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domingo, 8 de janeiro de 2012

“A Bahia está viva ainda lá

 

Praia do Porto da Barra – Salvador
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DEU EM O GLOBO
CONTEÚDO LIVRE
Ainda cá
Caetano Veloso

“A Bahia está viva ainda lá”, mandava dizer a Adalgisa do samba de Caymmi. Estou em Salvador desde a véspera de Natal e tenho a irresponsável sensação de que a Bahia ainda está viva aqui. A arquitetura feia e caótica que tomou conta das cidades brasileiras domina; o Pelourinho parece que virou uma cracolândia; o Porto da Barra não é tratado como uma joia, como deveria, mas como um depósito de lixo; as praias que dão para o mar aberto se livraram das barracas fixas, mas, sem um planejamento que acompanhasse a decisão do errático prefeito, os vendedores não ambulantes vão se ajeitando devagar e sem método, o que deixa os visitantes entre o desconforto e o medo de invasões mais perigosas; os vereadores votaram lei que permite a subida do gabarito para as construções na região em até 50%, assegurando sombra de prédio na areia antes das dez da manhã e depois das duas da tarde; enfim, o mundo acabou.
No entanto, comi acarajé da Cira à brisa da tarde no largo da Mariquita, fui à missa do Rosário dos Pretos (que continua sendo celebrada na igreja do Carmo, já que a da Irmandade do Rosário dos Pretos — aquela azul que domina a vista do Largo do Pelourinho — continua com a restauração inacabada, uns dizem que por causa das chuvas grandes que houve antes do verão, outros, que por causa de brigas entre Iphan e Ipac, sei lá), simplesmente olhei o mar azulmarinho cercando a cidade como um muro muito concreto e sobrenatural.
Essa imagem do mar como um muro me ocorreu quando me mudei para Salvador, em 1960. A essa altura eu conhecia melhor o Rio do que Salvador: tinha morado o ano de 1956 todo em Guadalupe — e ia ao Centro toda semana, a Niterói de vez em quando (para tomar banho de mar no Saco de São Francisco) e, com menor frequência ainda, à Praia Vermelha. Leblon, Ipanema, Arpoador, Copacabana — nessa ordem —, visitei algumas vezes, quando meu primo Carlos Alexandre, escrivão de polícia, resolvia fazer um passeio que ia, passando por Realengo, Bangu e Jacarepaguá, até o Recreio dos Bandeirantes, onde nos banhávamos, e voltava pelos bairros da Zona Sul. Eu e todos os meus parentes baianos que viviam no Rio achávamos o mar do Rio menos azul do que o da Bahia. Não era exatamente isso: era a névoa permanente da Guanabara que deixa os horizontes embaçados, o céu com uma cor menos precisa e as pedras que rodeiam a Baía — e as que encaram o mar aberto — parecendo montanhas distantes. Em suma: há menos nitidez no Rio. Fui ao Arizona e vi que há menos nitidez na Bahia do que no Arizona. Pois bem: há menos nitidez nas paisagens vivas do Rio do que nas de Salvador. Isso se expõe de forma marcante na linha dura do horizonte marinho soteropolitano. Na primeira metade dos anos 1960, estudando e namorando em Salvador, eu me surpreendia com um sólido muro azul que de repente aparecia entre duas casas de uma ladeira: o mar. Escrevi uma canção para Gal, encomendada por Arto Lindsay para o belo disco que ele produziu para ela, “O sorriso de gato de Alice”, chamada “Bahia, minha preta”, em que essa imagem do muro aparece em verso e melodia. Pois hoje à tarde, olhando da varanda de minha casa no Rio Vermelho, Catarina, a namorada de meu filho, me disse que, ao acordar e sair para o pátio, achou que o mar fosse um muro azul. Quer dizer: viva ainda.
Por que um prefeito não toma o Porto da Barra como assunto de grande importância? Por que nenhum dos que passaram pelo cargo adotou essa praia? Uma pequena enseada entre os fortes de Santa Maria e de São Diogo, em perfeito anfiteatro mirando o pôr-do-sol, com águas de temperatura fria mas não gelada e de teimosa limpidez, o Porto tem sido a praia do povo da Cidade da Bahia. Um trecho tão pequeno e tão privilegiado deveria ser tratado como uma preciosidade. Claro, viriam os idiotas da objetividade chiar porque estarse-ia dando atenção especial a um local da cidade, gastando nele (em limpeza, iluminação, policiamento e mesmo facilitações para negociantes) o que deveria ser poupado para resolver as carências
de áreas mais necessitadas. Não sou idiota, nem mesmo da objetividade, portanto não penso assim. Amei o filme “Trampolim do Forte”, em que os meninos que saltam do mini quebra-mar de Santa Maria aparecem no ar, sob a água, na superfície — e a praia do Porto tem sua crônica e seu retrato emocionado. Nesse filme, na cidade vista do mar, até os prédios que oprimem o Corredor da Vitória fazem de Salvador um lugar tão lindo quanto Istambul — ou como a Salvador do filme inacabado de Orson Welles. O filme de João Rodrigo Matos é poderoso em sua revelação do quanto pode a Cidade do Salvador. Tudo nele tem a força que sinto aqui. Força teimosa que está na resposta dada a Glauber pelo profeta Edgar Santos quando este, reitor da UFBA, sabedor de que Glauber fazia campanha contra Martim Gonçalves, o diretor da Escola de Teatro, ouviu do futuro cineasta um pedido de contribuição para não sei que projeto: “Você não entende nada de teatro, mas passe aqui amanhã para pegar o dinheiro”. Isso está no livro de Nelson Motta (é a grande cena do livro). O resto é história: o Cinema Novo, os atores da Escola e seus descendentes Lázaros e Wagners, a sede do Olodum construída por Lina Bardi, Daniela, Ivete e Magary Lord. Rumpilezz, Cascadura, Neojibá, Sanbone. Apesar da fase sombria (com muito sol) e de ter tanto a deplorar, não tenho outro jeito senão mandar dizer que a Bahia está viva ainda.

