“Beijos Pela Noite” (Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carlos Lacerda), interpretada por Danilo e Simone Caymmi
Esse ano é o centenário de Jorge Amado e todo mundo está celebrando seu talento literário. Aqui um pouquinho do talento musical dele, em parceria com Dorival Caymmi.
Nos olhos dela habitava a
bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a face transparecia a
tranquilidade interior de quem não fora punida pelo despeito nem agredida pelo
ressentimento. Era ainda nova: vivia na linha de sombra que tenuemente divide a
idade das pessoas, entre maduras e velhas. De onde viera? Que idade tinha?
Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios murchos. Por vezes, exibia largos
decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo dos seios, eis os braços roliços,
opulentos e sensuais. Era alta, quase imponente; porém, quando subia a rua
íngreme, parecia alada, os pés quase não tocavam no chão.
Aparecera no
bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da
estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia
dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado,
os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente,
embebedavam-se.
Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do
clube. Gostava de se colocar à varanda, e os homens fitavam-na, gulosos, ávidos
e sôfregos. Fingia não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela observava
o horizonte, lá, onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstracta,
atenta e exposta. Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das
outras. Às vezes dançava ao som de uma pequena telefonia. Dançava como se
estivesse a dançar com o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em alguém que
amara.
As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro
era bom e valia tudo o que de ele se dissesse; o resto era mau, e tudo o que de
pior se dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas, as suposições
pérfidas, as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da
postura, a pequena viração de altivez que dela se desprendia.
Suspeitaram
de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário de imóveis,
que fazia números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a natureza
insidiosa desses boatos. Não lhes atribuiu a menor importância, o que ainda mais
arreliou as outras.
Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde,
ocasionalmente ausentava-se pela noite. Acumulavam-se as suspeições. Até que,
certo dia, deixou de aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram
ditas, como se de verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou,
outra, e outra ainda. Para onde fora? Que seria feito dela? E se ele não
regressasse, não pudesse regressar ou não quisesse regressar?
Depois,
houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía forte.
Desapareceu no cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para descortinar
aonde ela ia. Entrou num prédio alto e antigo, de azulejos, e ao perseguidor
assaltou a ideia de que a vizinha misteriosa talvez fosse mulher-a-dias. Este
indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar com ela; porém, fora
rejeitado com uma frase breve e ríspida. Era o ressentimento que o incitara
àquela infausta perseguição.
Horas e horas decorreram. A chuva deixara de
cair, o homem encostara-se a uma árvore, sem abandonar a vigilância ao prédio.
Até que, finalmente, ela reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente,
aproximou-se da árvore onde o outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem. E ela
disse:
— Quer saber o que eu faço, não é?
— Bom…bom — Não sabia o
que responder.
— Olhe: vendo ternura.
E desandou. Agora, uma brisa
mansa, um vento acariciador, um pio de ave, e o silêncio. Era assim: todos os
dias, ou quase, ela visitava casas de gente idosa, e recebia escassos euros para
lhes ler jornais, revistas ou livros de histórias cordatas com finais felizes.
Simplesmente um pouco de ternura.
Voltou à rua para se despedir da rua e
ignorar as pessoas. As pessoas juntaram-se, viram-na subir o calçadão, puxar
pelas pernas para escalar a escadaria enorme. Durante algum tempo pensaram nela.
Nunca ninguém soube o seu nome, nem se foi feliz na vida.
Anos depois, um
modesto cronista contou-a numa crónica humilde.
