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sábado, 9 de junho de 2012

OUTRAS PALAVRAS - CAETANO VELOSO



Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca
Travo, trava mãe e papai, alma buena, dicha louca
Neca desse sono de nunca jamais nem never more
Sim, dizer que sim pra Cilu, pra Dedé, pra Dadi e Dó
Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza:
Outras palavras

Tudo seu azul, tudo céu, tudo azul e furta-cor
Tudo meu amor, tudo mel, tudo amor e ouro e sol
Na televisão, na palavra, no átimo, no chão
Quero essa mulher solamente pra mim, mais, muito mais
Rima, pra que faz tanto, mas tudo dor, amor e gozo:
Outras palavras

Nem vem que não tem, vem que tem coração, tamanho trem
Como na palavra, palavra, a palavra estou em mim
E fora de mim
quando você parece que não dá
Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir
Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha:
Outras palavras

Quase João, Gil, Ben, muito bem mas barroco como eu
Cérebro, máquina, palavras, sentidos, corações
Hiperestesia, Buarque, voilá, tu sais de cor
Tinjo-me romântico mas sou vadio computador
Só que sofri tanto que grita porém daqui pra a frente:
Outras palavras

Parafins, gatins, alphaluz, sexonhei da guerrapaz
Ouraxé, palávoras, driz, okê, cris, espacial
Projeitinho, imanso, ciumortevida, vivavid
Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me Logun
Homenina nel paraís de felicidadania:
Outras palavras    

Ivan Lessa: Palavras, palavras, palavras

Ivan Lessa em ilustração de Baptistão


Atualizado em 21 de maio, 2012 -

Um amigo erudito, que ocasionalmente vem visitar meu enfisema, como não tem fundos para flores ou presentes, me traz o prazer de sua presença e um papo – monólogo ou preleção, a bem dizer – sobre seu assunto favorito: vida, paixão e morte das palavras.
Sabe que eu tenho o mesmo gosto por elas que ele, embora indigno de beijar seus pés incalustres (obsoleto, português do Brasil: livre de calos). Sempre que posso tomo nota depois de pedir a devida vênia (outro termo nosso em vias de extinção) e fico por uns dias pesquisando e, que me resta?, meditando.
Meu amigo, que ensina inglês para emigrantes lusos e brasileiros recém-chegados à Grã-Bretanha (pois é, nem todo mundo está indo embora), gosta de se dizer poliglota, embora mais de uma vez tenha me explicado, e eu sempre esquecendo, a contradição existente na confecção do termo formado por poli + glota.
"Trata-se de um idiotismo lusitano seiscentista", já me explicou e, tamanha sua verve formal e presença avassaladora, que eu já me esqueci. Em matéria de idiotismos minha cota já se esgotou.
Cá está diante de mim, no entanto, a lição-visita que ele me fez ainda agora, em meados de maio. Fiquei sabendo, pois ele gosta de formar frases com suas redolências léxicas, que – e os não iniciados que se segurem – eu tenho o costume de ouvir música em microfones backpfeifengesicht.
E que o mero pousar de meus olhos num bakkushan poderá, ou não, em mim despertar sentimentos de forselsket, o que, no caso, seria melhor eu evitar ter que recorrer a um desenrascanço. Neste caso, o melhor seria evitar um litost de forma a que outras pessoas no vagão não passem a sentir uma pena ajena de mim.
Ganha um doce quem pegar uma que seja das palavras ou de que trata a longa sentença, que mais parece injeção letal. No parágrafo acima estão enfileiradas palavras em equivalente, preciso ou não, em inglês de alemão, japonês, filipino, português, tcheco e espanhol-mexicano.
Meu amigo, figura sem par, insiste que o referido parágrafo, descodificado por mestres como ele (duvido que haja plural; meu amigo é único), quer dizer, mais ou menos, em rude tradução, o seguinte: "A desagradável pessoa tem uma cara que você gostaria de esmurrar enquanto uma jovem japonesa, melhor vista de costas, inspira uma sensação de euforia quando você se apaixonar pela primeira vez".
Se ele disse é porque é. Não creio que eu vá ter muitas oportunidades de empregá-la. Na verdade, não creio que vá ter uma única oportunidade. Tudo bem. Já me conformei a coisas piores, pelo que peço taarradhin, palavra arábica que significa uma solução satisfatória a todos os envolvidos numa questão.
Mas eu tenho minha forma de apoquentá-lo. Como o dileto (Dileto não é seu verdadeiro nome) se encontra fora do país natal, que é o mesmo meu, gosto de atazaná-lo, ou melhor, espicaçar sua mente viva, com os neologismos que pesco aqui e ali nas águas bravias do mare nostrum cibernético.
Já o pus frente a frente com brasileirismos atuais que o deixaram rubro de vergonha ou ódio, pois ele é difícil de distinguir quando se queima. Taquei-lhe brasileirismos atuais como bullying, point, fashion week, os irmãos Loxas e Lunda e vi-o deixar minha casa falando sozinho entredentes, como se tivesse sido assaltado pelo mundo.
Quebrei a cara uma ou duas vezes, o que era de se esperar: embora da mesma geração minha, matou de estalo balacobaco, e, em português luso, salta-pocinhas e baitola.
De certa feita, fui contra as regras do jogo e deixei-o zonzo por desconhecer o significado de biringaço, que, após revelar-me sua total ignorância, danou-se quando eu expliquei tratar-se de lusitanismo obsoleto significando, nas altas camadas sociais do século 17, uma espécie de guarda-costas alugado a preços de arrasar.
Palavras. Há nelas, embutida, uma tremenda luta corporal. Urge dela participar, mesmo passando rasteira (regionalismo, Brasil).

