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segunda-feira, 14 de julho de 2014

Amar o cinema - André Setaro







O aprendizado do cinema é um processo lento e gradual que tem no tempo o seu grande mestre. O mesmo se aplica para as demais artes, como a literatura, por exemplo. O conhecimento das obras-primas requer tempo, paciência, dedicação, hábito. Para se adentrar nos universos de Machado de Assis, Dostoiévski, Thomas Mann, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, Eça de Queiroz, Guimarães Rosa, entre tantos outros, é necessário, e até mesmo conditio sine qua non, a disponibilidade temporal. O que se torna cada vez mais difícil nesta era da informação galopante, de pragmatismo absoluto, quando o excesso de informações acaba por conduzir à desinformação, considerando que o receptor delas não tem tempo para contemplá-las e, por conseguinte, para reprocessá-las e absorvê-las adequadamente. E, neste diapasão, o jornalismo toma carona na leitura rápida, desaparecidos os antigos suplementos literários, as críticas de rodapé. Em seu lugar, o império do audiovisual.


A proliferação de oficinas de crítica cinematográfica é uma maneira, creio, e assim é se me parece, de colocar o carro adiante dos bois. Por exemplo: nos cursos de Letras, ensina-se muita teoria da literatura, enquanto que os alunos não são estimulados para a leitura. No caso do cinema, há a necessidade de se criar um repertório consistente de filmes. Ver e ver filmes, adquirindo, com isso, um hábito. A crítica é a arte da paciência. Depois da contemplação silenciosa de muitos filmes, formado o repertório, é que o interessado pode começar, então, a escrever sobre cinema. Daí porque é um processo lento e gradual.


A decadência da produção comercial é flagrante. Desfeitos os grandes estúdios de Hollywood, em fins da década de 50, o cinema americano, em crise, apostou em novos talentos (Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Roman Polanski, Bob Rafelson, entre tantos), mas, na segunda metade da década de 70, com a aparição das guerras nas estrelas (nada contra elas, mas constatando fatos) e os espetáculos spielberguianos, houve uma infantilização crescente do ponto de vista temático, a ponto de atualmente ser difícil se encontrar um filme que possa ser visto no circuito comercial dos complexos. Toda regra tem exceção, é claro, e no seio da indústria também pode se encontrar bons e severos filmes. As imagens em movimento se vulgarizaram, todavia, com a possibilidade de se fazer cinema a torto e a direito, com um simples celular. E a visão de filmes numa tela de computador não é a mesma da verificada quando somente se podia ver um espetáculo cinematográfico dentro da sala exibidora mediante o pagamento de um ingresso. Conheço uma pessoa que baixa filmes da internet a perder de vista. Conversando com ela, soube que tem mais de mil filmes baixados do espaço virtual. E quantos você assistiu?, perguntei quase atônico. Menos de 30, respondeu-me. Nada contra quem gosta de baixá-los, inclusive porque dá a oportunidade de se ver algumas obras que nunca poderiam ser vistas num circuito normal ou, mesmo, no disquinho.


Quem lê nos dias que correm uma obra fundamental como Os Irmãos Karamazov? Conta-se nos dedos os estudantes de Letras que conhecem Machado de Assis. Mas estou tomando um atalho no que quero aqui colocar: o tempo como fator fundamental e imprescindível do aprendizado cinematográfico. O paralelo com a literatura vem a propósito nesse sentido. Cinema, na verdade, se aprende indo ao cinema. Evidentemente com o embasamento de leituras de obras especializadas, ensaios e críticas publicadas pela imprensa, mas, sobretudo, o interesse pessoal investigativo, a atenção na visão/revisão dos filmes.