Um ano sem José Saramago. O homem que fez a diferença em Portugal, odiado por alguns, amado por muitos. O português que conquistou o coração da Espanha, mais amado por eles do que por nós. A Espanha, esse país fisicamente tão próximo e civilizacionalmente tão distante de nós, teve a capacidade de respeitar e entender a obra de Saramago. E desengane-se quem pensa que Saramago era menos provocador lá do que cá! Saramago não tinha duas faces. Aqui, neste país infetado de velhos do Restelo, apelidavam-no de arrogante e provocador (no sentido pejorativo da palavra); lá, a escassos 150 km daqui mas noutra galáxia civilizacional, respeitavam o seu génio provocador (no melhor sentido que a palavra encerra). Saramago dividiu os Portugueses e uniu os Espanhóis que o consideravam tão seu como Camilo José Cela, privilégio apenas concedido a alguns não nacionais, em regra hispânicos, como o peruano Mario Vargas Llosa ou o mexicano Octavio Paz. Mesmo em relação a estes, não existe o carinho devotado, e que persiste, a José Saramago. Uma áurea romântica invadiu quase por instinto o coração dos espanhóis relativamente ao severo e racional Saramago, o homem que sendo obrigado a exilar-se do seu país foi acolhido pelo enorme coração de Pilar del Rio. Saramago não se exilou de Portugal em busca de sucesso e reconhecimento. Isso fazem-no agora, sem hesitar e quase sem pensar, milhares de jovens que não se reveem neste país supostamente moribundo. Pelo contrário. Saramago exilou-se por não suportar a mesquinhez provinciana da classe política portuguesa e, ao fazê-lo, tornou-se o primeiro prisioneiro de consciência da democracia portuguesa. Nunca renegou Portugal. Amou-o até ao fim. Nas suas obras fala sempre de países hipotéticos e cenários abstratos e, se nos revemos recalcados e humilhados pelas suas obras, é porque nos encaixamos muito bem e muito tristemente nesses retratos literários. Que melhor prova de amor para com um Povo e um País do que Viagem a Portugal? Ao contrário do Povo de Portugal, que Saramago amava e tão bem entendia, porque fazia intrínseca parte dele, irritava supostos democratas, tão distantes do Portugal profundo, definitivamente burocratas, tão bem colocados na vida e barricados no discurso político supostamente correto. Todos sabemos quem eles são.
Não sei por onde vou, só sei que não vou por aí, dizia José Régio. Saramago também. E não foi. E fez muito bem. E está, em definitivo, nos memoriais deste País. E, para irritação de alguns (e, repito, todos sabemos quem são), ainda está cá. Pilar del Rio demonstrou-o ontem, um ano depois da sua morte, ao colocar as suas cinzas em frente à Fundação José Saramago. Desenganem-se senhores burocratas recalcados e génios (politicamente) vingativos, profissionais do desdém e do escárnio político! Não, Saramago não desapareceu nem será esquecido nesta terra de políticos sem Povo que o renegaram e censuraram. Não poderia subir para as estrelas, se à terra pertencia! Habituem-se à ideia senhores!
Sérgio Ricardo chega hoje aos 80 anos e os comemora nos palcos de teatro.
Assim, ele --que é músico, escritor, cineasta e pintor-- reitera sua versatilidade, abafada pelo episódio que o eternizaria: o rompante em que, impedido pelo público de apresentar "Beto Bom de Bola" no Festival da Record em 1967, quebrou seu violão, informa reportagem de Rodolfo Lucena publicada na Folha desta segunda-feira. Autor de "Bandeira de Retalhos" ambiciona ter suas peças filmadas
A íntegra está disponível para assinantes do jornal e do UOL (empresa controlada pelo Grupo Folha, que edita a Folha).
Leia também a íntegra da entrevista com o diretor.
Cecilia Acioli/Folhapress
O compositor Sergio Ricardo, diretor musical e autor de "Bandeira de Retalhos"
Os festejos do aniversário de Sérgio Ricardo, que já renderam uma exposição sobre sua obra em março, incluirão ainda shows em São Paulo, no próximo fim de semana.
Acompanhado das filhas, Adriana e Marina, o compositor faz uma viagem por mais de 60 anos de carreira.
Há canções românticas, como "O Nosso Olhar", gravada em 1960 no disco "A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo", e há a engajada "Zelão", que, registrada no mesmo disco, marcou uma virada na trajetória do cantor.