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120521_ivanlessa_tp.shtml

Ivan Lessa - de Londres para O Pasquim

IVAN LESSA no primeiro ano de “O Pasquim”
Nº 26, 18-24 de dezembro de 1969

Foi fundador e um dos principais colaboradores do jornal "O Pasquim", durante a resistência à ditadura militar brasileira, junto de Sérgio Cabral, Paulo Francis, Tarso de Castro e Millôr Fernandes.
Criou, junto com o cartunista e amigo Jaguar, o ratinho Sig --inspirado no psicanalista Sigmund Freud-, baseada na anedota "Deus criou o Sexo, Freud criou a sacanagem". O ratinho se tornou símbolo de "O Pasquim".

Senhor, tem pena de mim



Ivan Lessa




As vastas amendoeiras do Passeio Público fornecem aprazível refúgio àqueles que, por alguns minutos, desejam escapar ao alvoroço do Centro, deixando-se ficar sentados, simplesmente a matutar ou ler o jornal. Quando eu discretamente deixei a serrinha e o facão, embrulhados no Jornal dos Sports, ao meu lado no banco, uma boa meia-dúzia de gatos pingados, dentre as dezenas daquele logradouro, veio logo xeretar.


Perfume de mulher bonita é sabonete. Sabonete e sangue. Na manga do paletó de brim branco uma gota rubra brotara entre a noite de ontem e a manhã de hoje. Para que nunca te esqueças de mim, ó malvado! Um gato com um olho só me fitava. Distingui no horizonte, cruzando a baía cor de conhaque, a Barca da Cantareira.


Retirei o lenço do bolso, assoei o nariz. Atitudes de cais, ares úmidos de adeus. Tentei acertar com um pontapé o olho que sobrara ao bichano errante. Eu também fui um cego. A língua malvada dessa gente. Os falsos amigos. O ciúme corroeu meu peito, Uma serpente envolveu meu coração. Sou pássaro sem ninho, perdido nas ilusões da grande metrópole. Tua traição. Ingrata e pérfida. Pra mostrar que braço é braço, nada mais fiz que dar murro em ponta de faca. Espingarda e baioneta, couro mais duro. Teu corpo magistral, escultural. Minha loucura. Perdição. Mendigo de tua esmola. Trapo inútil. Eu te digo adeus. Brááp. Opa. Pelo grito e pelo berro. O som desta buzina.


Até o gato zarolho se assustou. Sou homem de enredada digestão. Dia de rabada, na pensão da Vanda, não cheguem perto de mim. Nessas tardes olorosas. Peguei o rumo da Lapa deixando atrás o legado maldito envolto na infausta notícia em cor-de-rosa de que Perácio, para domingo, estava fora de cogitações.