Comentários

regina on 9 janeiro, 2012 at 2:41 #
A Bahia tá viva ainda lá… e há de permanecer viva enquanto seus filhos, como você Caetano, estiverem atentos e dispostos a botar pra correr os vândalos que violam sua historia e majestade. A praia do Porto da Barra, que você tão bem conhece por frequenta-la com a assiduidade de um de um nativo e conhecedor de seus segredos, sedução e encantos, não pode ser reduto de crime. Lembro de encontrar você com Dédé e Moreno ainda na barriga e depois engatinhando ali mesmo, na areia ou num mergulho nas águas mornas do abençoado mar. Passaram algumas décadas e ao voltar para mostrar aquele espaço, que é e deve ser cartão postal de Salvador, à minha filha e neta, o encontrei de novo em um por de sol com o Moreno, já pai, trazendo o neto para o mesmo ritual. A Bahia é feita de historias como essas, de gente, contos, contas e encantos… mandar os malditos embora, purificando o Subaé…

http://www.youtube.com/watch?v=t5iJLHg-Cu8

Purificar o Subaé
Caetano Veloso
Purificar o Subaé
Mandar os malditos embora
Dona d’água doce quem é?
Dourada rainha senhora
Amparo do Sergimirim
Rosário dos filtros da aquária
Dos rios que deságuam em mim
Nascente primária
Os riscos que corre essa gente morena
O horror de um progresso vazio
Matando os mariscos e os peixes do rio
Enchendo o meu canto
De raiva e de pena

http://bahiaempauta.com.br/?p=53472#comments

Imprevisível - Mafalda Sacchetti


Bom Domingo!

