O professor doutor e hoje Obá de Xangô
Por Carolina Carvalho em 24/04/2012 na edição
691
Reproduzido do ECOS
Online
Talvez seja sua modéstia – mesmo sendo um dos maiores nomes da comunicação na
América Latina. Ou ainda o jeito descontraído com que caminha pelos corredores
da Eco. O fato é que o carinho de alunos e professores pelo baiano Muniz Sodré
de Araújo Cabral vai muito além de seus títulos. “Sou absolutamente grata a
ele”, afirmou a professora Cristiane Costa, com um sorriso largo estampado no
rosto. Como outros colegas da UFRJ, ela foi aluna de Muniz Sodré na graduação,
além de ter sido sua orientanda no mestrado e no doutorado. “Devo muito a ele,
desde aprender a escrever para jornal até ter meus trabalhos acadêmicos
publicados”, emendou.
Muniz Sodré é um sujeito alto e de cavanhaque alinhado que se define como um
“negro moderno”. Aos 70 anos, os cabelos pretos e espessos começam a aparecer
num tom mais grisalho. Ele nasceu em São Gonçalo dos Campos, uma cidade no
interior da Bahia que hoje tem pouco mais de 30 mil habitantes. Carrega no
currículo mais de 40 livros publicados, além de quase uma centena de artigos
científicos. É um dos poucos pesquisadores brasileiros da área que tem
circulação e respeitabilidade internacional.
Como professor, sempre tentou extrair o melhor dos alunos. Segundo Cristiane,
que hoje ministra técnica de reportagem, a mesma disciplina que cursou com Sodré
na UFF, ele é duro em sala de aula – ou pelo menos era, no início dos anos 80.
“Quando o lead ficava horrível, ele dizia”, contou a professora, numa sala
repleta de alunos que aguardavam para se sentar junto a ela e discutir seus
textos. “Não bastava o lead responder às perguntas básicas. Ele tinha que estar
‘sensual’”, lembrou, num tom carinhoso.
O quarto bios
Em uma tarde recente, sentando em uma carteira no corredor da Eco, Muniz
garantiu que não é rígido como professor, mas analisa as produções dos alunos
com apuro. “Quero que eles escrevam”, reforçou, com seu tom de voz levemente
rouco. “Quero o vernáculo ali, quero criatividade, mas não sou rígido
gramaticalmente.” Os estudantes não precisam se sentir intimidados, pois ele
analisa até os próprios escritos. “Eu olho um texto meu e digo ‘Rapaz, você com
essa idade toda escreve mal, como é que pode?’”
Gustavo Barreto é doutorando em Comunicação e Cultura e teve aulas com Sodré,
a quem deve parte de sua pesquisa. Ele atribui a contextualização de seu
trabalho a quatro pensadores e um deles é o professor da Eco. “A ideia que mais
me influenciou é a do quarto bios, grande marco da teoria dele”, explicou,
sentado em uma sala de um núcleo de pesquisa da Escola. “Em toda a minha
graduação eu li e citei Muniz Sodré.”
O conceito de quarto bios foi apresentado pelo professor no livro
Antropológica do Espelho, publicado em 2002 pela editora Vozes. Em
linhas gerais, é um complemento aos três ambientes filosóficos citados por
Aristóteles – o conhecimento, o prazer e a política. Sodré coloca a mídia como o
quarto bios, tratando-a como uma forma de vida, e não apenas um meio de
transmitir informações.
Pulso firme
A trajetória de Muniz na Eco vem desde a criação da instituição. Após um
decreto do presidente Castelo Branco, em 1967, que criava nas universidades as
escolas de comunicação, José Carlos Lisboa, professor da escola de Letras,
fundou e se tornou o primeiro diretor da Escola de Comunicação da UFRJ.
Localizada ao lado de uma delegacia policial na Praça da Bandeira, entre o
Centro e a Tijuca, a instituição já foi inaugurada em condições precárias.