Vai graxa sim. Do alto de minha cadeira retiro do prendedor o exemplar de Estrelas em Desfile. Ninon de Vallois figura com destaque no mais recente show do Folies Bergère e, a se julgar pela foto, informa o redator, com tal chassi seguramente essa garota vai... longe! A barca deve ter chegado a Niterói. Pffft. Esse foi de mansinho.


O engraxate salpica água em meu sapato direito com a garrafa de Caxambu tapada com rolha, um furinho. Abano disfarçando. Betty Grable vem ao Brasil, Seu marido, o trumpetista Harry James, que mantenha o olho vivo, pois Betty, é sabido em Hollywood, não faz segredo de sua admiração pelos galãs latino-americanos. Cesar Romero que o diga. Poucos sabem que, no início de sua carreira, a explosiva loura foi crooner de orquestra. Ela não só canta mas encanta. Eu entrava no apartamento da Evaristo da Veiga, o dono do negócio, com chave própria, e a ouvia no quarto cantarolando junto com o rádio os sucessos da atualidade. Não importava a hora do dia, frio ou calor, havia sempre uma suave penumbra, propícia aos amantes, perpassando cada aposento — um rumor de asas, nosso ninho, o ventilador Ideal, bule azul de café, gaiola doirada. Mesmo assim, eu checava o bidê e as toalhinhas.


O gato negro de meu ciúme. Sob o astro-rei, solar tirano, um barco a vela navega manso. Vestido no manto da ilusão, sombra perdida na tarde, vago em rumo da Conde Laje tendo o firmamento por testemunha. Venho do porto das tristezas, parto para o cais do pecado. Na carne, amarras que são garras. Tempo feliz que jamais há de voltar, passado sepulto, em dor.


Um copo de Hidrolitol sempre ajuda a digestão além de refrescar. Brindemos à vida. Vejo a bolha criada por meus sonhos surgir e desaparecer no largo recipiente de vidro. Sorvo lento, peido baixo. Desafio o destino e adquiro, do maneta frente ao Silogeu, o gasparino da fortuna. Faraco me fará rico. Olho a girafa. Na ausência de gato.




A uruguaia faz barba, cabelo e bigode e não tem sentido ficar na Conde Lage. Olha, muchacha, façamos um acordo: assim. Seis meses de Santo Amaro, Bento Lisboa e Correia Dutra e, por volta do Grande Prêmio Brasil, te lo juro, apartamento com criada e tudo em Copacabana. Nunca lhe menti, nunca lhe enganei, você sabe que pode confiar em mim. Eu falo com a madama, está tudo arrumado, você não se iluda com as mentiras multicores da cidade.


Precisas de um homem com experiência da vida: A cera brilha como espelho; o aroma forte traz evocações deliciosas. Tu tens o mundo a teus pés e não o sabes: A cigana não nos enganou. Buena dicha. Um país encantado nos espera. Ela ri quando eu digo que leio o futuro nas pregas. Aqui eu vejo um estranho em seu destino que lhe fará muito feliz. Cuidado com uma amiga falsa: Notícias de casa. Pfff. Estás viendo? Ué, será o Benedito? Cu cor-de-rosa é sinal de bom coração.




Crepúsculo singular. As luzes da cidade se acendem piscando de volta para a lua e as estrelas. Uma baratinha amarela quase me pega na Senador Dantas. Na agitação dos cabarés, os primeiros anjos da noite abrem as asas em exótico bailado.


No Amarelinho, começam as primeiras histórias tristes. Máscaras caem, outras se ajustam. Coletivos apinhados transportam vidas sem razão. Ergue-se a cortina revelando o cenário do drama cotidiano vivido à noite entre o néon; o álcool, o riso falso. Anjo, Homem-Pássaro e Ângelus. Brilham os olhos dos gatos do Passeio Público. Um brilha de olho só. Cem mil verdes olhos mágicos dos aparelhos receptores se dilatam e se contraem em busca da sintonia perfeita. Confirmada a ausência de Perácio no clássico das multidões.


Funcionário das Barcas revela que teve sua atenção chamada para a mala macabra devido ao mau aroma que de lá se desprendia. As diligencias prosseguem e um perito afirma que os despojos pertencem indubitavelmente a pessoa do sexo feminino. No mictório da Brahma, vertendo, vejo-me ao lado de festejado compositor que conheço ligeiramente de bar. Pergunto se me permite cantarolar um sambinha que eu tenho para o reinado de Momo.