Excesso

 



A coisa mais triste de todas
seria assistir a um filme colorido do Carlitos.

VEM CÁ DE NOVO

voltemos juntos pelas ruas do passado,
alegremente, desviajando pela vida.

Vem cá, menino,
olhar as cores que brotaram encantadas
depois da chuva que caiu, eternamente.

Me dá tua mão,
vamos brincar de faz-de-conta
na areinha que se formou da enxurrada.

Sejamos deuses,
ou então gigantes dominando as formiguinhas
nesse mundinho que contém o outro mundão.



Foto: "Brincando na Chuva" - Dem
 

Metáforas

Tentativa de Vitalizar Três Metáforas Gastas


Primeiro, as nuvens; o fato de que passam silenciosas após sugerirem imagens dissolventes. A metamorfose contínua e o desaparecimento.

Em seguida a dança, ideal metáfora da vida. A música: os fatos do mundo, as circunstâncias mutáveis ou não. O dançarino é o sujeito que se expressa a partir da música e não através dela. O sujeito escolhe o gesto, entre os muitos possíveis, que possa reger a música: isto ou aquilo. Dançar na música, ser maleável, porém, único e expressivo.

Terceiro, o ato de desbastar, tirar de si, lançar fora o excesso como um escultor que busca uma imagem leve refletida na matéria bruta e pesada. Não a modelagem por acréscimo, mas o corte daquilo que obstrui a irrigação da pedra pela luz. Sobretudo para lançar fora toda convenção inútil e nodosa que asfixia os pulmões da pessoalidade.
 
 
 

Mitos

 

Gerome, Pigmalião e Galatéia

Nunca gostei do mito de Pigmalião; porque creio que há algo de nobre no artista que subestima a própria obra (orgulho às avessas?), mais ainda naquele que, de ato pensado, é capaz de destruí-la. Talvez haja nessa visão um franciscanismo hipócrita da minha parte; ainda estou consultando o meu inconsciente para investigar.
A esse respeito, não sei se por engano, sempre vi no mito de Orfeu uma alusão ao caminho do artista: quando ele olha para trás, perde o seu objeto de desejo; fixado pela perda ao momento único, desesperado, será estraçalhado (fragmentado) pelas ninfas, as mesmas que o cobiçavam ao cobri-lo de glória.
Esse olhar para trás é uma decisão presente e se refere ao apego pelo presente como afeto, ao aprisionamento do desejo no que já existe, à obra, enfim. Mas, criar não seria um ato ascensional, mesmo que ilusório? Pois parece que só inflama o desejo e merece o afeto a obra que está para ser feita. Ela ainda não existe! E se já existe é porque chegou o fim, sedimentou-se ao patamar que não é mais do que o próprio térreo. E a obra realizada se torna um signo da impotência, do desfalecimento, do desespero íntimo que nem as dialéticas noções de glória e reconhecimento, nem a pequeno-burguesa idéia do dever cumprido são capazes de aplacar. Pois o artista sabe que faria tudo novamente mesmo que fosse de maneira anônima. E, no fundo, sempre é um esforço anônimo, senão para ele próprio.
O amor pela obra presente só pode ser relativo e volúvel. Alguém nos diz que é boa, mas desconfiamos que não. Em contrapartida, quanto amor pela obra futura que é cobiçada entre o entusiasmo e a melancolia pelo temor de não poder realizá-la. Muitos artistas dizem lidar com o efêmero, mas fazem registros e documentam a obra para que não seja... efêmera! Dirão que é para a remontagem posterior do próprio processo, do seu percurso; porém, se há registro é porque julgam que o que importa é a obra (mesmo que seja feita de fezes de artista). Ora, se há processo ativo ele é interno, e se refere à única obra que não é efêmera, a futura. Processo se faz por etapas superadas, relativas, que não podem ser superestimadas. Parece que é inevitável a confusão entre o olhar do artista e o olhar do outro que o julga a partir da obra já realizada.
Desconfio que Michelangelo jamais chegasse a desafiar o seu Moisés; só um observador não-criador poderia dizer à estátua: Parla!
Talvez para muitos essa questão não se refira à gênese da obra, mas ao Eclesiastes. Quem sabe até para mim mesmo! Ou isso se deve à minha desconfiança para com o que realizo?