Muitos anos atrás, não sei precisar quantos, deparei-me com o quadro A origem do mundo (L’Origine du Monde, 1866) e me encantei. Nele, o francês Gustave Courbet pinta uma vagina. Cheguei a ela desavisada e fui tomada por uma sensação profunda de beleza. Forte o suficiente para sonhar, deste então, com a compra de uma reprodução, um plano sempre adiado. Quando passei a trabalhar em casa, há dois anos, desejei ainda mais ter o quadro na parede do meu escritório, onde reúno tudo aquilo que me apaixona em um pequeno universo perfeito e só meu. No último aniversário, em maio, meu marido me deu a reprodução de presente. Só na semana passada, porém, o quadro chegou da vidraçaria onde fez escala para receber moldura. Então, algo inusitado aconteceu.
Ouvi um grito:
- É o fim do mundo!
Eu estava no quarto e saí correndo, alarmada, para ver o que tinha acontecido. Encontrei Emilia, a mulher que limpa nossa casa uma vez por semana, com o rosto tomado por um vermelho sanguíneo, diante de A origem do mundo, que, ainda sem lugar na parede, jazia encostado em um armário.
- É o fim do mundo! – gritava ela, descontrolada. – Nunca pensei ver algo assim na minha vida! Eliane, que coisa horrível!
Meio atordoada, eu repetia: “Não é o fim do mundo, é o começo!”. E depois, sem saber mais o que fazer para acalmá-la, me saí com essa estupidez: “É arte!”. Como se, por ser “arte”, ela tivesse de ter uma reação mais controlada, quando é exatamente o oposto que se espera. Beirando o desespero diante do desespero dela que eu não conseguia aplacar, apelei: “Mas, Emilia, metade da humanidade tem vagina – e a humanidade inteira saiu de uma vagina! Por que você acha feio?”.
O fato é que, para Emilia, era o fim do mundo – e não o começo. Tentei fazer piada, mas percebi que a perturbação não viraria graça. A questão para ela era séria – e ela só não pedia demissão porque trabalha há 12 anos comigo e temos um vínculo forte. Naquele dia, Emilia despediu-se incomodada e passei a temer que talvez ela não suporte olhar para o quadro a cada quinta-feira.
Por que Emilia, uma mulher adulta, que me conta histórias escabrosas da vida real, se horrorizou com a visão de uma vagina? Por que eu me encantei com a visão de uma vagina? Quando vivo uma experiência de transcendência, em geral eu não quero saber sobre a história da pintura que a produziu, porque temo perder aquilo que é só meu, a sensação única, pessoal e íntima que tive com aquela obra. É uma escolha possivelmente besta, mas faz sentido para mim. Por isso, eu quase nada sabia sobre “A origem do mundo”, para além do fato de que eu a adorava. Só no ano passado, ao ler um pequeno livro sobre um dos grandes nomes da história da psicanálise, o francês Jacques Lacan, soube que ele foi o último dono da pintura. Nos anos 90, sua família doou o quadro para o Museu D’Orsay, em Paris, onde está desde então.
Graças ao estranhamento de Emilia, transtornada que foi pela experiência artística quando se preparava para passar o pano no chão, fui levada a um percurso inesperado. Descobri que A origem do mundo causa escândalo desde que foi pintada. E agora quem está horrorizada sou eu, mas pela ausência de horror em mim diante do quadro. Por quê? Por que eu não sinto horror? O que há de errado comigo que não sinto horror?, cheguei a me perguntar. De repente, nossas posições, a minha e a de Emilia diante do quadro, inverteram-se. Eu, que não compreendia o horror dela, passei a suspeitar do meu não horror.
Eis uma breve trajetória da obra. A origem do mundo foi encomendada a Courbet, um pintor do realismo, por um diplomata turco chamado Khalil-Bey. Colecionador de imagens eróticas, ele pediu um nu feminino retratado de forma crua. E Courbet lhe entregou um par de coxas abertas, de onde despontava uma vagina após o ato sexual. A obra teria sido instalada no luxuoso banheiro do milionário, atrás de uma cortina que só se abria para revelar o proibido para uns poucos escolhidos. Khalil-Bey teria perdido a pintura em uma dívida de jogo, momento em que a tela passa a viver uma série de peripécias.