Veja você, me diz ele, há dez anos atrás eu rachava ao meio pedra de gelo com o jato do mijo, hoje não empurro nem bola de naftalina. Rio da boa mas não desisto. Ai, ai, Senhor, tem pena de mim, não suporto a dor de viver triste assim, Breque: Ai, ai, Senhor. Ele diz que depois a gente vê isso.



Ivan Lessa fez parte do grupo que colaborou e que, durante muito tempo, fez sucesso no jornal "O Pasquim". Carioca, filho de Orígines Lessa e Elsie Lessa, escreve valendo-se de um humor cheio de ironias. Auto-asilado na Inglaterra, segundo ele por ter-se desencantado com o Brasil, trabalha na BBC de Londres.


O texto acima foi extraído do livro “Garotos da fuzarca”, Companhia da Letras – São Paulo, 1987, pág. 51,

o coração de Ivan Lessa parou de bater



A taxa de mediocridade acaba de dar um salto :Ivan Lessa saiu de cena. E,com ele, um Brasil que ele criou, em Londres, para consumo próprio



sáb, 09/06/12
por Geneton Moraes Neto |

O Brasil deu um novo passo em direção à mediocrização ampla,geral e irrestrita : o coração de Ivan Lessa parou de bater, em Londres. Ivan Lessa saiu do Brasil no fim dos anos sessenta. Passou as décadas seguintes sem por os pés na ex-Terra de Santa Cruz. Ainda assim, mantinha uma relação absoluta com o país. Ivan Lessa convivia com um país que, provavelmente, só existia na imaginação de Ivan Lessa : um Brasil que que tinha com fronteiras a Ipanema dos anos sessenta e a Copacabana dos anos cinquenta. Eis aí a beleza da atitude de Ivan Lessa : uma bela saída para o absurdo da vida talvez seja criar países imaginários e cultivá-los com todo cuidado por décadas a fio. De resto, Ivan Lessa era o avesso de tudo o que pode haver de risível em intelectuais e jornalistas: a taxa de pretensão, pompa e empáfia circulando na corrente sanguínea de Mr. Lessa era zero. Aos que nasceram ontem: Ivan Lessa foi um talento reluzente na geração que criou um jornaleco que influenciaria as gerações seguintes: o Pasquim. Os texto de Ivan Lessa eram “inlargáveis”: quem começava ia até o fim. Era um espírito independente. Não seguia a boiada. Não implorava por aplausos. Escrevia estupidamente bem. O lamentável é escrever sobre ele no passado. C´est la vie.
Aqui, uma entrevista ( extensa ) que fiz com o homem:
O DECÁLOGO DE IVAN LESSA:
1.‘’EU ESTOU POR FORA DE ORIXÁ, ARAÇÁ AZUL, ODARA E MANDACARU VERMELHO !’’

2.‘’O BRASIL DEVERIA ESQUECER O CINEMA. SOMOS RUINS’’.
3.‘’PATETA, MICKEY E O PATO DONALD SÃO VIZINHOS MELHORES DO QUE O PESSOAL QUE INFESTA A BARRA DA TIJUCA’’
4.‘’NÃO HÁ MOTIVO ALGUM PARA NOS SENTIRMOS À VONTADE DO MUNDO !. OS ALIENÍGENAS SOMOS NÓS’’
5.‘’ O CALOR DÁ SONO. O FRIO ME CIVILIZA’’
6.’ ’NÃO QUERO ENTRAR COM MEU PLANGENTE VIOLÃO DO SAUDOSISMO, MAS O NOSSO JORNALISMO PIOROU. MUITO MESMO’’.
7. ‘’SEMPRE FUI MUITO MAIS VELHO E MUITO MAIS CÉTICO QUE PAULO FRANCIS’’.
8.‘’AINDA ESTOU MOÇO. SÓ TENHO 64 ANOS.PODE SER QUE A DEPRESSAO AINDA VENHA’’.
9.’’O QUE ACHO TRISTE É’ O FATO DE O MEU LIVRO SAIR !’’.
10.’’UMA DAS VANTAGENS DE ESTAR FORA É QUE SÓ RECEBO O DISCO DE CAETANO VELOSO : NÃO SOU OBRIGADO A OUVIR AQUELAS TOLICES ENORMES E AQUELAS BOBAJADAS DAS ENTREVISTAS’’