Michelangelo, Moisés




 

comida prêt-à-manger

 

Danuza Leão - Paris


Quem tem o paladar mais apurado percebe que alguma coisa está errada, mas não sabe o quê


Coisas muito estranhas estão acontecendo em Paris, no terreno da gastronomia.

Os restaurantes que frequento não são os mais chiques, mais estrelados, mais caros; são bistrôs simples, normais, onde sempre comi muito bem -até porque em qualquer café em Paris uma omelete costuma ser deliciosa, e uma entrecôte, perfeita, já que a gastronomia é parte importante da cultura do país.

Não procuro comidas complicadas e modernas: prefiro as mais tradicionais, não sou uma expert, mas sei perfeitamente se o que estou comendo está bom ou não.

Cheguei e fui logo procurar um dos restaurantes de que mais gosto, já pensando em pedir aquele prato de que mais gosto.

Primeira decepção: o menu havia mudado, os pratos eram outros -na mudança de estação eles trocam, mas não era o caso. Ok, isso acontece, mas o que comi não estava bom; o cozinheiro mudou, pensei, acontece.

No dia seguinte, fui a um café que costumo frequentar, um café simples, para comer uma coisa simples, tipo ovos mexidos com presunto. Nem consultei o menu, fui logo pedindo, e tive uma surpresa: eles não tinham ovos de nenhum jeito, e me foi apresentado um menu -novo. Para não complicar, pedi um steak tartare, e me serviram um montinho de carne moída, com uma espécie de bolo de batata saído do microondas; em separado, sal, pimenta do reino e um vidro de mostarda, apenas. Não deu. Coisas parecidas aconteceram em mais três ou quatro lugares, e achei tudo tão estranho, que fui pesquisar.

Pergunta daqui, pergunta dali, soube do que está acontecendo em parte dos restaurantes de Paris. Muitos deles aderiram à comida prêt-à-manger (pronta para comer).

A coisa começa lá atrás: como os encargos sociais na França são muito altos, é normal, num restaurante tipo simples, um único garçom se encarregar do serviço de 30 pessoas: ele anota cada pedido (dois pratos por pessoa), se a carne é bem ou mal passada, o tipo de vinho etc.

Mas um chef -o cozinheiro- custa caro, e ainda tem os ajudantes etc. Resultado: existem atualmente, em torno de Paris, indústrias que se ocupam em facilitar a vida dos donos dos restaurantes.

É assim: o dono da indústria e o restaurateur, juntos, elaboram o menu, eliminando tudo o que precise ser feito na hora.

As porções são confeccionadas, colocadas em embalagens a vácuo, e às 5h da manhã o caminhão faz a entrega, que vai diretamente para o freezer. O dono do restaurante economiza no salário do chef, elimina as perdas, pois os pratos podem permanecer congelados por vários dias, e fica todo mundo feliz; quase todo mundo, aliás.

Os clientes que têm o paladar mais apurado percebem que alguma coisa está errada, mas não sabem bem o quê, e as coisas ficam por isso mesmo.

Isso acontece sobretudo nos pontos mais turísticos, como em St. Germain, meu bairro do coração. Mas um amigo me contou que foi ao l'Ami Louis, pediu um foie gras e achou que fosse sorvete.

O problema é grave, já que a gastronomia, na França, é coisa séria. Mesmo com a chegada da nouvelle cuisine, dos novos chefs, dos laboratórios na Espanha, a cozinha francesa tradicional sempre permaneceu no alto do pedestal, como uma das joias da coroa.

