"Quando um governo fala a verdade, o repórter desempenha um papel de
relevância menor. É quando um governo mente que o poder maior do jornalismo se
revela”, ensinava David Halberstam, um dos grandes nomes do jornalismo americano
da era Vietnã a exercer o ofício com convicção.
Halberstam tinha 28 anos de idade no início da década de 60 quando fez parte
do primeiríssimo pelotão de repórteres a desembarcar em Saigon. Na época, a
sociedade americana ainda vivia na ilusão de que o conflito no Sudeste da Ásia,
que parecia incipiente e se transformaria na pantanosa Guerra do Vietnã, não lhe
dizia respeito. “Fui catapultado para um momento e um lugar da história em que
ser jornalista fez diferença”, declarou em 1964, ao receber o prêmio
Pulitzer.
Junto com Halberstam, quatro outros jornalistas foram se embrenhar no Vietnã
para apurar o que havia por trás dos letárgicos comunicados das Forças Armadas
dos Estados Unidos. Neil Sheehan e Malcolm Browne eram americanos. O ebuliente
Peter Arnett era neozelandês. E Horst Faas era alemão, como denunciava o forte
sotaque do qual nunca se desvencilhou. Como editor de fotografia da agência
noticiosa Associated Press em Saigon, Faas é considerado até hoje o mais
completo fotojornalista de guerra.
Cada integrante desse celebrado núcleo duro recebeu pelo menos um prêmio
Pulitzer nos anos que se seguiram. Individualmente, porém, o trabalho do
berlinense Faas foi o mais decisivo. Foi ele, sobretudo, quem encurtou a
distância entre a sala de jantar do cidadão americano e a crueza da guerra do
outro lado do mundo.
Até então o povo vietnamita era uma abstração de olhos puxados. Faas lhe deu
humanidade individual. Com suas três câmeras Leica sempre penduradas no pescoço,
conseguiu captar silêncios, nuances de medo, pavor, dor e resignação. Traduziu
temperaturas, cheiros, texturas. Tudo sem vestígio de retórica fotográfica.
Simplesmente aproximou a nação americana da vivência da guerra travada em seu
nome.
orst Faas morreu no dia 10 do mês
passado em Munique, aos 79 anos. Estava paraplégico desde 2005, consequência de
um coágulo na coluna vertebral detectado em Hanói, durante um dos concorridos
seminários de fotojornalismo de que participava mundo afora. Continuou a
promover simpósios e a escrever livros sobre o
métier até o fim da
vida. Halberstam, que morreu num acidente de carro em 2007 e era pouco dado a
efusões verbais, definiu assim seu antigo companheiro de alojamento em Saigon:
“Não consigo me lembrar de ninguém que permaneceu mais tempo, correu mais riscos
e demonstrou maior devoção ao trabalho e aos colegas do que ele. Eu o definiria
como nada menos do que um gênio.”
O talento de Horst Faas com uma câmera na mão é fácil de atestar: basta olhar
para as fotos de sua autoria. Mais difícil é dimensionar corretamente o papel
que desempenhou debruçado sobre uma mesa de luz, como editor de fotografia da
AP. Esta talvez tenha sido sua obra mais decisiva para o registro da
história.
Coberturas de guerra, assim como de acidentes, chacinas e tragédias em geral,
podem dar fama imediata ao fotógrafo que captar um instantâneo de impacto. Nas
mesmas circunstâncias, o trabalho do editor, por ser anônimo, tende a ser
particularmente ingrato. Além de operar à sombra da produção alheia, o titular
do cargo com poder de decisão sobre quais fotos publicar e quais descartar raras
vezes é contemplado com o apreço de seus subordinados.
A atuação do alemão Faas na redação da AP em Saigon, instalada no 4º andar de
um prédio da
rue Pasteur, foi tão singular quanto sua safra de fotos
próprias. Ao longo de mais de dez anos, ele arregimentou, treinou e comandou uma
eclética plêiade de retratistas da guerra. Gostava de garimpar talentos novos
junto à população civil local. Munia-os com rolos de filmes e câmeras e
ensinava-os a olhar e ver, antes de despachá-los para a rua. Repassou os
rudimentos de fotografia com os repórteres mais consagrados do
staff da
AP e determinou que todos deveriam ter uma máquina à mão. Sempre.