O quadro teve vários donos e, ao que parece, todos o escondiam atrás de uma cortina ou de uma outra pintura. Na II Guerra Mundial, algumas versões afirmam que chegou a ser confiscado pelos nazistas do aristocrata húngaro ao qual pertencia. Em seguida, passou uma temporada nas mãos do Exército Vermelho. Até que, após uma acidentada jornada, em 1954 foi comprado por Lacan e instalado na sua famosa casa de campo. Até mesmo Lacan, um personagem pródigo em excentricidades e sempre disposto a chocar as suscetibilidades alheias, ocultava o quadro com uma outra pintura, encomendada ao pintor surrealista André Masson com esse objetivo. Como uma porta de correr, esse “véu” retratava uma vagina tão abstrata que só um olhar atento a adivinhava. Apenas visitantes especiais ganhavam o direito de desvelar e acessar a vagina “real”. Segundo Elisabeth Roudinesco, a biógrafa mais notória de Lacan, o psicanalista gostava de surpreender os amigos deslocando o painel. Anunciava então “A origem do mundo”, com a seguinte declaração: “O falo está dentro do quadro”. Boa parte dos intelectuais apresentados à tela ficava, como Emilia, bastante incomodada.
Por quê?
Que há algo perturbador no órgão sexual feminino não há dúvida. Até nomeá-lo é um problema. Vagina, como tenho usado aqui, parece excessivamente médico-científico. É como pegar a língua com luvas cirúrgicas. Boceta ou xoxota ou afins soa vulgar e, conforme o interlocutor, pejorativo. É a língua lambuzada pelo desejo sexual – e, por consequência, também pela repressão. Não há distanciamento, muito menos neutralidade possível nessa nomeação. É uma zona cinzenta, entregue a turbulências, e a palavra torna-se ainda mais insuficiente para nomear o que Courbet chamou de “A origem do mundo”. Para Lacan, “o sexo da mulher é impossível de representar, dizer e nomear” – uma das razões pelas quais teria comprado o quadro.
Em busca de respostas para o horror de Emilia, que, por oposição, revela o meu não horror, naveguei por algumas interpretações do quadro – e da perturbação gerada por ele. Jorge Coli, historiador, crítico de arte e autor de um livro sobre Courbet para a editora francesa Hazon, assim comentou sobre A origem do Mundo, em um artigo publicado em 2007: “Parece-me a radicalização do processo de transformar a mulher em um objeto orgânico, pois ele esconde a cabeça (pensante) e os braços e pernas (elementos da ação). Vemos a ponta do seio e, sobretudo, o sexo”. Coli assinala que uma das questões do século XIX era a ameaça do desejo contida no feminino. Inerte, entregue à contemplação, a mulher não ameaçaria.
Em algumas manifestações escandalizadas, o fato de Courbet ter “reduzido” a mulher a um pedaço da anatomia foi considerado uma afronta. Uma mulher sem cabeça, sem braços, sem história. A pintura chegou a ser definida pelo escritor e fotógrafo francês Maxime Du Camp como um “lixo digno de ilustrar as obras do Marquês de Sade”. Análises mais psicanalíticas explicam o horror de quem olha pela castração. Diante do espectador, entre as coxas abertas da mulher se revelaria a ferida aberta, a falta, a impossibilidade de ser completo. As mulheres se horrorizariam pela constatação da castração, os homens pelo temor a ela. Se alguns olhares produzem pistas, outros reforçam apenas o incômodo que a obra produzia.
O efeito do quadro já foi tentado em fotografias de mulheres, em geral prostitutas, colocadas na mesma posição, mas o resultado revelou-se diverso. Ao transpor para a fotografia, não é mais a imagem de Courbet, mas outra. Até que, em 1989, uma artista francesa, Orlan, fez algo marcante – e com grande potencial para gerar polêmica – a partir da obra original. Ela reproduziu a pintura trocando a vagina por um pênis – ou a boceta por um caralho. E chamou-a de A origem da guerra. Olhar para essa imagem causa um estranhamento, especialmente porque a posição, deitada de costas, é muito mais íntima da mulher do que do homem. O pênis, no caso, se oferece ereto ao olhar, mas a partir de um corpo na horizontal, entregue.