Ok, o mundo mudou, vamos admitir: e em muitas coisas, para pior. Vou passar o resto das minhas férias em Paris buscando restaurantes onde se come bem, de acordo com as velhas tradições; e se você está planejando sua viagem, fique atento. Evite restaurantes com longos cardápios, pois é aí que mora o perigo.
E se o prato que você pediu estiver com cara e gosto de comida de avião, marque no seu caderninho para não voltar lá nunca mais.

danuza.leao@uol.com.br

O gênio por trás do jazz

NORMAN GRANZ: THE MAN WHO USED JAZZ FOR JUSTICE

João Marcos Coelho

Contar a história do jazz desfilando biografias dos músicos é como contar a história dos Estados Unidos falando só dos presidentes: pode ser o fundamental, mas não é tudo, disse certa vez o crítico John McDonough. Houve quem jamais tenha tocado uma nota sequer e assim mesmo foi decisivo, a ponto de ter sido comparado a Franz Schubert e suas mais de 600 canções, o rei do "lied" alemão nas primeiras décadas do século 19, por causa da amplitude e qualidade das milhares de gravações que capturam a essência do gênero, como comparou o crítico Gene Lees. Não se trata de nenhum presidente ou compositor, mas de um produtor de shows, dono de gravadora e empresário de artistas como Ella Fitzgerald, Oscar Peterson e Duke Ellington. Estamos falando de Norman Granz, nascido em 1918 em Los Angeles, e morto dez anos atrás, na Suíça, o homem que levou o jazz ao mundo inteiro, viabilizou-o comercialmente e ao mesmo tempo gerou obras-primas da única maneira possível para o gênero: com pioneiros registros ao vivo de performances de alta adrenalina e qualidade musical.
'Sempre insisti que meus músicos tinham de ser tratados com o mesmo respeito de Leonard Bernstein' - groupmusicverve.com
groupmusicverve.com
'Sempre insisti que meus músicos tinham de ser tratados com o mesmo respeito de Leonard Bernstein'

