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sábado, 9 de junho de 2012

Senhor, tem pena de mim



Ivan Lessa




As vastas amendoeiras do Passeio Público fornecem aprazível refúgio àqueles que, por alguns minutos, desejam escapar ao alvoroço do Centro, deixando-se ficar sentados, simplesmente a matutar ou ler o jornal. Quando eu discretamente deixei a serrinha e o facão, embrulhados no Jornal dos Sports, ao meu lado no banco, uma boa meia-dúzia de gatos pingados, dentre as dezenas daquele logradouro, veio logo xeretar.


Perfume de mulher bonita é sabonete. Sabonete e sangue. Na manga do paletó de brim branco uma gota rubra brotara entre a noite de ontem e a manhã de hoje. Para que nunca te esqueças de mim, ó malvado! Um gato com um olho só me fitava. Distingui no horizonte, cruzando a baía cor de conhaque, a Barca da Cantareira.


Retirei o lenço do bolso, assoei o nariz. Atitudes de cais, ares úmidos de adeus. Tentei acertar com um pontapé o olho que sobrara ao bichano errante. Eu também fui um cego. A língua malvada dessa gente. Os falsos amigos. O ciúme corroeu meu peito, Uma serpente envolveu meu coração. Sou pássaro sem ninho, perdido nas ilusões da grande metrópole. Tua traição. Ingrata e pérfida. Pra mostrar que braço é braço, nada mais fiz que dar murro em ponta de faca. Espingarda e baioneta, couro mais duro. Teu corpo magistral, escultural. Minha loucura. Perdição. Mendigo de tua esmola. Trapo inútil. Eu te digo adeus. Brááp. Opa. Pelo grito e pelo berro. O som desta buzina.


Até o gato zarolho se assustou. Sou homem de enredada digestão. Dia de rabada, na pensão da Vanda, não cheguem perto de mim. Nessas tardes olorosas. Peguei o rumo da Lapa deixando atrás o legado maldito envolto na infausta notícia em cor-de-rosa de que Perácio, para domingo, estava fora de cogitações.




Vai graxa sim. Do alto de minha cadeira retiro do prendedor o exemplar de Estrelas em Desfile. Ninon de Vallois figura com destaque no mais recente show do Folies Bergère e, a se julgar pela foto, informa o redator, com tal chassi seguramente essa garota vai... longe! A barca deve ter chegado a Niterói. Pffft. Esse foi de mansinho.


O engraxate salpica água em meu sapato direito com a garrafa de Caxambu tapada com rolha, um furinho. Abano disfarçando. Betty Grable vem ao Brasil, Seu marido, o trumpetista Harry James, que mantenha o olho vivo, pois Betty, é sabido em Hollywood, não faz segredo de sua admiração pelos galãs latino-americanos. Cesar Romero que o diga. Poucos sabem que, no início de sua carreira, a explosiva loura foi crooner de orquestra. Ela não só canta mas encanta. Eu entrava no apartamento da Evaristo da Veiga, o dono do negócio, com chave própria, e a ouvia no quarto cantarolando junto com o rádio os sucessos da atualidade. Não importava a hora do dia, frio ou calor, havia sempre uma suave penumbra, propícia aos amantes, perpassando cada aposento — um rumor de asas, nosso ninho, o ventilador Ideal, bule azul de café, gaiola doirada. Mesmo assim, eu checava o bidê e as toalhinhas.


O gato negro de meu ciúme. Sob o astro-rei, solar tirano, um barco a vela navega manso. Vestido no manto da ilusão, sombra perdida na tarde, vago em rumo da Conde Laje tendo o firmamento por testemunha. Venho do porto das tristezas, parto para o cais do pecado. Na carne, amarras que são garras. Tempo feliz que jamais há de voltar, passado sepulto, em dor.


Um copo de Hidrolitol sempre ajuda a digestão além de refrescar. Brindemos à vida. Vejo a bolha criada por meus sonhos surgir e desaparecer no largo recipiente de vidro. Sorvo lento, peido baixo. Desafio o destino e adquiro, do maneta frente ao Silogeu, o gasparino da fortuna. Faraco me fará rico. Olho a girafa. Na ausência de gato.




A uruguaia faz barba, cabelo e bigode e não tem sentido ficar na Conde Lage. Olha, muchacha, façamos um acordo: assim. Seis meses de Santo Amaro, Bento Lisboa e Correia Dutra e, por volta do Grande Prêmio Brasil, te lo juro, apartamento com criada e tudo em Copacabana. Nunca lhe menti, nunca lhe enganei, você sabe que pode confiar em mim. Eu falo com a madama, está tudo arrumado, você não se iluda com as mentiras multicores da cidade.


Precisas de um homem com experiência da vida: A cera brilha como espelho; o aroma forte traz evocações deliciosas. Tu tens o mundo a teus pés e não o sabes: A cigana não nos enganou. Buena dicha. Um país encantado nos espera. Ela ri quando eu digo que leio o futuro nas pregas. Aqui eu vejo um estranho em seu destino que lhe fará muito feliz. Cuidado com uma amiga falsa: Notícias de casa. Pfff. Estás viendo? Ué, será o Benedito? Cu cor-de-rosa é sinal de bom coração.




Crepúsculo singular. As luzes da cidade se acendem piscando de volta para a lua e as estrelas. Uma baratinha amarela quase me pega na Senador Dantas. Na agitação dos cabarés, os primeiros anjos da noite abrem as asas em exótico bailado.


No Amarelinho, começam as primeiras histórias tristes. Máscaras caem, outras se ajustam. Coletivos apinhados transportam vidas sem razão. Ergue-se a cortina revelando o cenário do drama cotidiano vivido à noite entre o néon; o álcool, o riso falso. Anjo, Homem-Pássaro e Ângelus. Brilham os olhos dos gatos do Passeio Público. Um brilha de olho só. Cem mil verdes olhos mágicos dos aparelhos receptores se dilatam e se contraem em busca da sintonia perfeita. Confirmada a ausência de Perácio no clássico das multidões.


Funcionário das Barcas revela que teve sua atenção chamada para a mala macabra devido ao mau aroma que de lá se desprendia. As diligencias prosseguem e um perito afirma que os despojos pertencem indubitavelmente a pessoa do sexo feminino. No mictório da Brahma, vertendo, vejo-me ao lado de festejado compositor que conheço ligeiramente de bar. Pergunto se me permite cantarolar um sambinha que eu tenho para o reinado de Momo.


Veja você, me diz ele, há dez anos atrás eu rachava ao meio pedra de gelo com o jato do mijo, hoje não empurro nem bola de naftalina. Rio da boa mas não desisto. Ai, ai, Senhor, tem pena de mim, não suporto a dor de viver triste assim, Breque: Ai, ai, Senhor. Ele diz que depois a gente vê isso.



Ivan Lessa fez parte do grupo que colaborou e que, durante muito tempo, fez sucesso no jornal "O Pasquim". Carioca, filho de Orígines Lessa e Elsie Lessa, escreve valendo-se de um humor cheio de ironias. Auto-asilado na Inglaterra, segundo ele por ter-se desencantado com o Brasil, trabalha na BBC de Londres.


O texto acima foi extraído do livro “Garotos da fuzarca”, Companhia da Letras – São Paulo, 1987, pág. 51,

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