Essa norma violava a lei trabalhista americana que proibia jornalistas de
executar tarefas de fotógrafos, mas acabou prevalecendo como exceção no Vietnã.
E foi graças a ela que o correspondente Malcolm Browne sacou sua câmera numa
manhã de junho de 1963 e conseguiu registrar a primeira autoimolação de um monge
budista em protesto contra o regime sul-vietnamita apoiado pelos Estados
Unidos.
A cena do monge na posição Flor de Lótus, queimando impassível até a morte,
no meio da rua, sem proferir um único som, durou segundos. Para Browne, uma
eternidade. Até hoje ele se debate com o fato de ter apenas fotografado a cena,
sem impedir seu desfecho. Mas foi essa foto, em parte, que levou a Casa Branca
de John F. Kennedy a repensar seu apoio público ao ditador Ngô Ðình Diệm.
aas tinha sido ferido nas pernas por
uma granada em 1967, durante uma incursão à região sul do Vietnã, e por isso
ainda convalescia quando a maciça Ofensiva do Tet lançada pelos guerrilheiros
comunistas em 1968 chegou a Saigon. Até então era preciso sair a campo para
retratar a guerra. Com o ataque do Tet, a guerra chegou à soleira da porta da AP
e Faas dirigiu toda a cobertura trabalhando de muletas.
Foi no meio do segundo dia de confrontos em Saigon, 1º de fevereiro de 1968,
que o veterano Eddie Adams, um ex-fuzileiro da Guerra da Coreia, adentrou a
agência e esvaziou sua safra de rolos de filme. O último negativo, uma vez
revelado no banheiro da redação transformado em câmara escura, entrou para a
história da fotografia de guerra com o título de
Execução em Saigon.
Mostrava o chefe de polícia de Saigon, general Nguyễn Ngọc Loan, uniformizado e
de braço estendido, disparando à queima-roupa contra a têmpora de um
sul-vietnamita de camisa xadrez, que tinha as mãos amarradas nas costas. A foto
capta o instante em que a bala entra na cabeça do prisioneiro vietcongue.
Naqueles tempos, a transmissão de uma única imagem levava em média vinte
minutos e era feita por meio de um circuito de radiotelefonia via Paris – isso,
quando não caía a linha e era preciso retomar do zero a transmissão.
Ao ver a foto, o repórter Peter Arnett parou de datilografar uma matéria na
sua máquina de escrever e começou a entrevistar o autor da imagem que mudaria o
curso da guerra. Eddie Adams, falecido sete anos atrás, posteriormente sustentou
que o instantâneo demonizou injustamente o militar sul-vietnamita, por ser um
falso retrato do bem contra o mal, já que as circunstâncias por trás daquela
cena eram muito mais complexas (o vietcongue teria decapitado vários civis
sul-vietnamitas).
m 1972, quando a percepção do atoleiro
vietnamita como cemitério de vidas já parecia inteiramente assimilada pela
opinião pública americana, HorstFaas conseguiu sacudi-la uma vez mais.
Entre os mais de setenta jornalistas que morreram cobrindo a guerra do Vietnã
estava Huỳnh Thành Mỹ, um ator a quem Faas tudo ensinou e transformou em
fotógrafo. Seu irmão caçula, Huỳnh Công Út – mas apelidado por Eddie Adams
deNick Út e é com esse nome que entraria para a galeria dos grandes –, decidiu
então juntar-se à tropa de Faas. É de sua autoria a imagem mais do que célebre
de uma menina nua numa estrada de terra. Ela corre com os braços abertos e a
pele em frangalhos pela ação das bombas de napalm
made in usa.
Foi graças ao pulso de Faas que o mundo viu a foto – o editor alemão decidiu
atravessar a hierarquia de comando da AP e assumiu a responsabilidade de
transmitir a fotografia, considerada polêmica demais pela chefia da agência.
Nascido nos anos de ascensão de Hitler e membro adolescente da Juventude do
Führer, Horst Faas sabia, como Halberstam, que o poder do jornalismo acaba sendo
maior do que o de um governo que mente.