O filme não é um rato para ser destrinchado em laboratório com instrumentos precisos. A obra cinematográfica vale-se, em primeiro lugar, do engenho e da arte de um criador, da emoção de um artista e do sentimento desta emoção pelo espectador. Para se sentir e amar o cinema é necessário vê-lo com carinho, com sensibilidade. É um hábito que se adquire, portanto, com o tempo. Infelizmente, o ‘ir ao cinema’ atualmente se transformou num complemento do exercício do ‘shoppear’, um adendo quase à refeição ligeira de um ‘fast food’, quando não se utiliza a própria sala de exibição para a sua prática.


A minha iniciação cinematográfica se fez pela emoção. Nos já distantes anos 50, quando a imagem estava circunscrita à tela luminosa da sala exibidora. Uma formação baseada nos gêneros, na contemplação dos grandes westerns de John Ford, Anthony Mann, Raoul Walsh, Howard Hawks, Budd Boetticher…, nos musicais de Vincente Minnelli, George Seaton, Stanley Donen, nos épicos espetaculares como Ben Hur, Spartacus, etc, nos melodramas de Douglas Sirk, Leo McCarey, etc, etc, etc. Depois vim a descobrir que o cinema era uma arte ouvindo as palestras de Walter da Silveira e vendo, estupefato, Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais, Acossado, de Jean-Luc Godard, A noite, de Michelangelo Antonioini, Os sete samurais, de Akira Kurosawa, Oito e Meio, de Federico Fellini,Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha…


É preciso, portanto, aprender primeiro a gostar de cinema, a amar o cinema, e este amor só se consegue indo ao cinema.



http://setarosblog.blogspot.com/2013/04/amar-o-cinema.html


Lembrando André Setaro - Tuna Espinheira






Tuna Espinheira - Cineasta

tunaespinheira@terra.com.br

A Tarde/BA 14/07/2014




É preciso ter o corpo fechado para aguentar
os riscos diários do perigoso ofício de
crítico na área das linguagens artísticas,
em todas elas. Comentar analisando, dissecando,
apontando os prós e contras, sempre foi a
maneira mais ligeira de contrair inimizades.
Nestas areias movediças, o indômito André
Setaro escolheu o cinema como matéria de
pesquisa principal dos seus variados estudos.
Daí até o difícil texto analisando filmes foi um
pulo. Na Tribuna da Bahia, na época, um novo
jornal que se implantou na Bahia trazendo
inovações, uma espécie de revolução na imprensa
local, conseguiu o posto de crítico da
sétima arte, como cronista diário. Por décadas
cumpriu esta missão. Sem perder de vistas que
ele foi aluno de Dr. Walter da Silveira, na universidade,
além de habitué constante das matinês
sagradas, todos os sábados, do Clube de
Cinema da Bahia. Quando a província pôde
conhecer o de melhor da cinematografia internacional,
com introdução analítica do mestre
Silveira antes das projeções.

Mas os desígnios do destino tiraram de cena,
ainda novo, o desbravador dos caminhos para
o cinema baiano, passando o bastão para Guido
Araújo, coma sua luminosa Jornada de Cinema
da Bahia, que virou nordestina, nacional e, por
último, Jornada Internacional de Cinema da
Bahia. Por 40 anos, foi o oásis das produções
do cinema cultural neste país inzoneiro. Cabendo
ao André, através da crítica de qualidade
e trabalhando com os alunos na universidade,
enfatizando o assunto vital, a linguagem cinematográfica...
Eles cobriram o hiato deixado
por Dr. Walter. E o cinema baiano pôde dar a
volta por cima, sacudir a poeira...

Na década de oitenta, André aceitou um
convite meu para o papel de um dono de
funerária. Ele, digo, o personagem bebia conhaque
comgotas de formol. Setaro vestiu com
perfeição o dono da funerária, média-metragem,
com enredo de fatos extraídos do realismo
mágico do próprio Anísio, o poeta citado.
Certa feita, André levou uma noiva para assistir
a Cidadão Kane, que ele já havia visto vezes sem
conta, na saída notou que ela estava em sono
profundo, largou-a lá... e era uma vez o noivado...
Paixão pelo cinema é isto aí! Ou não?!
Evoé, amigo André Setaro!