o poder do jornalismo


Edição 69 > _despedida_HORST FAAS (1933–2012) > Junho de 2012




O fotógrafo que deu vida à morte

Alemão nascido em Berlim, Horst Faas alterou como poucos o curso da guerra travada pelos Estados Unidos no Vietnã

por DORRIT HARAZIM
 
"Quando um governo fala a verdade, o repórter desempenha um papel de relevância menor. É quando um governo mente que o poder maior do jornalismo se revela”, ensinava David Halberstam, um dos grandes nomes do jornalismo americano da era Vietnã a exercer o ofício com convicção.
Halberstam tinha 28 anos de idade no início da década de 60 quando fez parte do primeiríssimo pelotão de repórteres a desembarcar em Saigon. Na época, a sociedade americana ainda vivia na ilusão de que o conflito no Sudeste da Ásia, que parecia incipiente e se transformaria na pantanosa Guerra do Vietnã, não lhe dizia respeito. “Fui catapultado para um momento e um lugar da história em que ser jornalista fez diferença”, declarou em 1964, ao receber o prêmio Pulitzer.
Junto com Halberstam, quatro outros jornalistas foram se embrenhar no Vietnã para apurar o que havia por trás dos letárgicos comunicados das Forças Armadas dos Estados Unidos. Neil Sheehan e Malcolm Browne eram americanos. O ebuliente Peter Arnett era neozelandês. E Horst Faas era alemão, como denunciava o forte sotaque do qual nunca se desvencilhou. Como editor de fotografia da agência noticiosa Associated Press em Saigon, Faas é considerado até hoje o mais completo fotojornalista de guerra.
Cada integrante desse celebrado núcleo duro recebeu pelo menos um prêmio Pulitzer nos anos que se seguiram. Individualmente, porém, o trabalho do berlinense Faas foi o mais decisivo. Foi ele, sobretudo, quem encurtou a distância entre a sala de jantar do cidadão americano e a crueza da guerra do outro lado do mundo.
Até então o povo vietnamita era uma abstração de olhos puxados. Faas lhe deu humanidade individual. Com suas três câmeras Leica sempre penduradas no pescoço, conseguiu captar silêncios, nuances de medo, pavor, dor e resignação. Traduziu temperaturas, cheiros, texturas. Tudo sem vestígio de retórica fotográfica. Simplesmente aproximou a nação americana da vivência da guerra travada em seu nome.

orst Faas morreu no dia 10 do mês passado em Munique, aos 79 anos. Estava paraplégico desde 2005, consequência de um coágulo na coluna vertebral detectado em Hanói, durante um dos concorridos seminários de fotojornalismo de que participava mundo afora. Continuou a promover simpósios e a escrever livros sobre o métier até o fim da vida. Halberstam, que morreu num acidente de carro em 2007 e era pouco dado a efusões verbais, definiu assim seu antigo companheiro de alojamento em Saigon: “Não consigo me lembrar de ninguém que permaneceu mais tempo, correu mais riscos e demonstrou maior devoção ao trabalho e aos colegas do que ele. Eu o definiria como nada menos do que um gênio.”
O talento de Horst Faas com uma câmera na mão é fácil de atestar: basta olhar para as fotos de sua autoria. Mais difícil é dimensionar corretamente o papel que desempenhou debruçado sobre uma mesa de luz, como editor de fotografia da AP. Esta talvez tenha sido sua obra mais decisiva para o registro da história.
Coberturas de guerra, assim como de acidentes, chacinas e tragédias em geral, podem dar fama imediata ao fotógrafo que captar um instantâneo de impacto. Nas mesmas circunstâncias, o trabalho do editor, por ser anônimo, tende a ser particularmente ingrato. Além de operar à sombra da produção alheia, o titular do cargo com poder de decisão sobre quais fotos publicar e quais descartar raras vezes é contemplado com o apreço de seus subordinados.
A atuação do alemão Faas na redação da AP em Saigon, instalada no 4º andar de um prédio da rue Pasteur, foi tão singular quanto sua safra de fotos próprias. Ao longo de mais de dez anos, ele arregimentou, treinou e comandou uma eclética plêiade de retratistas da guerra. Gostava de garimpar talentos novos junto à população civil local. Munia-os com rolos de filmes e câmeras e ensinava-os a olhar e ver, antes de despachá-los para a rua. Repassou os rudimentos de fotografia com os repórteres mais consagrados do staff da AP e determinou que todos deveriam ter uma máquina à mão. Sempre.
Essa norma violava a lei trabalhista americana que proibia jornalistas de executar tarefas de fotógrafos, mas acabou prevalecendo como exceção no Vietnã. E foi graças a ela que o correspondente Malcolm Browne sacou sua câmera numa manhã de junho de 1963 e conseguiu registrar a primeira autoimolação de um monge budista em protesto contra o regime sul-vietnamita apoiado pelos Estados Unidos.
A cena do monge na posição Flor de Lótus, queimando impassível até a morte, no meio da rua, sem proferir um único som, durou segundos. Para Browne, uma eternidade. Até hoje ele se debate com o fato de ter apenas fotografado a cena, sem impedir seu desfecho. Mas foi essa foto, em parte, que levou a Casa Branca de John F. Kennedy a repensar seu apoio público ao ditador Ngô Ðình Diệm.

