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segunda-feira, 10 de junho de 2013

Traduzir-se - Adriana Calcanhotto



Conexões perdidas


Ilustradora de Nova York colecionou histórias de pessoas que se esbarraram uma vez, encantaram-se mas nunca mais se viram.
por Sophie Blackall

Maçã por Airton Paschoa




Eu poderia simplesmente aguentar firme o formigamento e tocar em frente como todo mundo
por Airton Paschoa
Adejo sostenuto
Ter imaginado, imaginado que podia,                               
podia ser.
E ter de rir de si e ter de rir de dó e ter                               
de rir de lá.

Ordem
Ó Vossa Iminência,
Vossa Iminência que nunca chega,
Vossa Iminência que não chega, chega.

Arabesco
Quando você não diz nada, toda olhos, fogos e artifício, e nada digo eu, todo utopia, tiros e queda, não é que não dizemos nada. Poderíamos falar cobras e lagartos, serpentes. Poderíamos falar sem parar, caravana, miragens. Ou poderíamos simplesmente dizer deserto. Mas não, não dizemos nada. E é o que dizemos de certo.

Formigamento
Praga ou não, dei com as maçãs formigando ao erguer os olhos. Acho que o sangue para de correr pelo local, ou corre demais, não sei. A única coisa que sei é que sempre que acontece fico meio atarantado, pensando em esconder o rosto, mesmo não fazendo ideia de como seguir escrevendo com as mãos ocupadas, ou olhar só para o chão, arriscando viver vexado, ou até mesmo aguentar firme o formigamento e tocar em frente como todo mundo, cada qual com seu papel, ou folha... penso um pouco corado.

A tristeza do rei
Baixar édito –
é o ofício.
Baixa o tédio
e baixa a treva.
A trova cala
e cala o bobo.
A cama é larga
e larga o corpo.
Mas a alegria –
a alegria tem que reinar,
tem que reinar a alegria
em todos os quadrantes,
e o rei se dependura
(qual um quadro).

Gatos e homens
(goeldiana)
Os gatos passeiam, de olhos acesos, entre móveis, vasos, vielas. Os homens sossegam, de olhos cerrados, entre persianas, penumbras, penhascos. Os gatos querem pular e pulam, como os sonhos, o muro. E as sombras, esgueirando-se meio-fio adentro, despertam a mais pálida suspeita.

Esperança
Não havia porto.
Corpos e mais corpos apenas.
Não que não houvesse braços.
E o abraço desesperado.
E a esperança de afundar.
Não havia esperança de mar.

Banho de sol
Certas manhãs, despontando impossíveis de azul e luz, parece quererem nos lembrar que não devíamos estar fazendo isso. É quando com certo pejo rápido engavetamos os afazeres e – não sabemos bem o que fazer. O amor permanece proibido durante o expediente. A poesia, de fim de semana, se confunde com suplemento. O subterrâneo, que retumbava outra vida... Outra vida! É quando com certo pejo rápido descemos tomar banho de sol.

Artrose
Mexeu-se um pouco. Que tinha que fazer algo, isso lembrava, e que era urgente isso, lembrava. O que era... Mexeu-se. Era alguma coisa que tinha que ver. Olhou ao redor, nenhum pico à vista, e teve vontade de sentir saudade do tempo em que escalava as estantes. Intrépido. É, intrépido. Mas não se mexeu. Nem pra apanhar a manta, que de quando em quando deslizava como deslizavam as nuvens, lembrava. Via a cortina em sua queda congelada e teve vontade de sentir saudade do tempo em que mergulhava no trabalho. Pescou a manta, com o gancho do cabide, cobriu a cabeça. O ar – não, não faltava. Inspirava e expirava, regular.

Circulatura do quadrado
Indo de um canto a outro e deste àqueloutro e destoutro ao penúltimo e do penúltimo ao último canto, perfaz-se um quadrado. Perfazendo-o vida afora, em que pese a distração com a poeira que levantamos, observa-se com justeza que o último confina palmo a palmo com o primeiro canto. Não deixamos de perfazê-lo por isso, notando embora requerer sempre mais e mais esforço, à medida que mais e mais nos faltam forças. – Mas há o pó, o pó! o tom subindo, subindo e descendo em sua infinita variedade, e a réstia de sol, volta e meia nos dizemos, erguendo a coluna.

Autoimobilismo
As notícias chegam de fora. Volta e meia viaja um conhecido, um parente, e regressam cheios de malas e saudade. Ah, a Europa! E não só ela. A Ásia! A China! O Império! Quantos jardins suspensos não suspeita o pobre tronco! resvalamos a pena velada nos olhos dos descobridores, nós que mal nos movemos do leito. Só ficamos menos embaraçados quando as pedem de dentro. Balançam a cabeça, não sei se positivamente ou por polidez, e esperam assentar a poeira. Uma hora os braços caem, levantando mais poeira. É quando se levantam também. Felizmente não preciso acompanhá-los.