Lees detestava o homem, e mesmo assim idolatrava sua obra. Só por causa de Granz temos hoje tesouros de valor artístico incalculável. Alguns deles: as dez horas gravadas por Art Tatum, o maravilhoso gênio cego do piano-jazz dos anos 40; os 16 CDs de Ella Fitzgerald contendo os "songbooks" da era de ouro da música popular americana e do jazz; os dez CDs de Billie Holiday registrando performances emocionantes de seus últimos 14 anos de vida ; retratos musicais de corpo inteiro de gênios como Count Basie e Duke Ellington. Isso além das dezenas de discos de Oscar Peterson, Louis Armstrong, Benny Carter, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Lester Young, Coleman Hawkins, Joe Pass, Ben Webster, Roy Eldridge.
Até agora não havia nenhuma biografia dele. Simples. Granz - o sobrenome original era Granzinski, mas seu pai cortou o final por considerar que seria mais fácil adaptar-se ao novo país quando chegou aos EUA em 1906 - de fato era um sujeito de difícil trato para o mundo inteiro, com uma exceção: seus músicos, para os quais fazia o possível e o impossível. Todos os que tentaram se aproximar dele com projetos biográficos foram rechaçados. Granz temia que estivessem apenas em busca de fofocas. "Querem que eu conte coisas como o que Billie Holiday tomava no café da manhã." Tinha medo também que enfocassem apenas o seu formidável êxito financeiro e os cachês pagos a músicos mitológicos como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Count Basie, Duke Ellington, Ella Fitzgerald, entre tantos outros. Já com câncer, e poucos dias antes da morte, Granz colocou os documentos "top secret" em pastas de plástico e exigiu que fossem enterradas com ele. Levou literalmente seus segredos para o túmulo.
Por isso, a primeira biografia exaustiva só agora é publicada, dez anos após sua morte. Norman Granz: The Man Who Used Jazz for Justice já traz no título o motivo pelo qual Tad Hershorn teve acesso aos arquivos pessoais do biografado e privou de sua intimidade em seus anos finais de vida. Ele queria ser retratado como um campeão da luta contra a discriminação racial. Foi muito difícil e vagaroso o processo de aproximação. A ideia do livro nasceu em 1975, quando Tad, filho de mãe jornalista e pai fotojornalista, começou a fotografar os shows de Joe Pass, Ella Fitzgerald e Oscar Peterson, entre outros. Nos anos seguintes, suas fotos frequentaram as capas de discos dos "pablovianos", como os chamou certa vez o crítico Gary Giddins. Na década de 90, defendeu tese sobre Norman Granz na George Mason University e mandou-a para ele em cortesia. No dia seguinte, recebeu um telefonema alertando para alguns erros e chamando-o para conversar na Suíça. "Nos últimos cinco anos de sua vida, conversamos bastante", conta Tad.
Ele esmiúça com paciência de relojoeiro os três pilares sobre os quais Granz construiu sua reputação: apresentar jazz de qualidade; desafiar a segregação racial; e mostrar que era possível ganhar um bom dinheiro combinando as duas coisas. Sem querer, ou melhor, de tabela, ele mostra como o produtor furou o paredão erudito reinante nas salas de concerto. Quando levou pela primeira vez seu Jazz at the Philharmonic, que se tornou mundialmente conhecido pela abreviação JATP, o "Philharmonic" referia-se ao espaço, o Philharmonic Hall da Orquestra de Los Angeles. Lotação esgotada, assobios, gritos, palmas de delírio - houve de tudo. Quando pensou em fazer o segundo, o diretor da sala chamou-o e lhe disse que aceitaria só se tirasse o "Philharmonic" do título de seus eventos. Granz deu de ombros. Não precisava mais daquela sala de concertos - a fórmula já se revelara vencedora: reunir no mesmo palco grandes músicos de diferentes grupos ou big bands em situação de concerto, provocar surpresas, estimular nos palcos eruditos o clima das "jam sessions". Granz levou, enfim, para outro ambiente as famosas "after hours" dos fins de noite, quando os músicos de jazz se reuniam para tocar de graça, só pelo prazer da música. Só que com cachê. Ao público, dava a chance inédita de curtir seus ídolos improvisando sem amarras.
Repetidas vezes Granz disse em entrevistas que sua vida começou de fato aos 21 anos. "Tudo que vivi até então foi apenas um preâmbulo ao fato mais importante da minha vida: o encontro com Coleman Hawkins! E ouvir Body and Soul! Isso me introduziu no jazz verdadeiro." Uma antológica gravação de outubro de 1939, em que o saxofonista toca a melodia da canção apenas nos primeiros quatro compassos e em seguida "viaja" num improviso excepcional. Dez anos depois, quando conseguiu pôr seu ídolo num dos JATPs, Hawkins tocou - e no final, quando todos os participantes deveriam retornar ao palco para uma "jam" final, ele, com o sax já guardado no estojo, queria se mandar e exigiu de Granz seu cachê. A rusga terminou com o produtor arrancando do bolso uma nota de US$ 100. Foi um eficiente lance de marketing pessoal, pois Hawkins espalhou para os demais músicos que nele se podia confiar.