aas tinha sido ferido nas pernas por uma granada em 1967, durante uma incursão à região sul do Vietnã, e por isso ainda convalescia quando a maciça Ofensiva do Tet lançada pelos guerrilheiros comunistas em 1968 chegou a Saigon. Até então era preciso sair a campo para retratar a guerra. Com o ataque do Tet, a guerra chegou à soleira da porta da AP e Faas dirigiu toda a cobertura trabalhando de muletas.
Foi no meio do segundo dia de confrontos em Saigon, 1º de fevereiro de 1968, que o veterano Eddie Adams, um ex-fuzileiro da Guerra da Coreia, adentrou a agência e esvaziou sua safra de rolos de filme. O último negativo, uma vez revelado no banheiro da redação transformado em câmara escura, entrou para a história da fotografia de guerra com o título de Execução em Saigon. Mostrava o chefe de polícia de Saigon, general Nguyễn Ngọc Loan, uniformizado e de braço estendido, disparando à queima-roupa contra a têmpora de um sul-vietnamita de camisa xadrez, que tinha as mãos amarradas nas costas. A foto capta o instante em que a bala entra na cabeça do prisioneiro vietcongue.
Naqueles tempos, a transmissão de uma única imagem levava em média vinte minutos e era feita por meio de um circuito de radiotelefonia via Paris – isso, quando não caía a linha e era preciso retomar do zero a transmissão.
Ao ver a foto, o repórter Peter Arnett parou de datilografar uma matéria na sua máquina de escrever e começou a entrevistar o autor da imagem que mudaria o curso da guerra. Eddie Adams, falecido sete anos atrás, posteriormente sustentou que o instantâneo demonizou injustamente o militar sul-vietnamita, por ser um falso retrato do bem contra o mal, já que as circunstâncias por trás daquela cena eram muito mais complexas (o vietcongue teria decapitado vários civis sul-vietnamitas).

m 1972, quando a percepção do atoleiro vietnamita como cemitério de vidas já parecia inteiramente assimilada pela opinião pública americana, HorstFaas conseguiu sacudi-la uma vez mais.
Entre os mais de setenta jornalistas que morreram cobrindo a guerra do Vietnã estava Huỳnh Thành Mỹ, um ator a quem Faas tudo ensinou e transformou em fotógrafo. Seu irmão caçula, Huỳnh Công Út – mas apelidado por Eddie Adams deNick Út e é com esse nome que entraria para a galeria dos grandes –, decidiu então juntar-se à tropa de Faas. É de sua autoria a imagem mais do que célebre de uma menina nua numa estrada de terra. Ela corre com os braços abertos e a pele em frangalhos pela ação das bombas de napalm made in usa.
Foi graças ao pulso de Faas que o mundo viu a foto – o editor alemão decidiu atravessar a hierarquia de comando da AP e assumiu a responsabilidade de transmitir a fotografia, considerada polêmica demais pela chefia da agência.
Nascido nos anos de ascensão de Hitler e membro adolescente da Juventude do Führer, Horst Faas sabia, como Halberstam, que o poder do jornalismo acaba sendo maior do que o de um governo que mente.

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