Labirintite
Ler o diário sem abanar a cabeça, eis arte que só a idade ensina. E se volta e meia topamos notícia imperiosa, a tentar-nos o equilíbrio estoicamente conquistado, cerramos os olhos, como que em oração matinal, o tempo talvez de uma ave-maria, um pai-nosso, surdo de todo aos rompantes do vulgo, e logo logramos reabri-los com a beatitude dos grandes santos. Se porventura anos afora, sabe Deus, pressentimos falecer-nos o árduo dom de levitar, resta virar a página e com sorte deparar nosso necrológio. Ou até mesmo fechá-lo, última saída. Tudo, tudo, irmão, menos cair na tentação de abaná-la. Não por reavivar o fogo da danação, este eterno, senão por prevenir mais alta desgraça, o inflamar o labirinto.

Parábola
Não reclamo. Se é sina andar em círculo, ando. Se ninguém nunca viu a figura, paciência. A esperança... vocês sabem. Por isso não reclamo, ando. Ou me arrasto, vá lá. Às vezes levo uma vida, caracol? carrossel? via-láctea? tateando a geometria dos passos. Geometria? A aspiral pode ser só aspiração, bem sei. Daqui, da poça, divisá-la, não há, senão em parte, braço, sino, cello. E se for uma parábola, uma parábola! e ergo os olhos. Os sóis, dardejando, parece também se desfazerem em sal ou cal, e caio queimando.

Ancien régime

Acompanhar nosso passamento passo a passo tem sido meu passatempo. E o tempo passa. Os arranjos por entretê-lo, ao império do dia frágeis, figuram coroas. Para que servem então – ó questão que morreu descabelada! Servem à cabeça, sabe Deus, ou sobem a ela.

Mistério dos transportes
Rasgando o futuro e desaguando na praça monumental, os maiores pensam em rodovias; já avenidas cogitam os grandes da vida, de preferência homônimas e culminando no arco do triunfo; há quem sonhe, lírico! com alamedas a cuja sombra possa folgar do insolente sol; não falo dos épicos, que devem planejar estradas sumindo no horizonte curvado de aventuras; menos ainda dos dramáticos, que atentam só aos buracos e ponto; em tempos verdes e ardentes bucólicos ainda vislumbram trilhas a receber-nos de cachoeiras abertas. Mas o último capiau, este sabe, picando o fumo, que é o fim da picada.

Flor de asfalto
Ó flor de betume que não corta
               a corrente...
Trinca o cristal de crença, tão enorme                                                
               o normal.
Ó flor de bestunto que não enxerga o                               
enxurro, o cu do escuro, a bota/
Bota na cabeça. 

Casquinha crocante


ONU vê no consumo de insetos uma fonte de proteína barata; Monteiro Lobato já chamava a bunda da saúva de “caviar do Vale do Paraíba”

por JULIANA CUNHA
Quando o planeta for povoado apenas por Keith Richards e as baratas, o que Keith Richards vai comer? A ONU tem uma sugestão. Onde você enxerga um alien em miniatura, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, a FAO, vê uma fonte de proteína barata e sustentável. Em um relatório divulgado no mês passado, a FAO defende que a criação de insetos em larga escala pode garantir a segurança alimentar da humanidade.
Em 2050 seremos 9 bilhões de pessoas. Para alimentar toda essa gente com bifinhos, as áreas de criação animal precisariam dobrar de tamanho, o que seria uma catástrofe ecológica por causa do desmatamento e dos gases gerados pelos bois – sim, sim, por causa dos puns.
Dois bilhões de pessoas – um terço da humanidade – já praticam a degustação de 1 900 espécies de invertebrados de exoesqueleto quitinoso, aquela parte da anatomia dos bichinhos que, exposta ao fogo ou ao óleo fervente, vira uma casquinha crocante como pipoca. Besouros, lagartas, abelhas, vespas, formigas, grilos e gafanhotos são os mais ingeridos, sobretudo na África (36 países) e na Ásia (29 países), onde o consumo de carne bovina é menor – um americano come em média 120 quilos por ano, contra apenas 8,5 de um etíope.
Insetos contêm quantidades de ferro superiores às do boi, e a produção de 1 quilo deles requer apenas 2 quilos de ração, enquanto cada quilo de carne de vaca demanda um investimento de 10 quilos de ração. A carne de boi tem cerca de 20% de proteína, contra 44% de algumas espécies de barata, que são ainda ricas em vitamina B e cálcio.
Além disso, o churrasquinho de inseto é mais seguro, diz o engenheiro agrônomo Alan Bojanic, representante da FAO no Brasil: “Claro que todo alimento precisa ser higienizado, mas o inseto não tem vírus nem bactérias que possam prejudicar o homem. Carnes como a de porco são mais sujeitas a zoonoses.”
Ah, sim, tem o argumento do nojo. Nesse quesito, parece que os insetos saem perdendo. Mas mantenha a compostura: a ONU não pretende colocar besouros no seu prato. A sugestão é fazer um pozinho de insetos para tornar a coisa mais palatável. Sabe aquela moça que no meio de um almoço saca da bolsa um potinho de chia, de linhaça ou do que quer que esteja na moda naquele mês? Um dia desses ela pode sacar um frasquinho de grilos triturados e, sejamos sinceros, ninguém vai estranhar.
No Brasil ainda não chegamos ao ponto de comer vespa por macheza, mas Monteiro Lobato chamava suas içás torradas em banha de porco de “o caviar do Vale do Paraíba”. Crianças da cidade grande cresceram sem entender a referência a cada vez que o Chico Bento, das histórias de Mauricio de Sousa, se atiçava diante de um formigueiro em dia de chuva.
Içá é um nome carinhoso para as fêmeas da formiga saúva. Em algumas regiões do Brasil – a exemplo da região Norte e do interior de São Paulo –, come-se bunda de içá como se fosse amendoim. A tradição é indígena e foi repassada aos tropeiros.