No entanto, para dar status de grande arte ao jazz, no mesmo nível da música clássica, era preciso mais. Pois, paralelamente aos concertos do JATP, Granz construiu um suporte comercial matador, gerando produtos discográficos diferenciados, como The Astaire Story, The Jazz Scene e os definitivos "songbooks" de Ella Fitzgerald dedicados a Cole Porter, Irving Berlin, Jerome Kern, Johnny Mercer, Rodgers & Hart, Harold Arlen, Duke Ellington e George Gershwin, a maioria com excepcionais arranjos de Nelson Riddle. Como escreveu Peter Watrous, crítico do New York Times, em 1994, "seu toque particular de gênio foi tornar o show business subserviente ao jazz".
Em 1994, numa declaração resgatada por Tad Hershorn, Granz reafirma que "sempre insisti que meus músicos tinham de ser tratados com o mesmo respeito devotado a Leonard Bernstein ou Jascha Heifetz, porque eles eram tão bons quanto os citados, como homens e como músicos". Talentos maravilhosos como Ella, Sarah Vaughan, Joe Pass e Oscar Peterson foram alçados ao status de estrelas internacionais. Ele gerenciou suas carreiras, produziu seus discos, mas jamais teve contratos assinados com eles - em 1958, chegou a empresariar a big band de Duke Ellington sem receber comissão de agenciamento. Durante quase meio século seu nome permaneceu chave no reino do jazz: de meados dos anos 40 até 1960, com a Verve Records, onde concentrou arquivos de seus pequenos selos anteriores; e de 1973 a 1986 com a Pablo.
"A saga de Norman Granz é bem mais do que apenas a história de um empreendedor ou a biografia de uma figura secundária da música. Sua arrojada interação entre cultura e ideias durante décadas deu à sua vida a dimensão de uma ‘great american story’." Ele viveu ressentido com o parco reconhecimento seus últimos anos em Genebra. "Fez pouco para cultivar a própria fama", diz Tad. Sempre trabalhou nos bastidores e preferiu retirar-se discretamente. "Eu fazia as coisas funcionarem", disse a Tad em entrevista em 2000. "Como Philip Randolph e Bayard Rustin, os organizadores da Marcha sobre Washington de 1963, que outorgou a imortalidade a Martin Luther King, Granz jamais esteve no mesmo plano de notoriedade pública de seus artistas."
Guerra pessoal. Só há um problema com esta excelente biografia. A figura que Norman Granz induziu e Tad Hershon construiu é quase a de um santo, um autêntico revolucionário de esquerda, carteirinha do PC em punho, lutando contra a discriminação racial. Granz fez Tad esmiuçar até sua ficha no FBI e os depoimentos que deu sobre sua atividade nos macarthistas anos 40 (depoimentos que só aconteceram dez anos depois, em 1956). É uma visão maniqueísta, mas que nos ajuda a compreender melhor esta figura tão criticada por comercializar demais as grandes estrelas do "mainstream jazz" dos anos 40-70. Por isso é reveladora sua guerra pessoal contra a discriminação racial na música. E autêntica sua paixão pela bossa nova. Ele levou suas maiores estrelas, como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, a colocar a BN nos repertórios de seus shows e a gravar Tom Jobim e a BN. É da sua Verve a gravação de Garota de Ipanema de João Gilberto com Stan Getz, o disco de maior vendagem da história do selo. Pois é, até na disseminação planetária da bossa nova ele foi decisivo.
Sua morte, em 22 de novembro de 2001, causada por um câncer, foi chorada em todos os cantos. No finalzinho do livro, ao comentá-la, Tad cita trecho de um artigo de Ruy Castro no Estado, de 1.º de dezembro de 2001. Ruy escreveu que "se houve um ‘branco com alma negra’, ele foi Norman Granz. A frase é apenas um clichê, já que houve muitos brancos como Granz que foram decisivos para a sobrevivência comercial e o avanço artístico do jazz no século 20. Mas ninguém (nem mesmo Creed Taylor, a quem a bossa nova deve muito nos EUA), tornou-se tão conhecido como Norman Granz". Só que ele era conhecido apenas pelo conjunto da obra. Este livro vai às entranhas desta bizarra revolução, tanto comercial quanto artística, que mudou os rumos do jazz no mundo. E nos leva a respeitar mais sua extraordinária obra.

*João Marcos Coelho é jornalista e crítico musical, autor de No Calor da Hora

http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-genio-por-tras-do-jazz,819500,0.htm