É instigante, desde que a provocação não seja reduzida a um feminismo indigente, banalizado pela crença pueril do “a mulher gera a vida, o homem a morte”. A intenção de Orlan, segundo Roudinesco, era bem mais refinada. Ela “pretendia desmascarar o que a pintura dissimulava, realizando uma fusão da ‘coisa’ irrepresentável com seu fetiche negado”. Reivindicava então a “imprecisão do gênero e da identidade” que marca o nosso tempo, anunciando, por sua vez: “Sou um homem e uma mulher”.
O que se pode afirmar é que Courbet revelou o que está sempre coberto, oculto, escondido. No Carnaval brasileiro, por exemplo, como lembra a psicanalista Maria Cristina Poli em um artigo interessante sobre o feminino, tudo é exposto – e até superexposto – do corpo da mulher, menos a vagina. Mas a força do quadro não está só no “mostrar”. Há algo de incapturável e único na forma como Courbet mostrou o “imostrável”, já que a transposição da imagem para a fotografia não causa o mesmo efeito. E o que é?
Não sei.
A vagina pintada por Courbet é peluda como não vemos mais nos dias de hoje. A depilação quase total do sexo feminino tornou-se um popular produto de exportação do Brasil. Tanto que virou um dos significados da palavra “Brazilian” no renomado Dicionário Oxford: "Estilo de depilação no qual quase todos os pelos pubianos da mulher são retirados, permanecendo apenas uma pequena faixa central”. Pelo visto, a partir dos trópicos supostamente liberados e sexualizados, a vagina depilada virou um clássico contemporâneo.
Este é um ponto interessante. Ao primeiro olhar, a extração dos pelos serviria para revelar mais a vagina, mas me parece que este é mais um daqueles casos, bem pródigos na nossa época, em que se mostra para ocultar – a superexposição que ofusca e cega. A vagina sem pelos é uma vagina flagelada – e arrancar os pelos com cera é mesmo um flagelo. É também uma vagina infantilizada pela força. E é ainda uma vagina esterilizada, já que vale a pena lembrar que no passado recente essa depilação agressiva só acontecia nos hospitais para, supostamente, facilitar o parto. “Se não depilo totalmente, me sinto suja”, disse-me uma amiga. Suja?
Em janeiro de 2000, a atriz Vera Fischer exibiu sua vagina peluda em um ensaio fotográfico da revista Playboy. Causou furor. Falou-se na “Mata Atlântica”, na “Amazônia”, na “selva” onde sempre é perigoso penetrar. Havia algo de poderoso e incontrolável na vagina em estado “natural” de Vera Fischer, e a polêmica se fez. Era uma mulher não domesticada ali. Uma mulher adulta.
Não me parece – e nunca saberemos se tenho razão – que, se Courbet tivesse pintado uma vagina careca, ela teria causado tanto o horror de Emilia quanto o êxtase em mim. A vagina pintada por Courbet é uma vagina que revela. Mas o quê?
Não sei. A maravilha da arte é que ela nos transtorna sem a menor intenção de nos dar respostas – muito menos caminhos a seguir. A arte é sempre labiríntica. Não há sentimentos “certos” ou “errados” diante da expressão artística, há sentimentos apenas. Movimentos. Que nos levam por aí, aqui. É em respeito a essa ideia que decidi não colocar nenhuma imagem do quadro aqui, nem mesmo um link – ou um atalho – para a imagem na internet. A busca da origem do mundo é pessoal e intransferível. Assim como a decisão de buscá-la.
A obra de Courbet sempre foi oculta por uma outra pintura. Ou cortina. Exceto agora, que a exibição no museu deu a ela uma espécie de salvo-conduto, por ser ali “o lugar certo”. De algum modo, até então, a vagina mais famosa da História da Arte fora coberta por um véu – além do véu representado pela própria pintura.
Decidi não cobrir minha reprodução de A origem do mundo com uma burca. Vamos ver o que acontece.