á quarenta anos, Ocílio Ferraz, de 75 anos, coleta as saúvas para consumo próprio e para venda. Em sua cidade, Silveiras, interior de São Paulo, quase todo mundo é caçador de formiga. A garrafa pet abarrotada de saúvas custa 100 reais. O negócio não chega a sustentar ninguém porque é sazonal. “Só tem formiga entre junho e novembro. Para caçar tem que ter chovido forte um dia antes e tem que ser um dia bem abafado, aí elas pulam do formigueiro”, conta o caçador.
Por causa da idade, hoje ele coleta pouco, prefere preparar a caça alheia: “Tenho um restaurante e envio farofa de formiga via Sedex para todo canto, até para o Sul.” Oitenta gramas da farofadelivery custam 40 reais, mais o frete.
Ocílio é ainda fornecedor de gente chique. Em São Paulo, suas formigas não são sujeitas à banha de porco que tanto agradava Monteiro Lobato, mas salteadas no azeite orgânico de alecrim pelochef Renato Caleffi, 38, doLe Manjue Organique. Depois desse verniz de azeite, o pratinho com quinze bundas de formiga passa a valer 41 reais. Por ano, o restaurante serve cerca de 200 porções de içá. “Quem pede é gente que passou a infância no interior e curiosos”, conta Bruno Amaro Fattori, 34, um dos sócios.
A farra da içá não prejudica o equilíbrio da região: o que se caça são fêmeas reprodutivas que estão indo fundar novas colônias. Sem interferência humana, a maior parte dessas formigas morreria de outras formas, explica Eduardo Almeida, professor de biologia da Universidade de São Paulo especializado em entomologia. Já a criação industrial de insetos poderia gerar problemas.
“Na década de 50, alguém teve a ótima ideia de trazer abelhas africanas para produção de mel no Brasil. O objetivo era mantê-las em cativeiro, mas se espalharam tanto que em 1980 já tinham chegado à América do Norte”, diz Almeida.
No Brasil ainda não há regra para caça e produção de insetos para consumo humano. Cabe à Vigilância Sanitária do município a inspeção em estabelecimentos que servem esses animais. Pela lei, o produto não pode ser comercializado de um estado para o outro nem, muito menos, exportado, já que não é registrado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
O Ministério reconhece que vem discutindo a possibilidade de lançar uma legislação específica sobre insetos para possibilitar a tal “criação em escala industrial” sugerida pela ONU, mas o assunto é espinhoso e não há previsão de quando uma lei dessas seria aprovada.
Você ainda não parece convencido a fazer uso culinário daquela lagartinha que entrou em casa, mas Alan Bojanic está convicto de que o incentivo ao consumo de insetos é um trabalho de longo prazo. “Hoje a pessoa lê sobre a ideia e refuta. Daqui a um ano, lê e acha curioso. Acredito que em vinte anos os insetos estejam integrados à gastronomia de muitos países que ainda não têm essa cultura”, diz ele, e arrisca uma comparação: “Talvez o inseto seja o novo peixe cru. Muita gente torcia o nariz para o peixe cru, não é?” 

Felicidades, João Gilberto!!!