a uma canção já gasta seja mais indicativo do que suas gravações de Garota de Ipanema.
http://tuliovillaca.wordpress.com/
Obrigado pela citação, bonito blog este. Grande abraço.
ResponderExcluirA sua presença enobrece o pedaço, Tulio. Sou grande fã!!! Venha sempre...Abraços, regina
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