“Dando aula, a gente ouvia gritos de presos apanhando”, rememorou Sodré. Lisboa
recrutou vários jornalistas e intelectuais interessados na área para impulsionar
o novo estabelecimento. No grupo, estavam nomes como Danton Jobim, Luiz Costa
Lima, Francisco Antônio Dória e, claro, Muniz Sodré, recém-chegado de um
mestrado em Sociologia da Informação e da Comunicação em Paris. O professor teve
papel fundamental no início do curso. “Os primeiros currículos são todos
montados por mim”, disse, orgulhoso.
José Carlos Lisboa foi sucedido pelo jornalista José Simeão Leal, criador da
pós-graduação da Eco, com a ajuda do filósofo Emmanuel Carneiro Leão. Juntos,
conseguiram também a transferência da faculdade para a Praia Vermelha, onde está
até hoje. “Isso aqui não tinha nada”, lembrou Sodré. “Não tinha equipamento
nenhum, mas havia um ambiente intelectual interessante.” Em tempos de ameaça de
realocação do curso para o Fundão, ele defende a manutenção da escola na Urca.
“Nossa história está nessas paredes”, sustentou.
Entre 1986 e 1990, Muniz Sodré dirigiu a Eco. Nessa época, um dos estudantes
era Cláudio Besserman Vianna, o falecido Bussunda. O ex-diretor, que considera
ter sido “durão” em seu mandato, foi intransigente com o uso de maconha, mas sem
recorrer à polícia. “Eu disse que jogaria na piscina quem estivesse vendendo
maconha aqui dentro”, contou, com uma risada. Bussunda e outros alunos se
divertiam às custas do pulso firme de Muniz, inventando para ele apelidos como
“o fodão da Praia Vermelha” e pregando charges cômicas no mural de avisos.
“Já me aposentei, mas não vou parar”
Quase quatro décadas após chegar à Eco, o professor assumiu a presidência da
Fundação da Biblioteca Nacional, a pedidos do então ministro da Cultura,
Gilberto Gil. A instituição estava passando por uma crise. Sodré digitalizou os
mapas, investiu na conservação dos documentos e na restauração de títulos do
acervo e trabalhou pela instalação de quase duas mil bibliotecas municipais pelo
Brasil. Ele avalia sua gestão como bem-sucedida, mas não voltaria a ocupar o
cargo por causa da burocracia de prestação de contas. “É um péssimo negócio ser
gestor público”, queixou-se. “Não quero nunca mais uma carga dessas.”
Engana-se, no entanto, quem pensa que os títulos acadêmicos são as conquistas
mais valiosas para o professor. A posição que ostenta com mais orgulho é a de
Obá de Xangô no terreiro Axé Opô Afonjá, uma das três casas matrizes do
candomblé na Bahia. Jorge Amado e Dorival Caymmi ocuparam o mesmo posto,
pertencente hoje também a Gil. A denominação é concedida a um corpo de trinta e
seis pessoas encarregadas de cultuar o orixá Xangô e mediar a relação entre o
terreiro e a sociedade. “Vejo a possibilidade de sair dali uma filosofia
genuinamente brasileira. Estudei filosofia estrangeira, mas isso só serve na
medida em que eu possa pensar o Brasil”, destacou.
De olho na celebração de seus 70 anos, comemorados em janeiro, a Eco sediará
neste ano uma série de homenagens ao professor. A partir deste mês, o
Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária, o Lecc, abrirá rodas de
debate sobre suas principais obras. No final de abril, acontecerá a “Semana
Muniz Sodré”, um seminário internacional que trará à escola intelectuais como
Cícero Sandroni, Alberto Dines, e Henri-Pierre Jeudy. A organização do evento é
assinada por Raquel Paiva, coordenadora do Lecc e esposa de Muniz. Desde seu
aniversário, de acordo com as leis que regulam o funcionalismo público, Muniz
entrou na aposentadoria compulsória. Mas ele já disse que não vai arredar pé da
sala de aula. “Eu me aposentei, mas já pedi minha emerência. Não vou parar,
quero continuar dando aulas. Vou fazer como o Márcio Amaral, que é um dos
melhores professores desta escola”, resumiu.
[Carolina Carvalho é estudante de Comunicação]
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